quarta-feira, 30 de setembro de 2009

senso


Comprei flores. Pétalas brancas, corola amarela, um amarelinho tão claro, com vontade de sumir.

É preciso ter flores em casa. Apartamento que se deixa respirar pelos buracos abertos do ar-condicionado que não há.

Não senti ainda algum perfume, se perfume existe. Vez por outra sobe um ar nauseabundo das ruas. Mas me recuso a senti-lo.

Só uma questão biológica, mesmo.



domingo, 20 de setembro de 2009

all you need


Falamos tanto de amor que agora esse amor se desgasta.







They've been spending most their lives living in a future paradise












Living in a pastime paradiseThey've been spending most their livesLiving in a pastime paradiseThey've been wasting most their livesGlorifying days long gone behindThey've been wasting most their daysIn remembrance of ignorance oldest praiseTell me who of them will come to beHow many of them are you and me

Dissipation Race Relations Consolation Segregation Dispensation Isolation Exploitation Mutilation Mutations Miscreation Confirmation... to the evils of the world

They've been spending most their livesLiving in a future paradiseThey've been spending most their livesLiving in a future paradiseThey've been looking in their mindsFor the day that sorrow's gone from timeThey keep telling of the dayWhen the Savior of love will come to stayTell me who of them will come to beHow many of them are you and me

Proclamation of Race Relations Consolation Integration Verification of Revelations Acclamation World Salvation Vibrations Simulation Confirmation… to the peace of the world

They've been spending most their livesLiving in a pastime paradiseThey've been spending most their livesLiving in a pastime paradiseThey've been spending most their livesLiving in a future paradiseThey've been spending most their livesLiving in a future paradiseWe've been spending too much of our livesLiving in a pastime paradiseLet's start living our livesLiving for the future paradisePraise to our livesLiving for the future paradiseShame to anyones livesLiving in a pastime paradise

[Stevie Wonder Pastime paradise in Songs in the key of life, 1976]

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

funeral blues



Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e que o tambor sancione
a vinda do caixão com seu cortejo atrás.

Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto — um laço no pescoço —
e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.

Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto
viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.

É hora de apagar estrelas — são molestas —
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de dar certo doravante.

[W. H. Auden]


[ Man Ray, foto]

sedex




07 Marrons Glacés Motta 17g

01 Piñones Vahiné 50g

01 Frigopoesia pequeños imanes con palabras

03 Piñones superSol 100g

01 maço de Winston CLASSIC 100’s

01 maço de Winston CLASSIC

01 maço de Lucky Strike ORIGINAL RED

01 maço de Lucky Strike sem filtro

01 maço de Lucky Strike embalagem ilustrada com ícones dos anos 60

01 maço de Pink Elephant [20 pink cigarettes]

02 maços de Camel

01 maço de Camel sem filtro

01 anjo vermelho de asas douradas

01 punto de libro magnético ENTRE DIOSES Y HOMBRES Réplica romana Museo Nacional Del Prado

dezenas de cartões postais [em branco]

02 pares de brinco

01 mapa de cidade

W. H. Auden Parad los relojes y otros poemas “por tu padre...”

Antonio Tabucchi La gastrite di Platone “en una mañana fria con nieve en Trento”

Rodrigo Rubio Equipaje de amor para la tierra “malas e baús cheios de amor”

Otros

que não encontro

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Quando a luz se vai



[Chagall, claro]



Nessas horas em que tudo parece suspenso – a tarde literalmente cai, o céu se veste de negro, os sons parecem minguar – pensa.

É quando a ausência dela se faz mais presente no homem.

E no que pensa o homem.

Se anuncia, em imagem, o que nem palavra mesma é – como um anjo, lírio branco na mão em concha. Se transmuta, no espaço, o que nem ainda forma tem – nuvem, pássaro, vôo de pássaro. Poente (as cores do poente). Sombreia, então – o canto dos móveis, o verniz da cômoda. O vaso de flores – as pétalas caídas, já secas. Como restos, como migalhas. Como cavacos. Brilha, no instante seguinte – nos cristais do guarda-louças, três, quatro prateleiras, no soalho do corredor. Uma meia sem par, ao fundo. (Nem tempo houve, nem haverá, saberá depois, de colhê-la.) Por fim, navega – pelo teto da sala, distante dos frisos, em milhões de luzes, em quadrilhões de sombras, em sonhos sem fim. Nem começo. O homem sabe: é única a paisagem.

