segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

2007 finda assim



Daqui pra pouco o ano Zero-Sete da contagem cristã chegará aos seus estertores. Envelhecido, envilecido, destronado, cederá lugar, tempo e espaço ao novo rebento, o bebezinho rechonchudo, rosado e bonitinho – como todo bebê – que promete ser Zero-Oito, mesmo que ainda no útero do Universo Prenhe – de boas intenções como todo Inferno Que se Preza.

Retrospectivas, listas, listras, revivals, memórias – tudo se recauchuta a fim de celebrar, mais que o ano velho, o novo principezinho, futuro rei nu, futuro rei, rainha, príncipe, princesa, mortos e postos.

Quanto a mim, 2007 restará como o ano em que perdemos Oswaldo Lamartine de Faria. Na noite do 28 de março, Oswaldo saiu da vida sem entrar para a História – que estas coisas, com agá maiúsculo, não temos por aqui, bandas e ribeiras do Ryo pretensamente Grande (e de uma pequenez enorme e abnorme e inversamente proporcional à grandeza das obras escritas por meia dúzia de gatos pingados, OLF entre eles.)


É de Giovanni Sérgio as fotos que enriquecem estas linhas, tiradas na Fazenda Acauã – o pássaro de canto melancólico, verbete de Cascudo no Dicionário do folclore brasileiro, anunciando a visita de hóspedes: “É uma ave austera, cheia de gravidade e senso, que faz gosto vê-la. Andando devagar e compassadamente, como compete a um ente que tem direito ao culto dos homens, dá vontade de cumprimentá-la como a um desembargador”.

É de Oswaldo a resposta à Carlos Newton Júnior em Em alpendres d’Acauã, sobre a Natal de ontem e de hoje:


“A gente não renegava o chão. Morava-se melhor –
em casas com quintais. E menino que teve infância em quintais, com mangueiras e
cachorros, dispensa divã de analista. Vocês podem dizer que em apartamento
também pode se criar cachorro, e eu acrescento: só dois bichos, incluindo o
homem, podem ser criados em apartamento sem ficar neuróticos – barata e peixe de
aquário.
Não esqueçam. Vocês que se deixaram seduzir por essa arquitetura de
maribondo – uns sobre os outros. Vocês aí do último andar. Vocês que fizeram do
Potengi, onde se pescava tainha, essa cloaca fétida e nojenta. Vocês que
cortaram mangueiras para construir essas chocadeiras climatizadas. Vocês que
emporcalharam os horizontes da capital nordestina de mais bela topografia.
Lembrem-se do velho Braga em Ai de ti, Copacabana – pois em verdade é tarde para
a prece
...”

Em verdade, em verdade, é preciso não esquecer: Oswaldo morreu no alto de um flat, casa de maribondo, chocadeira climatizada. Da varanda, rede armada, última réstia do Seridó, assistia o sol se pôr por sobre a cloaca fétida e nojenta.

Sobre ele escrevi os dois textos que republico logo abaixo, coincidentemente escritos na distância de um ano – março de 2006, março de 2007 –, desejando à turma do último andar um 2008 terrível.

Ruim mesmo.

Pra que serve Oswaldo Lamartine?


Provavelmente no enterro de Oswaldo Lamartine vai dar mais gente pras alças do caixão do que no lançamento dos livros Apontamentos sobre a faca de ponta e Carta da seca, ontem, 20 de março de 2006, no Natal Shopping.

Injustiça? Ignorância? Descaso? Atire a primeira pedra aquele. Atire a primeira faca aquele.

Faltou mais gente do que foi. Nenhum jornalista. Nenhum quinta-colunista. Nenhum político. Nenhum estudante fardado, federal ou particular. Shopping alheio. Ausente. Descrente.

De Oswaldo Lamartine o cidadão mortal se aproxima na ponta dos pés, se esforça pra não gemer, só responde se for perguntado, só olha nos olhos se for olhado.

Assim deveria ser.

Um santo. Alinhado. Oswaldo se veste como hoje se vestiria o homem de ontem – ou seja: como Oswaldo mesmo. Sem cheirar a bolor. O figurino parece ter saído do armário do tempo, imaculado, sem uma prega, como se nunca usado. Não se encontra roupa igual no shopping. No mall. Paletó de veludo, sapatos de crocodilo – ou cobra ou qualquer bicho que rasteje diante do bicho-homem.

Oswaldo Lamartine no shopping: é judiação. Se atrapalha com os livros. Pede desculpas por dedicar na Carta da seca os ferros de ponta. Sem falsa modéstia pelo acúmulo desempoeirado dos anos, sem sombra de importância maior que o caso mereça. Sem encabulamento. Também Oswaldo Lamartine alheia-se do mundo. Daquele mundinho de gente que veio, sem ouro, incenso ou mirra, se deixar ferrar pela brasa turva do seu desassossego.

Cospe num copo de plástico. Um lenço nos dedos desconcertados. O caçula dos dez irmãos. Resto de seca. Pra que serve Oswaldo Lamartine? Pra nada, como na resposta de Serejo sobre a poesia. Oswaldo Lamartine é poesia. Definha sem esmorecer. De pé, dialogando com a noite sertaneja, com o agregado anônimo, com a Moça Caetana.

