sábado, 24 de janeiro de 2009

Explicação


O fato, crianças, é que estou sem inspiração alguma. Nem posso falar de tesão, pois que não falta. Carece, não. De pílulas imaginárias para ereções reais. Mas faltam palavras, dormidas, amanhecidas, sonâmbulas, docinhas, amargas, azedinhas, gordurosas, nicotinadas, faltam palavras que se arrumem em versos ou reversos, meias-nove e outras posições esdrúxulas no kama sutra literário. Falta, falta faz. O tal vazio. Vácuo. Despressurização. Escrever é uma aporrinhação, creiam-me. Espécie quando se tenta tirar leite de pedra, as mãos esfoladas, os dedos carcomidos, as unhas de dar pena. Sem cinzel. Sem martelo para a estocada final: – Parla! Dizem: ausência de útero. Dizem: saudade do peito materno. Dizem: nostalgia das horas. O que não dizem é como alinhar uma palavra após a outra, alinhavar o pano de fundo do cotidiano tentando edulcorar o banal. Tudo muito alinhado, pois. E alinhavado. Muito mais elegante, ele disse, o homem com uma dor. Empedernido, empertigado. Perdido no espaço, sem tábua de salvação, sem ventre de baleia onde tirar um cochilo. Sem índios canibais de quem correr na praia, à sombra dos coqueirais. Resta esse passar de uma calçada à outra, cruzar a rua para evitar o conhecido – que de desconhecenças granjeamos mais, bem mais, muito mais que essa vida dupla, quádrupla, sêxtupla, progressivamente geométrica, incapaz de régua e compasso cardíaco. Da vida que arrastamos sem pesar seu custo na balança, sem prantear mortos e feridos, morte e feridas que deixamos covardemente pra trás. Trezentos, trezentos e cincoenta, o outro disse. São como vozes de fantasmas, essas vozes, anelzinhos de uma corrente infinita. Perder a língua? Estar extasiado? Ele, mais outro, perguntou. E eu fiquei sem saber a resposta, envolvido que estava entre uma coxa e outra coxa, o triangulozinho glabro no meio, buscando com afinco e dedicação minha tábua, minha nave, a corda onde pendurar esse sonho partido, esse corpo dividido em cabeça, tronco, e membros, tudo muito desconjuntado, mesmo após ter sido, pois, alinhavado e alinhado. E, num tropel galáctico, fugiam-se de mim as palavras, como gazelas diante da fera de olhos luminosos, diante do arco de uma Diana caçadora, Acteão em retirada diante dos próprios cães. Entre um sonho e outro, o despertar tardio e fugaz, o virar-se na cama e encontrar um corpo e a sombra d’outro. Tábua, bóia, ventre da mãe-baleia. E, na queda, não encontrar palavra viva onde fincar as unhas, restar dependurado, entre a língua e o êxtase. Eu disse, eu falei, eu me confessei, aqui, neste confessionário sem padres sem freiras sem cilício sem báculo cajado ou bornal. Só o suceder-se de lamuriazinhas, de fezinhas, de alegrias comezinhas. Ah, ser crente e tão descrente. Estar à beira, sem queda ou salvação. Vendo as palavras, umas, em queda gravitacional; outras, no arrastar-se pesado pela areia fina da praia, exílio onde portamos nossas bagagens, a maré alta castigando baús e malas de couro, mochilas de viandantes e nécessaires plásticas. Ah, ser pobre e tão desprovido de glórias. Buscando fôlego onde fôlego não há. O pulmão tão contrito como um devoto ajoelhado sobre o milho em chamas. Perdida a língua, danificada a engrenagem mecânica do êxtase, sobra a dedicação de uma carta: então, prezada senhora, nós que nunca nos encontramos, até quando prolongaremos o desencanto? Então, cara, caríssima, tão improvável é a nossa convivência carnal que afastamos todos os móveis para o canto mais escuro da sala, deixando-a livre para o bailar das feras? Pois, dama, tão inútil atracar o barco ao madeirame escuro do cais se mostrou que fomos separados em camadas distintas de oxigenação, em alas distantes do mesmo sanatório, nossos lençóis maquiados de fluidos, sangue esperma lágrimas suor encontrando-se, ao fim, ao término, no final, na lavanderia subterrânea onde sepultaram-se as palavras, todas elas e mais os sinônimos os antônimos as divagações e explicações.




quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

rainsummer







Nessas tardes molhadas de agosto
Sinto a chuva lavando minha alma
Sinto o frio entrando pelos ossos
Como uma coisa um troço
Não sei explicar