Ou, simplesmente.

Bate à porta – essa ausência repentina, que só existe quando se manifesta, tudo tão paradoxal –, interfona, envia mensagens, torpedos de um submarino que naufragou e esqueceram olhar quando do último mergulho: porque então tudo que queriam era somente um beijo incendiando águas profundas. Esse beijo sem vésperas, esse abraço, aconchego, mar atlântico, esse suspiro, tornado mudo na linha do horizonte.

– Poente (as nuances do poente).

Quando a mão do homem, sobre a mão da mulher, faz crescer um redemoinho, na mão dele, é da mão dela que parte – estrelas, vaga-lumes e fogos-fátuos – tudo que brilha e reluz e não é ouro. Quando tudo, tudo que precisavam era um pouco de sal na pele. A dela, que em contato com a dele vibra e treme. A dele, que em contato com a dela, se aquece.

Se enxuga, ao vento, porta que deixaram aberta, ignorando as nuvens. No céu. Nos horizontes.

E o tropel dos cavalos, a roupa escura dos cavaleiros. Tudo aquilo que reluz e não é ouro.

Ah, hora suspensa de sons ao longe. Ah, ausência sua em tecido bordado. Ah, por que só assim me visita tua ausência – pensou o homem – enquanto ausência, enquanto falta, enquanto desejo e não prazer?

Ah, ela nada disse. Ela nada falou. Porque ausente estava.

Porque sem ser, não era.




domingo, 13 de setembro de 2009

tous les matins du monde










(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

[e. e. cummings traduzido por augusto de campos]




(i do not know what it is about you that closes
and opens; only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody, not even the rain, has such small hands


my girl's tall with hard long eyes
as she stands, with her long hard hands keeping
silence on her dress, good for sleeping
is her long hard body filled with surprise
like a white shocking wire, when she smiles
a hard long smile it sometimes makes
gaily go clean through me tickling aches,
and the weak noise of her eyes easily files
my impatience to an edge--my girl's tall
and taut, with thin legs just like a vine
that's spent all of its life on a garden-wall,
and is going to die. When we grimly go to bed
with these legs she begins to heave and twine
about me, and to kiss my face and head.

[e. e. cummings]



quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Mostre-me quem devo desejar




2. Para te mostrar onde está teu desejo, basta te proibi-lo um pouco (se é verdade que não existe desejo sem proibição). X... quer que eu esteja lá, ao seu lado, contanto que eu o deixe um pouco livre: maleável, me ausentando às vezes, mas ficando não longe; de um lado é preciso que eu esteja presente como proibição (sem o que não haveria bom desejo), mas é também preciso que eu me afaste no momento em que corresse o risco de atrapalhar o desejo formado: é preciso que eu seja a Mãe suficientemente boa (protetora e liberal), em volta da qual a criança brinca, enquanto ela cose calmamente. Essa seria a estrutura do casal "bem-sucedido"; um pouco de proibição, muito jogo; designar o desejo, e depois deixá-lo, como esses nativos amáveis, que mostram bem o caminho a você, sem no entanto se oferecerem para acompanhá-lo.

[Roland Barthes in Fragmentos de um discurso amoroso, tradução de Hortênsia dos Santos, Rio de Janeiro: F. Alves, 1990]




[espere carregar o vídeo para assistir de uma vez.]

[Buffalo 66, de Vincent Gallo, 1998]





terça-feira, 1 de setembro de 2009

Como abandonar um corpo.



[Ouka Lele El espejo]


Para abandonar um corpo deve-se antes calcular seu peso, massa e volume – e as dimensões que ocupa na alma humana. Deve-se saber, ainda, a linha que o costurou – se em algodão cru, se em fio metálico, se em nylon de pesca, ou cipó, ou capim. Apreender os modos e os caminhos dos nós é também de vital importância. Como penetrou na pele, idem. Hoje, sabe-se que os perfurocortantes são especialmente rancorosos.

