quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Feira moderna em Cabul, mercado de animais no Rio


Literatura é, cada vez mais, um negócio. Mais atrelado aos negócios que a idéia romântica de um fazer literário, associado a artesanías e boemias e fome e dores de amores.

As tais feiras literárias de negócios são a prova do crime.

Crime entre aspas, óbvio, que não somos, neste quesito, preconceituosos.

Se já são um acontecimento mundial, há décadas, essas feiras no Brasil ganham ares ainda mais festivos e carnavalescos. E se revestem, como tudo mais, dessa necessidade premente de acontecer. De ser e fazer sucesso. De celebridade. Féime, cantava Bowie.

A matéria de Sylivia Colombo e Lucia Valenttim Rodrigues é quase uma novela exemplar [ontem, na Folha, para assinantes].

As repórteres começam profetizando a guerra a ser travada entre uma turma de escritores, na Bienal do Livro do Rio.

Em comum, a palavra “Cabul”, também presente numa das mesas de debates – A verdade sobre Cabul.

Eu sou o livreiro de Cabul, O salão de Beleza de Cabul e As andorinhas de Cabul, são alguns dos títulos que deverão ser jogados na mesa – ou, quem sabe, na cara dos autores presentes.

Parece que quem bateu o pontapé inicial foi O livreiro de Cabul, pelos pés da jornalista norueguesa Asne Seierstad.

Se não tivesse vendido horrores, o milagre econômico da multiplicação da capital afegã, provavelmente não aconteceria.

E se Seierstad deu o chute inicial, Shah Muhammad Rais, o “verdadeiro” vendedor de livros, tomou a bola e cabeceou, escrevendo – e vendendo horrores, também – a sua versão, da sua própria história.

Segundo a Folha, o livreiro de Cabul disse que estão todos "tentando ordenhar a vaca".

Rais acha que a vaca é sua, claro.

Pode ser, mas é uma vaca com muitas tetas.

A cabeleireira americana Deborah Rodriguez morou em Cabul, onde, como sugere o título do seu livro, tinha um salão de beleza.

Sintomática transposição – das estantes de livros para os espelhos, tesouras, pentes, escovas. Todo escritor é um famélico egocêntrico. E um pavão empoado.

O argelino Yasmina Khadra, autor das andorinhas (de Cabul, donde mais?), deve olhar atravessado a perua americana, provavelmente de origem hispânica (olha meu preconceito aí: só porque é peluquera não significa que seja perua, dona Deborah, nem cucaracha, la señora Rodriguez).

Realmente, o debate promete: Khadra nunca esteve em Cabul, Rodriguez morou lá mas já deu o pira, e Rais é o único autêntico nativo. E o legítimo dono da vaca.

Da senhora Seierstad não dou notícias. Deve ter se fartado de tanta mala leche e está procurando outro rebanho pra apalpar.

Mais esperto é outro autor presente na bienal, o ex-soldado norte-americano Jay Kopelman, que invés de ordenhar a vaca se atracou com um cachorrinho: não li o livro, não sei se vou ver o filme (alguém já deve estar pensando no assunto), mas a história deve ter sido mais ou menos assim:

o bravo guerreiro de Alá-Bush caminhava aterrorizado com os horrores da guerra
em meio aos escombros de Cabul, quando ouve o choro miúdo de um animalzinho.
Seria uma criança afegã? O rostinho sujo, os olhinhos esbugalhados, a língua
presa pelo traumatismo da guerra? Não, senhores, senhoras, meninos: era Lava, o
cãozinho, que abanou o rabo e lambeu o rosto exausto do senhor da guerra, um
coração maior que a mira do seu fuzil.

O meu relato, obviamente, está errado. Kopelman escreveu de Bagdá, com muito amor, um livro intitulado, pois, De Bagdá, com muito amor.

Bagdá, Cabul, Argel, Washington, Rio – não é tudo a mesma merda literária e humana?
Pois, viva a mala leche, viva a leche buena: ler é o melhor alimento para mamíferos semi-alfabetizados!


P.S.: Sinto informar que não sei se, logo mais à noite, na cidade maravilhosa, a vaca e o cão e as andorinhas acompanharão seus autores; se a cabeleireira comparecerá com uma burka; e, estou pensando seriamente em trocar o nome deste blog, para cidadedecabul.blogspot

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