No saguão as mulheres vêm e vão sem falar de Miguel Ângelo. Prufrock. Lamartine lhes beija a mão.

Ant’ontem, ABC contra Flamengo. Doze mil pagantes. Pra que serve Oswaldo Lamartine?

O que encabula é que os entendidos confessam que a ciência moderna, com toda a sua soberba parafernália, ainda não conseguiu produzir exemplares semelhantes aos do passado. Acrescentem-se aspas, no início e fim da frase anterior: é Lamartine, escrevendo, no alcance do braço, sobre a espada japonesa.

Livres, enfim


Morto e enterrado Oswaldo Lamartine, a cidade pode respirar agora aliviada.

Foi-se o último, o derradeiro, o sobejo da seca, como gostava de biografar-se.

Não resta mais nenhum. Ou muito poucos.

Pode já esta metrópole, sem luto ou bandeira a meio-pau, seguir seu rumo beradeiro, sua agenda do crescimento, seu destino internacional. Pode continuar tranqüilamente a receber selinhos de Hebe Camargo e propostas irrecusáveis de cafetões internacionais.

Está livre, agora e para sempre, da obrigação medonha de deitar os olhos num livro seu.

Vivo, era um constrangimento só, ainda que quase esquecido e empoleirado no décimo segundo andar de um prédio com nome de rio e alcunha de flat.

Vivo, era a prova indubitável da possibilidade de vida inteligente às margens do Potengi. Exemplo claro de uma dedicação que não buscava nem o poder nem a glória nem o pavonear grotesco nos salões e ante-salas. Modelo de um cavalheirismo de bela figura suspenso no tempo, como se a Câmara dos Lordes inglesa e a caatinga potiguar fossem vizinhas de cerca.

Tudo, enfim, que não somos.

Oswaldo Lamartine era uma pedra no sapato desse estado, sempre recordando com sua presença discreta e paradoxalmente exuberante que não sabemos escrever, que não sabemos falar, que não sabemos ser educados, que não sabemos tanger nem gado nem abelha nem rastrear destinos nem manejar um punhal. Que não sabemos, principalmente, ler.

A morte de Oswaldo é página virada em livro não lido, abandonado de propósito na estante mais alta, pra não cair na tentação da leitura, pra esquecer, mesmo, de uma vez por todas, do que não sabemos e não somos capazes de apreender.

sábado, 29 de dezembro de 2007

4x4: Jesus Christ Superstar



[Que Robert Plant que nada – barba pouca é bobagem...
Gual e o subscrito – a quem ainda falta muito para encanecer como se deve – vésperas de Natal 07.]

porque eu acredito em papai noel [II] e em 2008 [I]




Ao fim destas noites de olhos e risos claros
restarão um corpo indolente
e o clarão do sol
o carão do mundo
e o cheiro da manhã
em esplendor

[João Gualberto Aguiar (Don Sancho), em Nuvem poema. Natal: Fundação José Augusto, 1990]

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

porque eu acredito em papai noel

Conto de Natal


18 anos


Véspera de Natal, antes da missa das oito, pediu emprestado o carro do pai. Prometeu que voltaria em tempo de acompanhar a família. Após a liturgia a ceia seria na casa dos tios e primos. Peru, filé, arroz com passas e uma torta coberta com fios de ovos na sobremesa. Apostaria neste menu, uma certeza nascida da experiência de tantos e tão poucos anos. Antes do ano-novo a maioridade lhe abriria as portas para um futuro no mínimo assustador: universidade, trabalho, responsabilidades.

Agora, na rua deserta de horas crepusculares, a namorada abria o seu presente – um perfume d’O Boticário – e ele abria o dela – uma camiseta esportiva sem marca. A namorada usava batom, era um palmo mais alta que ele, e tinha seios grandes, bem maiores que a palma de sua mão ansiosa e inexperiente. O batom era grudento, seus lábios ficavam exageradamente pegajosos, mas o pior era a dor aguda que lhe castigava os testículos durante esses encontros.

Tinha cílios grandes, a namorada.

Piscavam. Sorriam. Doces como mel.

Tinha seios grandes, a namorada.

Durinhos. Alegres. Doces como mel.

Ele já estava cansado daquela dor que lhe atravessava os ovos. Puto. Puta. Arrancou sem pensar a saia da namorada. Quando rasgou a calcinha, já pensava no que viria na seqüência – os pelos negros, os lábios sem batom.

Antes da missa das oito teria que devolver o carro ao pai. Acompanhar a família. O arroz com passas, o peru, o filé, os primos e tios esperavam por eles. Os fios de ovos. Bateu a porta do carro com força, a namorada restou desconsolada na calçada. Por um instante pareceu-lhe que suas coxas estavam cobertas de fios, fios de ovos.

Na missa, acompanhou a mãe na comunhão, a hóstia consagrando a véspera de sua maioridade.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Crônica de Natal





Supra-sumo do gênero, a Crônica de Natal renova-se a cada ano, infatigável como a árvore, os presentes, o papai Noel e, em menor escala, os presépios.

