Nos anos em que mais Carlão de Souza pintava, bordava e costurava pra fora e pra dentro da Cidadela dos Reis, eu flanava pra lá e pra cá, sem destino.
Me bastava uma cerveja, no início gelada, depois como viesse, e vários pares – a começar por um par de olhos, que, como se sabe, são a janela d’alma. Como alma sem corpo só pode ser assombração, os demais pares eram mais que necessários.
Eram também os anos em que eu fugia dos poetas potiguares como o capeta da cruz santificada. De esquisito, convenhamos, me bastava e avançava eu mermo.
De longe, longinho, eu acompanhava a trajetória gauche de Don Carlos. Nas páginas dos jornais de ontem e de antontem. Noite e madrugada.
Nosso último encontro anônimo, amacord, foi na soleira encarnada do sebo, ribeiras da Rio Branco, o sol castigando a espera na parada d’ônibus, as bundinhas da moças tecendo sombras na calçada enquanto subiam, pé ante pé, nos monstros de ferro e tíquetes estudantis.
Eram não sei quantas arrobas de malandragem paquidermicamente plantadas diante de mim. Ao alcance da mão. O cruzamento bem-sucedido de Bukowski com Macunaíma. Ele tinha de pegar o transporte pra Siara Minor, tão cordato estava, tão submisso à coleira amorosa de Sônia, que não foi ainda ali que fizemos o amor que os machos fazem – entornando litros e mais litros de cerveja.
Don Carlão “Carleone” de Souza ri com a barriga e com a miopia dos olhos – o riso mais gostoso aos olhos em que pese a recomendação enfastiada do doutor.
Depois, numa noite estranha, numa terra estranha... Não, não: a noite não era tão estranha, afinal, e a mansarda era doutro poeta, amigo daqueles entranhados que nem bicho no pé, cumichão e agonia, amor e dor, num-sei-o-quê e êxtase (encontrem aí algo pra contrapor ao êxtase que tô com preguiça). Pois... etc etc... ... nos deparamos, olho no olho, não dava mais pra esconder a timidez recíproca. E a conversa seguiu, dernentão, como se a gente nunca tivesse sido separado na maternidade de Areia Branca – se é que existia, à época, maternidade em Areia Branca.
Fez por outra Carlão ainda me olha desconfiado, com o rabo d’olho (que certamente Rêgo e de Sousa vão maldar), como se eu fosse um legítimo filho da civilização sucroalcooleira, indigno da sua confiança. Mal sabe ele o que o Augusto Imperador Adriano – de quem somos súditos infiéis – já descobriu há muito: que somos apenas uns animaizinhos esquisitos virando a esquina e assustando quem não nos conhece.
4 comentários:
Rolou um clima. Puta que pariu.
só lacan explica, rodrigo.
"animaizinhos esquisitos" foi o ápice, caro midc. esse texto me fez rememorar o primeiro encontro com carlão: chegou atrasado no DN, olhou pra mim com cara de ressaca e de poucos amigos e disse, ei, nova estagiária, você está atrasada. e eu respondo: ué, tava te esperando...
bjs, siga o escritor incrível de sempre, que já dá para desejar feliz natal, Sheyla
Já contei uma vez pra Carlão: eu morava em Madrid quando Mário Henrique me enviou "Crônica da Banalidade"... e eu, também Carlos, li meu xará de Souza em meio à movida madrilleña que você me apresentou... 02 Mários, 02 Carlos, muitas crônicas... Natal, Pirangi, Madrid, Natal, Areia Branca, Ponta do Mel, Firenze, Roma, Nísia Floresta, Timbó, Natal, Pirangi... Tenho lembrado muito de Délio nesses dias, quando ele dizia mais ou menos assim: "Caminhos passam e levam sempre a um mesmo lugar. Nada muda, tudo é transitório, apenas um elo para dividir e ligar"...
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