[Foto autor desconhecido. Anna Magnani no filme de Mario Bonnard, em 1943]
No início foi quase insensível.
Eu escrevia sobre Bertolucci e Pasolini, lembrando de quando foram vizinhos em Monteverde, zona do bairro Gianicolense, em Roma. Daí para a recordação dos Ragazzi di vita e sua inspiração nos meninos das casas populares de Donna Olimpia foi um pulo. Ou, a descida da ladeira.
Daí para me lembrar que eu também vivi ali... foi...
No início foi quase indolor.
Eu queria rever as fotos do número 45 de Via Giacinto Carini. Nesses casos a internet é uma mãe. Um mundo onde reencontrar referências para as memórias perdidas, ou para as não-memórias.
Um link puxa outro e eu revi o número 30 de Via di Donna Olimpia.
Onde fui feliz.
Mais que feliz.
Às vezes tínhamos um ovo em casa. E não mais que isso. O suficiente para assar uns biscoitos. E sorrir.
Nunca fazia frio: a calefação era subsidiada pelo governo, uma espécie de Frio Zero. Através dos janelões sempre abertos o sol romano banhava todo o apartamento.
Antes, morávamos em San Lorenzo, no outro extremo da cidade. Num apartamento construído ilegalmente no teto de um velho prédio, debruçado para a estação de trens, Termini. Era minúsculo, muito minúsculo. O aluguel começou a ficar caro, as goteiras começaram a molhar os livros, um amigo nos ofereceu o apartamento que mantinha fechado. Tinha um contrato com o governo, pagava pouquíssimo por mês, não poderia desistir nem sublocar – a não ser para alguém confiável.
O amigo era Silvano, irmão de Antonella, casada com Nando, que apreciava cebolas e escrevia sobre cyberspazio. E, em mais uma coincidência cinematográfica, Silvano e Antonella eram irmãos de Fabrizio Forte, que tinha interpretado Gavino Ledda quando menino em Pai Patrão, dos irmãos Taviani.
Quando entramos ali pela primeira vez, os dois ambientes amplos, pé direito alto, quarto e sala, pareciam os escombros de uma guerra. Na parede do quarto de dormir tinha um afresco da Praça Vermelha de Moscou. Era simpático, mas preferimos apagá-lo.
Os amigos ajudaram a pintar e a limpar todo o apartamento. Rosa, Maurizio, Marcello. O pai de Patrizia, experiente, nos olhava sarcástico: o que fazíamos em horas ele pintava em minutos. E melhor.
A cozinha era pequena. Acolhente.
E tinha elevador! Em San Lorenzo subíamos oito lances de escada até chegar ao teto...
Mas o móvel, estilo “arte povera”, que Alberto nos deu, não coube no ascensor. O vizinho do subsolo, barbudo, forte, nos salvou, carregando-o nas costas junto com um colega, vencendo os seis andares.
Não lembro seu nome. Foi um dos poucos vizinhos simpáticos que tivemos. Não que fossem antipáticos os habitantes de Donna Olimpia, mas éramos estrangeiros, em todos os sentidos – e um apartamento como aquele era cobiçadíssimo. O barbudo, de poucas palavras, morava com a mulher num apartamento improvisado no subsolo, onde uma época eram as lavanderias coletivas. Sua mulher era a cara de Anna Magnani. Mesmo. E falava como La Magnani, com um acento fortíssimo de italiana do povo.
Tinham dois velhos pastores-alemães e uma coleção de bonecas. Não tinham filhos.
O pátio era amplo, com poucos canteiros malcuidados e algumas árvores esquálidas. Nele não se podia entrar com carro. Às vezes, esquecíamos de desligar o motorino. Tinha sempre alguém, atento, pra reclamar.
A vizinha de porta era uma típica bruxa italiana. Pintadíssima, brega, cílios postiços, batom, anéis, pulseiras, correntes. E um cãozinho histérico. Foi ela quem nos envenenou a primeira planta que pusemos no corredor aberto.
Pintamos a parede da sala de laranja.
E a do quarto de azul.
Na esquina, o lixo era valioso. Ainda durante a reforma, encontramos duas camas de mola, novas. Levamos pra cima. Numa manhã cedinho, uma botelha velha de vinho, o vidro verde, grosso.
Tínhamos um sofá-cama na sala. Sempre aberto, dormíamos mais ali que no quarto. Depois de anos sem televisão, trouxemos uma da Grécia, no ônibus do senhor Λαγός (“coelho”). Como bons retirantes.
Para chegar às casas populares, podia-se percorrer até o fim o Viale di Trastevere, dobrar à direita na altura da estação e novamente à direita. Mas preferíamos subir o Gianicolo, desde a parte velha de Trastevere, passar pela Porta di San Pancrazio, e descer. Em dois, o motorino não deveria agüentar – mas agüentou, até o fim, quando teve que ser vendido pra financiar outros aspectos duros da vida.
Não íamos muito ao bar-restaurante da esquina, senão para uma garrafa de vinho romano e barato – vinodellacasabianco, como na música do Durutti Column. Na parte “mais nobre” de Donna Olimpia tinha uma sorveteria que servia um ótimo sorvete, com pão, recheado de nutella. Mais longe, no Viale di Trastevere, próximo a Porta Portese, podia-se comprar tortas maravilhosas, de ricota, para viagem. O lugar era simples e me lembro do retrato imenso de Sai Baba na parede. Subindo outra ladeira, na direção oposta a Monteverde, o mercado de San Giovanni era um espetáculo de queijos, laranjas da Sicília e Camels contrabandeados.
Foi em Donna Olimpia que despedi-me de minha filha, antes de eu voltar para o Brasil e ela ficar em Florença. Ela desceu o elevador com sua mãozinha colada à minha. Eu desci o elevador com minha mão colada à dela, numa viagem que parecia nunca chegar ao térreo. Depois, nos despedimos e choramos. Eu chorei um dia inteiro seguido.
De Donna Olimpia, partimos uma madrugada escura. Elio não quis nos levar. Mandou invés uma Mercedes com motorista. Sabia que em muitas ocasiões, a vida nos foi difícil. Queria que partíssemos alla grande, como se diz em Roma.
Em Donna Olimpia, recebemos um único hóspede, inesquecível: Angeles Laporta [Santiago-Natal-Madrid-Roma]. Foi ela quem desenhou as ilustrações que acompanham essa confidência[no post acima]. Ao lado do desenho ela anotou:
“Mayo 30
1997
Sexto andar
aos telhados de Roma
o teto de céu lavado
as antenas, as antenas,
colheita das palavras
rumo das cores e da
estridência
da mesa de trabalho de
Mário e Pola
a janela pela manhã.”
1997
Sexto andar
aos telhados de Roma
o teto de céu lavado
as antenas, as antenas,
colheita das palavras
rumo das cores e da
estridência
da mesa de trabalho de
Mário e Pola
a janela pela manhã.”
É só um retrato na parede, mas como dói.
[domingo de setembro]
Um comentário:
Quando menos esperei estava imerso na atmosfera do texto.
Muito bom
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