Leio nas folhas a banalidade da tristeza no período, normalmente efervescente. “O Natal é uma data diferente do restante do ano, em que alguns sentimentos são impostos, um discurso geral de amor e paz. E muitas vezes a pessoa não se sente assim, ou não está bem – com ela mesma ou a família – e constata que não pode mentir. É daí que surge a tristeza”, explica a psicanalista Odete Bezerra ao Jornal de Hoje, de 22 e 23 de dezembro.

O problema do Natal – segundo a (pouco) humilde (ora, vão se catar!) opinião do subscrito – é a sua proximidade com o fim do ano: réveillon e ceia natalina se atravancam, se sobrepõem, se engalfinham, numa proximidade que chega a ser promíscua com todo seu farfalhar de risos, guizos de renas, espocar de champanhas e consumismo febril embalado em papéis multicoloridos. No curto espaço de sete dias, o cidadão que não quer sentir-se marginalizado e tratado qual um chato de galochas, deve descalçar, pois, as ditas cujas e vestir, na seqüência, uma camisa encarnada e outra branca – de preferência com um dourado PAZ em letras garrafais brilhando no peito.

Deve encarar, também, uma despesa muito além do 13º, dando presentes (“lembrancinhas”) até para aqueles a quem não dignou olhares ou palavras durante todo ano – a começar pelo porteiro do prédio.

Para os brasileiros, terra onde, sabe-se, Deus nasceu, o qüiproquó aumenta com a chegada do verão, que por sua vez se interpõe ao carnaval (que nos honra com o título de “país do”) e coincide com as férias escolares. Resultado: finda-se mais um ano onde pouco fizemos, pouco ganhamos, pouco comemos e pouco amamos, para começar, só dois meses depois o tal do Ano Novo tão celebrado.

Não sei o que incomoda aos mais novos, nem se algum incômodo têm. Quanto aos mais ou menos velhos, entre os quais me incluo, bem na coluna do meio, zebrado, a ladainha é a mesma: bom mesmo eram os natais de antigamente, um presentinho singelo embaixo da cama (quase nunca o Forte Apache ou o Autorama), a Missa do Galo (que detestávamos ir, cabelinho repartido e roupas engalanadas pra ouvir o sermão literal do padre), a família reunida (a quem olhávamos estranhados e que nos retribuía com o mesmo olhar de desaprovação).

De famílias fizemos umas duas, três, alguns filhos espalhados pelo país e pelo mundo, o que complica o momento das apresentações para aquela velha tia que não se modernizou. De presentes esbanjamos o que temos e o que não temos graças às infinitas prestações, suaves no afã da compra, pesadas o resto do ano. Da Missa, do Galo, da Galinha, da Meia-Noite, do Meio-Dia, guardamos fiel e consagrada distância, mais preocupados com o menu e o rótulo do vinho, connaisseur que somos dos mistérios eternos que nos resumem: quem somos, de onde viemos, para aonde vamos.

E, ainda assim, um pouco hipócritas, um pouco sinceros, espalhamos lá e cá, como flores em festa pastoril as palavras que repito aqui, hipocritamente sincero: FELIZ NATAL A TODOS!

Cesta de Natal Cidade dos Reis






O jargão muito dinheiro no bolso não aconteceu neste 2007 – então, com o tridente na mão para superlotar ainda mais o Quinto dos Infernos, minha boa vontade elaborou a clássica lista dos dez mais deste ano, acrescida de um 11º e de um 12º e de um 13º, pra ser diferente e com medo de esquecer alguém, o que certamente aconteceu, e porque enfim é dezembro; alguns [livros] são do ano passado ou até de dois ou mais anos atrás, outros são relançamentos, mas todos, enfim, comprados e lidos em zero-sete; também não é certamente a lista dos dez (treze) mais: “longe” de casa, dividido entre o centro, downtown, e o litoral sul, foi o que a minha memória conseguiu arrebanhar, num quase-quasar improviso; como sou egoísta, seguiu-se ao objeto de desejo adquirido (do qual, não, não consigo cristianamente me desfazer) o nome de alguém a quem gostaria de ter presenteado – alguns dos meus interlocutores neste e em outros anos. (Nota: não existe nenhuma piadinha entre presente e presenteado.) Os carinhas citados, então, sintam meu eu virtual descendo pelas suas chaminés virtuais, colocando em suas meinhas virtuais ou embaixo de suas caminhas virtuais, meu sincero – e, reconheço, meio cafajeste – FELIZ NATAL!

1. Poemas, Kostantinos Kaváfis (José Olympio, 2006) – para Adriano de Sousa

2. La lunga strada di sabbia, Pier Paolo Pasolini e Philippe Séclier (Contrasto, 2005) – para Afonso Martins

3. A fera na selva, Henry James (Cosac Naify, 2007) – para Alex de Souza

4. 1001 discos para ouvir antes de morrer, Robert Dimery (Sextante, 2007) – para Carito

