segunda-feira, 29 de outubro de 2007

As bestas


Caio Blat encarna nós, moços e moças nas janelas indiscretas do mundo [foto do site do filme]

Os 9,5 leitores deste blog não devem confiar no subscrito para manter-se atualizados sobre qualquer assunto, aviso.

Quem avisa amigo é, diz o ditado. Eu, não.
Sexta passada, por exemplo, outubro já nos seus estertores, me obrigo a assistir ao Tropa de elite. Não vi nem em dvd pirata. Devo ser o último silvícola que ainda não fez contato com o tal capitão ou comandante Nascimento.

Imbuído deste sentimento de culpa cristã, vou procurar a programação dos únicos cinemas decentes de Cidade dos Reis – todos indecentes, diga-se de passagem.

Tropa de elite tem horários a dar com o rodo: a partir da décima terceira hora o telespectador é mais bem servido que muita linha de ônibus. Eu disse telespectador? É como se deve chamar os freqüentadores dos cinemãos pop corn.

Mas eis que um título, pura poesia, me chama atenção no meio das palomitas: Baixio das bestas. E me desvia da mira do tal Nascimento.

O que eu sabia de Baixio das bestas pra querer ver tanto esse filme?

Pouca coisa:

Que é da turma de Pernambuco, uma espécie de linha cruzada, no celulóide, com o mangue musical de Chico Ciência e companhia.

Que é da linha toda maldade será recompensada – estupros realísticos, prostituição infantil, bas-fond sem maquiagem nem efeitos especiais.

Que os críticos do Sul Maravilha caíram de cacete, no filme e em seu diretor, Cláudio Assis – apesar de prêmios importantes em Brasília etc.

Lembrei especialmente de um artigo da Piauí, naquela seção – “esquina” – onde são desovadas as matérias que eles julgam não merecer as dezenas de páginas que outras merecem e com as quais se traveste de new journalism e que tais.

Lembrei também que deveria me preparar pra ver o filme em meio ao barulho de sacos de pipoca e embalagens plásticas de bombons e ao ruge-ruge da plebe menos interessada que eu nas margens (intelectualóides) da vida.

Fui.

Primeira surpresa, o ingresso a tão somente quatro reais. Brasileiro adora se dar bem, eu inclusive.

Segunda surpresa, o gordinho meio bicha que sentou-se quase, eu falei quase, ao meu lado, e estreou a garganta profunda com um Posso começar a comer? Seguido do fru-fru dos plásticos.

Pois, o rapaz não deu um pio durante todo o filme, o que me desconcentrou um pouco, confesso.
No mais, Baixio das bestas ficou por ali, se equilibrando sem grandes emoções nem perigo algum de despencar prum lado ou outro do muro.

É tão bem feito em seu rudismo agreste, tão realista em suas paisagens canavieiras, tão íntimo o olhar com que veste e despe personagens, tão normais as fisionomias dos atores, noves fora o cabelo cenoura do Matheus Nartche... Nachtenga... bom, vocês sabem o nome – enfim, tudo desce redondo, feito propaganda de cerveja. Só que sem o glamour da propaganda de cerveja, se é que vocês me entendem.

Baixio das bestas me lembrou Ritual dos sádicos, 1970, José Mojica, Zé do Caixão, Joe Coffin. O despertar da besta era o título original, censurado durante décadas. Isso, essa lembrança, antes de sexta-feira. Depois, visto o filme, as semelhanças continuaram através das diferenças: enquanto Ritual é a caricatura de um grupo de pervertidos nos anos 70, em Sumpaulo, Baixio é o retrato de grupo de um grupo de jovens normais nos anos 90 ou 00, na Zona Canavieira, Nordestão brazuca. Um era cinema fantástico, o outro é quase cinedocumentário, realismo, neo-realismo, velho-realismo.

Não é o grande mérito do filme, como me questionou um amigo. Mas é inegável que o retrato de Claúdio Assis para os canaviais, as vilas interioranas, os postos de beira-de-estrada e seus habitantes é um retrato sem retoques. Sem aquela pátina verniz brilhante a que nos acostumou o padrão dito global.

(Parêntesis: o blogueiro lembra-se muito bem quando, décadas atrás, nas ladeiras de Olinda, o repórter da Globo preparava-se para entrar no ar e mandar via éter o mais que famoso carnaval pernambucano e a plebe começava a berrar: O Povo não é bobo, abaixo a Rede Globo! Fecha parêntesis.)

Talvez seja isso o que realmente incomoda a uma fatia dos críticos: o descompasso com a estética edulcorada da emissora do Coronel Marinho; a contramão com que rejeita, e foge até, da estética de um Cidade de Deus, pra citar outra exemplo da exceção que influencia, pós-sucesso, a regra.

A reconstituição da casa do personagem de Caio Blat é exemplar. E só plenamente reconhecível em seus mínimos detalhes por quem vive há tempos no Nordeste. Errado, ainda, classificar os garotos como “agro-boys”. Eles fazem parte, sim, de uma elite, mas sem a distância abismal que vemos no interior de São Paulo, e mesmo no Nordeste.

Também os atores e atrizes – embora alguns, vez em quando “globais” – não têm aquele sotaque ridículo de telenovela mal acochambrada. Os diálogos soam naturais, há um excesso, sim, de palavrões, mas nada que contrarie a realidade do cotidiano.

É preciso ser muito besta pra pensar que o retrato sem retoques de Baixio seja o único de uma região com mil e uma diferenças e outras tantas semelhanças. Mas é inegável que o foco escolhido – mais para satisfazer e em função da estória em si – é apurado e fiel àquela porção e realidade que aborda.

Alguém falou (Ricardo Calil, na Folha) que a estética de Baixio é “a estética do choque e o desejo de transgressão”. Que Assis é um “dos cineastas brasileiros especializados em personagens e situações sórdidas”, embora reconheça ser “o mais talentoso”.

Sinceramente, Baixio choca porque tem uma história chocante a contar. É sórdido porque é sórdida a vida, nos grotões ou nas metrópoles. E só é transgressivo para quem se acostumou tão somente aos adultérios e assassinatos das novelas das oito. Não é um grande filme enquanto Cinema. Não tem arroubos memoráveis, não desconstrói nenhuma linguagem cinematográfica, não ousa, a não ser no tema e no tratamento cru com o qual o aborda. Não acredito que tenha – apesar do início em tons de manifesto contra o ciclo, “civilização do etanol” – a pretensão de tratado sociológico, de denúncia, de auto de inquisição. Não tem o desejo explícito nem implícito de empurrar moral alguma na goela do espectador. Não é imoral, ilegal, nem engorda.

3 comentários:

Moacy Cirne disse...

Não, meu caro, você não é o último silvícola a fazer contato com o comandante da Tropa de Elite. Eu também ainda não o fiz. Tenho outras prioridades no momento; na próxima semana, quem sabe? De resto, concordo com você, em linhas gerais, nmo que se refere ao filme de Cláudio Assis. Um abraço.

Anônimo disse...

Mario Ivo, os outros 9 leitores eu não sei quem são, mas o meio aí sou eu. Parabéns pelo texto sempre pertinente e bem escrito.

midc disse...

esse papo de pouquinhos leitores é lero besta de escrevinhador - mas a coincidência com o "meio" não é menos agradável de q vê-lo por aqui... apareça sempre 0,5!