segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Tiroteio em Cidade dos Reis

Leio no sempre bem informado blog da Thaisa Galvão que as balas andam se perdendo por entre os palácios da Areia Preta, costa urbana de Cidade dos Reis.

Tenho parentes, amigos, conhecidos, morando ali. Deveria me preocupar. Não me preocupo.

Cada vez que a mídia nativa foca o morro de Mãe Luíza e seus moradores, sinto um cheiro de podridão, como no Reino da Dinamarca.

Mãe Luíza é a menina dos olhos, inalcançável e inatingível, de 11 entre 10 empreendedores do mercado imobiliário papa-jerimum, silvícolas ou colonos. No alto de uma imensa duna, são 360 graus do melhor da paisagem – farol, Atlântico, rio, dunas, mata, e os prédios da Cidade dos Reis tão longe tão perto, aos seus pés.

Lugar para príncipes, pois, não para plebeus.

A semelhança com os morros cariocas não passa de acidente geográfico: em Mãe Luíza não existe o caos apocalíptico de barracos nem a inflação de almas. Não creio, tampouco, que os índices de criminalidade cheguem aos pés da Baía da Guanabara.

Mas a elite potiguara gosta de espelhar-se na grama do vizinho, preferencialmente aquela Rio-SP-Miami: não basta ter um Rollex ou uma Vuitton – é preciso alguém para cobiçá-los ao ponto de o grito revoltado em defesa do patrimônio. A que ponto chegamos, meu Deus? Tal qual em Ipanema, Leblon, Augusta, um Absurdo! – dizem as madames com ou sem cachorrinhos.
Opinião essa, apresso-me a ressalvar, não compartilhada pela blogueira, que começa seu texto justamente assim:


"Sabe aquela coisa de balas perdidas entrando em prédios de
classe média alta que a gente só vê na televisão e acha que só acontece no Rio
de Janeiro?
Pois, infelizmente, Natal já tem disso, sim senhor."

(Nesse ponto, madame Y teve um faniquito, chamou o mordomo moreno-pardo, a secretária incolor e, antes dos sais, ligou pras amigas.)

A sensação de perigo, conjecturo, é também símbolo de ascensão social. Balas perdidas? Chegamos lá.

Todos se preocupam aonde elas chegam – um perigo, um descalabro etc. Natural e com razão: a gente de bem, que pagou caro pra morar diante do mar, não pode ficar refém do terror de a qualquer momento ver entrar pela vidraça a morte travestida de cápsula desatinada. Mas não vejo ninguém preocupado com o de onde elas partem e com os demais moradores da polis, os miseráveis, coitados, que estão lado a lado dos atiradores. Afinal, são eles os mais propensos a receber balas, perdidas ou achadas.

O texto continua, descrevendo a trajetória da bala em detalhes: na altura do 15º andar ricocheteou numa esquadria de alumínio do banheiro e caiu lá embaixo na quadra de esportes.

O dono fez uma “verdadeira varredura” no prédio.

O que significa a tal varredura não sei dizer.

Nos comentários, uma moradora revela, indignada: “há 15 dias mataram um em mãe luíza e vimos o tumulto pela nossa janela”. Grifos nossos, meus. Em Mãe Luíza, apreendemos, as balas matam anonimamente, fulanização da morte. Em Areia Preta, correm o risco de acertar um figurão. Ainda: em Mãe Luíza um crime seguido de morte provoca “tumulto”; em Areia Preta, mesmo sem mortos ou feridos, “revolta e indignação”. Como o pessoal pode, tá podendo, fica a sugestão da brava moradora: “Os moradores de Areia Preta devem tomar uma atitude já que o poder público não toma, quem sabe contratando vigilância particular. Talvez essa seja uma saída”.

Esqueceu de citar que a vigilância, além de particular, deve estar obviamente armada.

E que o tal do sujeito a ser contratado para o cargo de xerife privado deverá vir, também obviamente, de um desses bairros como Mãe Luíza. E entrar pela porta de serviço, como aquele projétil desgovernado citado noutro comentário de ilustre cidadão: “também já vivemos esse drama de bala perdida no nosso prédio, sendo que ela entrou pela área de serviço”. Mui educada, a bala, e consciente de seu devido lugar. Quase quase digo: menos mal, na pior das hipóteses matará apenas um serviçal.

Não digo, que com essas coisas não se brinca.

Pois.

Dizem ser o bairro “um dos mais violentos de Natal”. Ora, vamos, se é violento por que não combatem a violência e protegem da violência, antes de mais ninguém e nada, quem mora ali?

A menos que sejam todos criminosos.

Ah. Agora eu entendi.





Lourenço Mutarelli, Transubstanciação. São Paulo: Dealer Editora, 1991

3 comentários:

Mme. S. disse...

meu olhar vai na mesma direção da paisagem que você desenha nesse excelente texto, meu caro. uma boa abordagem, uma visão diferente e bastante serena. (desculpe os adjetivos, mas me foi inevitável)
Sheyla

Moacy Cirne disse...

Um texto como poucos, com sua ferina ironia, sua crueza conteudística. Excelente, como já disse Sheila. Abraços.

Anônimo disse...

mas, mas, mas, dia 14 serão todos membros do mesmo bloco com mais de mil palhaços no salão. ora vejamos, hilneth correia promove às vesperas do feriado um rega-bofe pelos seus quarenta anos de colunismo social, pasmem, patrocinado pelo governo do estado e pela prefeitura. se o governo é de todos, como dizem, seus patrocínios também são e porque não, as festas também. juntemos uma caçamba com os pobres de mãe luíza, lisos, feios, sujos e malvados, para enfim conhecerem pessoalmente os donos dos apartamentos nos quais eles brincam de tiro ao alvo. a festa é no pirâmide, dá pra ir até de pés.