5. Fim de caso, Graham Greene (BestBolso, 2007) – para Carlão de Souza

6. História da feiúra, Umberto Eco (Record, 2007) – para Giovanni Sérgio

7. A última casa de ópio, Nick Tosches (Conrad, 2006) – para João Gualberto

8. Todos os corpos de Pasolini, Luiz Nazário (Perspectiva, 2007) – para Moacy Cirne

9. Lost girls meninas crescidas, Alan Moore (Devir, 2007) – para Napoleão de Paiva

10. Bom dia, tristeza, Françoise Sagan (BestBolso, 2007) – para Rodrigo Levino

11. Ética prática, Peter Singer (Martins Fontes, 2002) – para Vlamir Cruz

12. Os detetives selvagens, Roberto Bolaño (Companhia das Letras, 2006) – para Volonté

13. Em louvor da sombra, Junichiro Tanizaki (Companhia das Letras, 2007) – para todos os leitores de cidadedosreis

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Bom dia, Babilônia, bom dia, tristeza, bom dia Vietnã, bom dia varal, bom dia tão normal


[Dorothy Lamour em http://www.nndb.com/]

O blog, blogueiro, coluna, quinta coluna, enfim, o subscrito, recomenda ao despertar a audição de: Varal, faixa 5 de O Romance do Pavão Mysteriozo, Ednardo do pessoal do Ceará. 1974, BMG Brasil.

Procurem nas prateleiras empoeiradas, desarrumadas, desconjuntadas, cascavilhem nos sebos, baixem o santo náutico.

Ednardo, na rede, espiando a paisagem da janela. Esperando: se der o carneiro vamo’simbora pros rumos do rio de janeiro e nada, fevereiro e, sorte, fortuna e felicidade, pra província um pouco mais alargada, pras mentiras-sorrisos, pros sorrisos-choros, teu veneno blue viajando num trem do interior rumo ao abismo noturno, pros prumos de 73.

No varal a roupa ao vento

E no vento a voz da rua

E na rua o transitar

Gente apressada a passar

Na parede o calendário

No calendário outro dia

E no dia a mesma espera

De nada esperar um dia

No umbral da porta já torta

A sombra, o sombrio olhar

E no olhar coisas mortas

Que ninguém virá velar


O assovio, o assalto

O assunto a semana inteira

Na esquina, no bar, na feira

E a roupa no seu varal

E esse dia tão normal

Tão normal, tão normal


No umbral da porta já torta

A sombra, o sombrio olhar

E no olhar coisas mortas

Que ninguém virá velar


[Ednardo – Tânia Cabral]

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

saudade | s

E porque eu venho da exposição de Fernando Gurgel, e porque eu bebi vinho branco, fraco, mas o suficiente pra me fazer a cabeça, e porque eu vi Leda, sem os cisnes, e porque sem porquês, me deu uma saudade doida de Luís Carlos Guimarães, com quem eu gostaria de ter bebido hoje.

CANÇÃO URBANA
O que me chama atenção é um homem sozinho numa mesa,
nos seus cinqüenta anos bem morridos,
a entornar seu chope silenciosamente,
o homem de paletó cor de goiaba.
Necessariamente funcionário público,
na vizinhança da obesidade e do enfarte,
o homem de paletó cor de goiaba,
tem cinco filhos, três netos,
uma mulher de barriga caída e varizes nos braços e nas pernas,
um apartamento de dois quartos no 12º andar do Edifício Flor das Laranjeiras
(financiado em 25 anos, com correção monetária, pelo BNH),
calos na sola do pé direito,
dentes cariados,
fígado inchado,
acessos semanais de asma brônquica,
uma sogra que encarna o dragão vomitador de fogo,
uma acentuada hipermetropia na visão esquerda
e bolsos furados.
E mais:
no morrer de cada dia,
o homem de paletó cor de goiaba
tem os ouvidos rasgados pelo barulho do trânsito,
sua sangue poluído de asfalto na repartição,
nas filas de ônibus e do INPS.
Entornando silenciosamente o seu chope,
o homem de paletó cor de goiaba
parece um boi.
Um boi.
Não o boi que pasta no campo,
mas o boi que vão levando ao matadouro.

Luís Carlos Guimarães

Quando fui tiete de Carlão de Souza



Nos anos em que mais Carlão de Souza pintava, bordava e costurava pra fora e pra dentro da Cidadela dos Reis, eu flanava pra lá e pra cá, sem destino.

Me bastava uma cerveja, no início gelada, depois como viesse, e vários pares – a começar por um par de olhos, que, como se sabe, são a janela d’alma. Como alma sem corpo só pode ser assombração, os demais pares eram mais que necessários.

Eram também os anos em que eu fugia dos poetas potiguares como o capeta da cruz santificada. De esquisito, convenhamos, me bastava e avançava eu mermo.

De longe, longinho, eu acompanhava a trajetória gauche de Don Carlos. Nas páginas dos jornais de ontem e de antontem. Noite e madrugada.

Nosso último encontro anônimo, amacord, foi na soleira encarnada do sebo, ribeiras da Rio Branco, o sol castigando a espera na parada d’ônibus, as bundinhas da moças tecendo sombras na calçada enquanto subiam, pé ante pé, nos monstros de ferro e tíquetes estudantis.

Eram não sei quantas arrobas de malandragem paquidermicamente plantadas diante de mim. Ao alcance da mão. O cruzamento bem-sucedido de Bukowski com Macunaíma. Ele tinha de pegar o transporte pra Siara Minor, tão cordato estava, tão submisso à coleira amorosa de Sônia, que não foi ainda ali que fizemos o amor que os machos fazem – entornando litros e mais litros de cerveja.