Para abandonar um corpo deve-se entender qual instrumento responde melhor à necessidade imperiosa de medir sua sombra entre as ranhuras da calçada. Um certo conhecimento musical é válido, e de grande serventia, especialmente quando as sombras são do tipo helicoidal. Sombras do tipo coleóptero, é do conhecimento da gente que vive em laboratórios, são silentes. Sombras que arrastam redemoinhos são particularmente invejosas. Atrás delas é comum, e até esperado, que a matilha arda em febre, sedenta de sangue.

Para deixar um corpo ir – e esse trecho é fundamental – é preciso antes agarrá-lo. Com unhas, se necessárias. As mordidas, mesmo que arruínem o objeto, são permitidas. Os caninos não são mais contundentes que os molares. Atentem para o uso das mãos. Em muitas ocasiões o uso do sartório é de grande valia. Espécie quando traz em sua contratura a memória recorrente do que já foi – e ainda não se foi.

Para deixar um corpo é preciso antes tê-lo recebido.

Em toda a sua intensidade e grandeza. Em toda sua extensão e profundidade.

Para abandonar um corpo é importante manter as mãos suaves e perfumadas. Colher amoras é recomendável. Afrouxar a coleira de cães pode trazer bênçãos. Acreditar no infinito, leva a atalhos.

Muitas linhas têm as mãos. Em suas plantas. A linha da vida, a do tempo, amor, doença. É quando se separam, não em seu encontro, que reside o segredo de bem deixar partir o corpo que se deseja que parta.

Olhar as rugas no espelho ajuda nos casos de corpos antigos. Mudar a disposição dos móveis da sala, naqueles mais novos. Corpos de um dia podem ser mais perigosos do que corpos com muita existência nas costas. (Os cálculos são feitos a partir da angulação das vértebras.)

Para abandonar um corpo deve-se evitar caminhos muito sinuosos, veredas muito afastadas, senderos luminosos. A lua nova é ideal. Em noites de lua plena, esqueça. Apague as luzes, retire os eletrodomésticos das tomadas, ferva água numa chaleira. Após uma noite de mergulho e imersão, aguarde ao menos quarenta dias – para proceder à nova tentativa. Antes disso é não apenas inútil como altamente desaconselhável. Durante a quarentena o exercício da dança mostra-se excelente bálsamo. Se não cura feridas nem acelera cicatrização, ao menos conforta.

É preciso estar descansado, ao abandonar um outro corpo. Há registros de corpos extenuados que se deixaram levar junto ao corpo que se pretendia abandonar. Desconfia-se que esse era o real desejo. O encanto. O alumbramento. Mas são casos perdidos e não devemos com eles nos preocupar.

Esse é um manual para quem precisa abandonar com premência o outro corpo.

Para os que desejam sobreviver.

Para abandonar um corpo é preciso estar atento aos primeiros sinais de degeneração. Recorrência de sonhos. Olhos abertos colhendo estrelas em plena luz do meio-dia. Arrepio n’alma.

Casos em que o sujeito prefira acompanhar o ondular do vento nas pétalas das flores da campina em vez de pedras carregar são condenados, fadados ao fracasso, impossibilitados de solução.

Para abandonar um corpo é obrigatório conhecer o estado da casa onde o corpo reside. A coabitação dificulta, mas mesmo sem esse antecedente, o esforço pode ser maior do que se imagina. Os novos manuais não mais diferenciam casos assim. Os tempos são outros etc. E quando os tempos são outros etc. não adianta insistir em ilusões perdidas, em bosques de replantio, em rearranjos astrais.

Não adianta.

Desmontar uma casa em pedaços que não se unem jamais é tarefa que exige mais cérebro do que músculos. É trabalho de Heracles, apenas pela dificuldade envolvida. A isso nomina-se metáfora. Não se carrega um caminhão de mudanças com metáforas. O abajur dourado? A caixinha de música? A mulher grávida entalhada na madeira? O quadro de Peter? O long-play riscado? Para abandonar um corpo os tempos são outros etc.

Para abandonar um corpo procede-se assim: com uma leve pressão ao contrário, abra os dedos, um após o outro. Feche os olhos. Ouça o vento. Se ele tornar-se excessivamente rumoroso é você quem foi largado. E o corpo abandonado é o seu.