Nessas tardes molhadas de agosto
Sinto a chuva lavando minha alma
Sinto o frio entrando pelos ossos
Como uma coisa um troço
Não sei explicar

Lavei as mágoas nos pingos da chuva
E aquela velha dúvida de te encontrar
Tô molhado como um passarinho
Perdi o ninho já nem sei voar
Eu tô molhado
Pingando chovendo
Chovendo pingando
Pingando tão só
Tô molhado
Chovendo doendo
Doendo sangrando
Sangrando de fazer dó
Tô chuviscando estou chovendo
Estou sofrendo de fazer dó
Chuviscando estou chovendo
Estou sofrendo tô causando dó

Mês de agosto é mês de chuva
Mês de agosto lava a alma
Mês de agosto é mês de chuva
Mês de agosto é mês de chuva
Mês de agosto lava a alma
A mágoa a mágoa


Alceu Valença

sábado, 17 de janeiro de 2009

Fun, fun





Sorriam, é verão, sol, praia, chuva, suor, cerveja, preguiça – e safe sex, claro.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

domingo, 11 de janeiro de 2009

Solstício














Lá.


De onde vim.


Assustado, cabelos desgrenhados, sujeira debaixo das unhas, odor de lixo nas roupas.


Lá. Onde?


Lá.


Do outro lado da praia, de onde vem o vento, soprando areia, criando e desencontrando dunas.


Quando perceberam minha presença se assustaram. A mocinha de cabelo Chanel, a primeira. Olho mau. Parece que a vi, resmungando, blasfemando, agourando, enquanto se afastava por trás dos outros, espanando com os pés a areia alva e fina.


Vi quando um acendeu um cigarro. A brasa inchando, como o peito de um sapo. Ou de alguém doente, quem sabe moribundo.


Vi quando a garrafa – já pela metade – passou de mão em mão, se demorando no colo do que portava um violão de doze cordas.


Meus lábios, então, em carne viva, meus dedos marcados pelo fogo.


Sei que viram meus olhos. E a piedade que tremelicava ali, fundo do poço. Quase clemência. Perdão de quê?


Tentei falar, mas só consegui emitir grunhidos. Até eu fiquei assustado ao me ouvir.


A areia espanada pelos pés da moça de Chanel.


Tocou com a ponta dos dedos, as unhas bem-feitas e pintadas de um esmalte rosado, uma correntinha de ouro. Nosso Senhor Crucificado na ponta, pingente.


A garrafa deu mais uma rodada.


O cigarro foi apagado. Uma esteira de fumaça partiu do rapaz que parecia liderar o bando. Bem apessoado, jaqueta jeans, boné virado pra trás.


Quem é você – ouvi a pergunta. Que provocou um alerta súbito dos demais, todos tensos, mas mais fortes e seguros pelo comando implícito do chefe.


A moça de Chanel deu de costas.


Meus joelhos tocaram o chão, minhas mãos pediram água. Tão cansado estava. À minha direita estourou uma onda, levantando uma nuvem fina de sal.


Os rapazes se aproximaram. As moças ficaram pra trás, um bando de gazelas assustadas. Em torno dela.


Daonde você apareceu – nova pergunta. Desta vez num tom raivoso, entre dentes.


Os sotaques eram fortes, arrastados. A miséria absoluta. A garrafa já vazia.


Um deles me empurrou, senti a areia fina de encontro ao peito, o outro apoiou o joelho ossudo contra minhas costelas, um terceiro quebrou a garrafa numa pedra próxima, enfiou o gargalho na altura dos rins.


Ela só olhava.



Por cima do ombro.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Chucho


Discover Chucho Valdes!



Pra ouvir
fim de tarde
uísque e gelo
ao lado
Ou
vinho e balde de gelo
sempre ao lado
de alguém, claro

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Cartola


Evite meu amor
Recuse os braços meus
Evitarei os beijos seus
Culpado foi o destino
Se somos dois feridos
Pois preparou a trama
E entregou ao cupido
Vem vem estais chorando
Por certo chorarei
Feliz está seu coração
E peço-te perdão
Das vezes que errei
Mas este amor evitarei

uma ficha na radiola


Discover Fernanda Takai!

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

primeiro post do ano: Leave yourself alone






Então, Senhora
Por que o espanto?
Se Deus desata lágrimas,
também eu posso quebrar-te o encanto.

Pois, Senhora
Vira assim de lado
Se é certo que o mal há de imperar
que próspero seja teu pranto.

Por fim, Senhora
não é a mim a quem deves agradecer
ou refutar –
É ao Tempo, à Poeira e ao Desencanto.