Don Carlão “Carleone” de Souza ri com a barriga e com a miopia dos olhos – o riso mais gostoso aos olhos em que pese a recomendação enfastiada do doutor.

Depois, numa noite estranha, numa terra estranha... Não, não: a noite não era tão estranha, afinal, e a mansarda era doutro poeta, amigo daqueles entranhados que nem bicho no pé, cumichão e agonia, amor e dor, num-sei-o-quê e êxtase (encontrem aí algo pra contrapor ao êxtase que tô com preguiça). Pois... etc etc... ... nos deparamos, olho no olho, não dava mais pra esconder a timidez recíproca. E a conversa seguiu, dernentão, como se a gente nunca tivesse sido separado na maternidade de Areia Branca – se é que existia, à época, maternidade em Areia Branca.

Fez por outra Carlão ainda me olha desconfiado, com o rabo d’olho (que certamente Rêgo e de Sousa vão maldar), como se eu fosse um legítimo filho da civilização sucroalcooleira, indigno da sua confiança. Mal sabe ele o que o Augusto Imperador Adriano – de quem somos súditos infiéis – já descobriu há muito: que somos apenas uns animaizinhos esquisitos virando a esquina e assustando quem não nos conhece.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Ladyhawke


[Guido Crepax Acqua alta]


Ladyhawke tinha as mãos calejadas e olhos sonhadores.

Corpinho mignon.

Seios miúdos, na palma da mão em concha.

Uma boca devoradora de línguas, amor em pílulas.

Ladyhawke parou na cidade numa escala internacional. O que deveria durar algumas horas, demorou semanas. O aviãozinho que conduzia Ladyhawke era de uma companhia meia-boca, bandeira duma republiqueta sulamericana.

Ladyhawke ficou lá em casa, por uma piada de Deus, uma armadilha do destino, uma interpretação apressada do i-ching.

Não nos topamos de súbito. Ela tinha olhos sonhadores demais, olheiras minúsculas de quem quer amar com direito a casinha do Mickey Mouse e férias na Disneylândia. Eu estava mais para filtros amarelados e botelhas quentes na madrugada.

Além do mais a moça rescendia às plantations paulistas de quatro séculos – e tinha gravado nas retinas, impresso a ferro e fogo e água, o horror ao detergente lava-pratos que Paris obrigou-a a usar durante os anos em que os sonhos se estilhaçaram.

Ladyhawke voltava para casa. E não se deve confiar em quem está voltando para a casa – eu não sabia então.

Acompanhei-a à agência de turismo. Na calçada, o inverno agasalhava formigas. Ladyhawke usava um cachecol púrpura, emoldurando seus olhinhos sonhadores, de quem apenas findou um choro. As lágrimas são o melhor colírio e, se você quer seduzir alguém, dispense o abrigo das lentes escuras e ensaie um sorriso pipocando de dentes brancos, como um raio de sol depois da chuva. Ladyhawke e eu, na calçada da agência, um pôster de palmeiras recortadas na vitrine ao nosso lado: não, ainda não.

Os dias passavam. A velha fórmula: um após o outro.

No domingo fez sol. E fomos lagartear os corpos no parque às margens do rio X. Eu lhe passei um dos fones. Éramos jovens, o mundo todo era jovem e usava walkman com fitas cassetes. Eu tinha gravado um disco de Naná Vasconcelos, Saudades, pela ECM. Só ouvindo: um disco indescritível. Eu dum lado, ela doutro, os fios nos aproximando. As mãos sorrindo, ainda, cada um na sua. Um rebanho de ovelhas subiu a encosta, era um dia quente. Um ouvido mouco aos sons do universo, o outro mergulhado na comunhão dos sons do universo. Tínhamos de nos beijar. E nos beijamos.

Ela continuou com os olhinhos límpidos, sonhando nuvens.

Nos encontramos ainda uma vez, na Paulicéia. Ela me levou a um daqueles clubes quatrocentões, me deu de comer e beber, me abrigou num apartamento moderno, com lençóis brancos, móveis brancos e quadros brancos nas paredes.

Depois, nos separamos.

Semana passada me enviou uma carta – não era bem uma carta, mas. Dizia ter conhecido alguém: um mexicano. No início, pensei num sujeito de bigodes fartos e sombrero na cabeça, aquela casaca curta pregueada dos mariachis.

Ela escreveu:

– O mau humor de noites mal dormidas se transformou em dias com “areia” nos olhos e o tal sorrisinho no olhar.

Anos depois, eu fiquei feliz com a felicidade da moça. Mas não posso negar que, deitado no tapete de unhas, tive sonhos.

Que não posso revelar.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Minhas Aventuras Na Ponte



Querem saber?

Pouco se me dá o nome da ponte sobre o putigy. Cruzei-a duas vezes num espaço temporal de menos de 24 horas e não senti nenhum arrepio da espinha, nenhuma palpitação na caixa torácica, nenhuma vertigem feito a síndrome que Stendhal ajudou a batizar séculos atrás.

Achei-a muito chinfrim.

É uma gangorra sobre a fauce do rio, piscando um olho pro Atlântico e outro pra cidadezinha pronta a explodir.

Dum lado e doutro, a ponte começa e finda mal, em curvas desnecessárias – aliás, não é a desserventia que incomoda: também o velho Oscar, que inteirou um século sábado passado, adorava curvas, que o faziam recordar aquelas duma dona. Ou de muitas donas. As curvas da ponte tampouco são como as da estrada de Santos, onde tentávamos esquecer, um amor que tínhamos, espiando pelo retrovisor na distância se perder etc.

As curvas nas cabeceiras da ponte, rive gauche, rive droit, são o culto à imbecilidade humana e ao seu apogeu bólido sobre quatro rodas e quatro patas. Servem só pra atravancar, atrapalhar o tráfego, o público e o sábado – como aquele operário do Buarque d’Holanda.

É cômodo. Reconheço. Atravessá-la e cruzar o ryo grande num tempo inimaginável há alguns anos. Feito uma trepada rápida, jaculatória precoz: mal subimos, já estamos descendo.

Ah , sim, certo, tem a paisagem!

Visível só ao custo da contravenção: parar o carro mais da metade na pista, pois sem acostamento.

Ah, sim, certo, dá pra ir de pés!

Ainda assim, atrapalhando o tráfego de pedestres e ciclistas.

Não dava pra fazer um puxadinho por mirante? Um lugar pra descansar os pés, a magrela, sentar e curtir a paisagem que deus nos fez bonita por natureza?

Pruma obra pretensamente voltada pro futuro (sic) a ponte já nasceu defasada.
Coisas de Cidade dos Reis.

E como nem nome direito tem, vou chamá-la Ponte Walflan de Queiroz, e sugiro que vosmicês façam o mesmo: batizem-na com o nome da namorada, do marido, do cachorrinho da infância, do poeta preferido. Eu, já me decidi: em 2008, minha ponte vai se chamar Walflan de Queiroz – que amava Irene Porcel, Tereza, Annabel Lee, Francesca de Rímini, Denise, Tânia, Herna, Dinara. E Hart Crane – Walk high on the bridge of Estador, /No one has ever walked there before. //[…] How can you tell where beauty’s to be found? /I have heard hands praised for what they made; /I have heard hands praised for line on line; //[…] I do not know what you’ll see, – your vision /May slumber yet in the moon, awaiting /Far consummations of the tides to throw /Clean on the shore some wreck of dreams…

poema | Walflan de Queiroz


HART CRANE
Construamos uma ponte definitiva
Que sirva de ligação eterna entre o Ocidente e o Oriente.
Uma ponte universal, maior do que a de Brooklyn
Irmanando pretos e brancos, ricos e proletários,
No grande dia inesquecível
Da paz e do amor entre os povos.
Então o mar devolverá teu corpo ao mundo em alegria.


[Walflan de Queiroz, em O tempo da solidão. Natal: Edições Cactus, 1960]

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Cabra das Ribeiras


Pra quem estudou no Salesiano, de algumas décadas atrás, um poema de Carito, “nesses tempos de retinas fatigadas” e de fechar os olhos e encarar “a ferrugem das horas”.

O IMPÉRIO DAS PALMEIRAS

PROCURA-SE:
As palmeiras imperiais do Colégio Salesiano
O chão de areia riscado
Pelas bolinhas de gude chamadas por aqui de bilocas.

MAS NÃO SE ACHA:
Mais o campo de futebol e a casa
Do marceneiro Bigode que fazia
A Rosa dos Ventos para os trabalhos de Ciências.

SAUDADES:
Do hino nacional e a bandeira hasteada
Da sala de aula improvisada no alto, sobre a capela
Onde eu me encostava no silêncio.

ONDE ANDARÁ AGORA?
Aquele meu observar sentado
Nos batentes com vista para o pátio
Do tempo que não era passado.

AGORA SOU SÓ A ILUSÃO
Da memória que teima em me convidar
Para ver a moça se debruçar
Na janela que não quer fechar.

E A NATUREZA MÍTICA DAS COISAS
E os enigmas e outros absurdos
Florescem invisíveis sob as novas construções
Do colégio em flagrante sacrilégio.

HOJE O TEMPO NÃO PÁRA MAIS
Passa a galope como o Salesiano
Que cresce sem dono e padece
Da falta de espaço, onde me desfaço.

DOM BOSCO E SÃO DOMINGOS SÁVIO TAMBÉM ANDAM
Espremidos, deprimidos, pelos corredores
Sufocados, pelas minhas
Dores fantasmas.

ORO, CHORO, MORRO
Corro
Para o portão onde espero
Meu pai vir me buscar.

NO ENTANTO, NO ENCANTO
Nesses abismos sempre vou encontrar
Um lugar a embalar o pranto
Onde tudo ainda vai estar...

...COM O MESMO SANTO
Do mesmo jeito
Um doce canto
Dentro do peito.

Carito

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Selvageria & Barbárie


Rodrigo Levino, paladino das questões culturais e algoz das unanimidades asininas, encaminha email de Dona Cecilia Giannetti, colunista da Folha desde o início do ano e vítima da intentona da Sacra Família Brasileira por ter escrito o texto que republico abaixo – pra quem ninguém deixe de entender o absurdo de um país que venera Luciano Huck, solidariza-se com o Rolex do Luciano Huck, gostaria de botar no pulso o Rolex do Luciano Huck – e uma parte gostaria mesmo era botar a mão na senhora Luciano Huck. Com ou sem Rolex.

O Luciano Huck entrou nessa de gaiato, coitado (ou foi porque botou a mão numa repórter? talvez, inconscientemente, eu), mas foi a antítese mais à mão que encontrei pra contrapor ao obscurantismo intelectual da massa de leitores da Folha, que anda enviando e-mails aos borbotões chegando à redação da Ilustrada, em que sou chamada de "nazista", e acusada de querer acabar com a alegria da família brasileira, para usar as palavras da própria Giannetti.

Os italianos costumam dizer que tutto Il mondo è paese – numa tradução livre, todo lugar é provinciano. São Paulo – de onde suponho parte a maioria dos emails agressivos –, claro, é a quintessência desse provincianismo chulo com ares de poder econômico travestido de poder cultural.

Sem essa aranha: a visão da família ofertada por Cecilia é até sutil em comparação à realidade física. As manhas literárias da moça terminam afagando o quengo dos pretensos vilipendiados, tornando-os menos selvagens, menos bárbaros, mais simpáticos do que efetivamente são.

O único erro de Giannetti – a quem fui apresentado muito rapidamente no ENE, azafamada que estava com uma câmera digital e a proteção donzela de Levino – foi não ter lido antes o aviso:

“Não dê comida aos animais”.


Quem quiser dizer o que pensa do texto da moça, envie email para
ombudsman@uol.com.br

uma crônica familiar de cecilia gianetti


"É quase Natal e, principalmente nas metrópoles, as pessoas se organizam em violentas hordas para fazer compras. Quem acredita no fim da família nuclear deveria observar o fenômeno - seguramente à distância, como eu, acuada num banquinho da praça de alimentação de um shopping center. As gangues familiares percorrem os shopping como arrastões de classe média, aglutinações de gente ávida por crediários e embrulhos, parcelamentos e cadastros que requerem CPF. Incapazes de desviar de qualquer um que tente olhar as vitrines sozinho, formam uma corrente que não se parte, unida por laços de sangue e consumo. Roubam-nos tempo, paciência e, às vezes, até mesmo uma lasca de nosso dedinho do pé, quando passam pisoteando o que houver pela frente. Seguem como um imenso trator, sem desviar nem mesmo quando lançamos um inútil "dá licença?".

O paizão vai de mãos dadas com a filhinha mais nova, uma criança que atinge agudos na freqüência de 20 Khz. São duas peças-chave do arrastão consumista, caminhando quase sempre emparelhadas a uma quase sempre rotunda mãe. Esta, por sua vez, carrega um pacote junto aos quadris, adicionando pelo menos mais 15cm à parede humana.

O comprador solitário tenta furar o cerco inicial, imaginando que estará livre para andar em seu próprio ritmo ao ultrapassar a barreira criança + pai + mãe + pacote. Tal configuração é uma armadilha: é aí, justamente, que se vê impedido pela segunda camada da família-em-compras. Para locomover-se outra vez com desenvoltura, terá de passar também pela filha crescida do casal, abraçada a um mastodonte bombado em academia, ambos estrategicamente posicionados mais à frente. A voz da moça é a versão teen dos agudos da caçula, agora ajustados para conversar sobre tópicos que tornam preferíveis os gritos ininteligíveis da pirralha. Esse fator é uma arma importante no processo de fragilização da vítima: a insalubridade dos diálogos da dupla de adolescentes confunde seu raciocínio, imobolizando a presa enquanto dura o assunto do casal.

Se conseguir retomar a consciência e ultrapassar esse nível do arrastão, surgirá em seu caminho o obstáculo móvel: um guri de mais ou menos 5 anos de idade que se desprendeu da mão da mãe (lembre-se: ela está na retaguarda da operação, carregando um enorme pacote) e agora fica saracoteando lá na frente do grupo. Conforme o corpo estranho - comprador solitário - tenta retornar ao mundo exterior, indo para a esquerda, o guri vai para o mesmo lado; quando tenta escapar pela direita, ele acompanha seu movimento outra vez, ad nauseum.

Quem cai nesse redemoinho pode ser arrastado por quilômetros até que consiga terminar suas compras. Ou sem que jamais possa fazer o que pretendia no shopping. Há o caso de K., para citar apenas um exemplo, que, feito refém de uma família de consumidores selvagem e numerosa na semana do Natal passado, foi expelido de volta ao shopping tarde demais. Mais ou menos em abril deste ano, quando acabou novamente capturado por outra família, nas Lojas Americanas, durante uma promoção de ovos de Páscoa."

Cecília Gianetti

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Minha vida na prisão


Daí, que saí ontem ao sereno.

Um pouco de flanagem, um tanto de caminhada pra limpar os brônquios e bronquíolos do fumo fumaça e alcatrão.

Pra ter como teto, breve instante, o céu aberto e as estrelinhas piscando – que não as vi, porque nem olhei pra cima, confesso.

Tão acostumado que estou com o rés do asfalto.

Saí hoje também. Nesse ritmo virarei arroz de festa das calles amargas de Ciudad de los Reyes.

Embarquei numas de Mezzo cammin’ della nostra vita – modo erudito de chamar aquela caixa sem buraquinhos pra respirar que é o maior shopping da província, da região, das arábias.

Numa e noutra saída, me decepcionei com a falta de enfeites de Natal. Eles existem, sim, mas – e eu dizia isso outro dia – me parecem desproporcionais ao meu desejo de show, espetáculo, efervescência, estratosfera, brilho, glamour, paetês, luzes feéricas, broadway, níu-iórqui, níu-iórqui. Paris, que seja.

Não sei se foi a falta do açafrão no meu arroz, não sei se foram os camarõezinhos, tão miúdos, tão poucos, assim tímidos; não sei se foi como me postei, numa mesa de costas pra turba, de frente pro janelão da 15. O fato é que tudo me pareceu sem graça e sabor.

E me veio de esculhambar os conterrâneos, que pensam comer bem na tal Praça, no tal shopping. Ora, vamos! Aquilo é uma casa de pastos pra suínos esqueléticos! Mais: é um zoológico envidraçado, um simba-safári com ar enclausurado, bem protegido, reconheço. Se uma das feras que circulam por ali nos atacarem – ou, se vice-versa, dermos comida pros bichos – imagino que um dos guardas fardados os atacará – ou, nos atacará – com um bastãozinho elétrico de filme americano.

Pois, no tal zoo, a fauna é extensa: tem gorila, anta, zebra, rinoceronte, chimpanzé, avestruz, crocodilo, víbora, hiena, sagüi, rato, ratazana, camundongo, tem até – acreditem! – um par de veados desfilando e deslizando pelos corredores entre as mesas: e um deles vestido de oncinha!

Pois, uma camiseta sem mangas com estampa de oncinha! Simpáticos, esses veadinhos da periferia... Mais um pouco, passa um menino, com coroa de cartolina colorida, me encara, o encaro, se envergonha, tira a coroa.

A essa altura, mais da metade do arroz jaz frio diante de mim, perninha cruzada, olhar dândi enfastiado – voltem! voltem! onde vocês compraram a camisa de oncinha?

Não demora, não demora, passa o Papai Noel. Ele mesmo. Indisfarçável a roupa glacial encarnada, a barba de ilhéu náufrago, botas, cinto démodé. Olha pra mim por trás dos oclinhos de míope, eu olho pra ele por trás de óculo algum, conversamos não sei quê, nessa troca silenciosa de íris. Está acompanhado de uma mocinha vestida quase igual – digo: vermelho, branco, gorro, bota. Ao posto das calças, uma minissaia mal-ajambrada e pernocas idem. Não, não pode ser a Mamãe Noel. Uma filha temporã? Neta? Talvez, uma secretária, assistente, amásia, até os papais Noel sentem um comichão na virilha. Passam tão rápidos que não dá tempo nem de responder a mim mesmo. Devem andar à cata de curumins, se ainda existe algum crente.

Quanto a mim, o cárcere me espera.

13 Horas de


Não é que nem Jack Bauer, até porque não faltam 24, mas 13 horas pra encerrar a votação ao lado.

Coragem!

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Jingle Bell


Nunca o Natal me pareceu tão longe.

Enquanto perto.

Chegou dezembro e me parece que ainda estou em novembro, longe de acompanhar Alceu: “tenho dezembro e tenho janeiro e se não me engano tenho fevereiro se essa vida é um desmantelo me mate que eu estou muito vivo vivo”.

Chegou dezembro e não vejo a profusão esperada de luzes e rebuliço nas ruas. Ou serei eu que mal saio a elas porque não desejo buscar nem encontrar nada nem ninguéns.

Chegou dezembro e o Natal bate às portas que nem sino. Na matriz. Em Belém. Mas eu não ouço. Ou será porque eles não dobram por mim, que não amarro as alpercatas de Hemingway nem mergulho no rio com as pedras de Woolf.

No duro mesmo, me incomoda estar aqui, falando na primeira pessoa desse singular tão banal cotidiano comum.

No duro mesmo é porque o Natal deste ano me parece uma festa sem sabor, sem cheiro, sem papel de presente a ser rasgado com o prazer que só as melhores surpresas guardam – e aguardam.

Como se uma despedida indesejada projetasse sua sombra sobre a árvore de Natal que não montei, sobre o presépio que não construí, sobre as ruas de uma cidade que não mais verei – porque mudou a cidade e mudei eu, a cada dia, mês, ano, mais longe, distante daquele menino que ia ao centro da cidadezinha encantada apenas para ver as luzes tímidas, apenas para dar a mão ao pai, à mãe, e sentir-se alguém entre eles.


Jingle Bell 2



Um pouquinho de esperança: Flávio Freitas resgata a tradição de enviar cartões físicos no Natal. Não façam como eu, que provavelmente não conseguirei enviar nenhum, com a desculpa da falta de tempo etc.

Jingle Bell 3



E Pedro Pereira resgata a – também velha – tradição de dar presentes. Regalos autênticos, bem longe dos cartões de crédito que servem para quase tudo e dos shopping cê, empanturrados de uma pretensa alegria, protegidos do mundo real, triste demais para neles entrar.