sexta-feira, 7 de setembro de 2007
Nos passos do Pastor
Parece que foi ontem.
Foi.
Eu digito o nome, mágico, sonoro, quase miragem: J-o-h-n-d-o-s-P-a-s-s-o-s.
“Pósto” – verbozinho infame, presente do indicativo de postar, o que me faz sentir mais ou menos um galinha depenada cacarejando ninhos histéricos; posto, enfim, e me dou um passeio ao centro da Cidade dos Reis.
Casario baixo, ruas estreitas, pouca gente nas ruas estreitas, muitos carros estacionados nas ruas estreitas.
A avenida Rio Branco abre-se como uma clareira uma explosão luminosa um clarão de ônibus tossindo fumo negro.
Atravessar a Rio Branco fora da faixa de pedestres é quase um esporte local. Bem pouco aventureiro, ressalte-se.
Sem a parada d’ônibus em frente, o Sebo Encarnado não existe. Ao menos por inteiro. Tanto quanto os livros desmantelados, equilibrando-se bêbados uns sobre os outros, uns entre os outros, derramando-se das estantes como água duma torneira esquecida aberta, os passageiros que esperam na parada em frente, são eles e elas o verdadeiro espírito do Sebo. Elas mais que eles, que espiar a mulher alheia é esporte maciçamente masculino.
A janela aberta do mundo.
A clarabóia, o periscópio gigante, pulmão artificial das entranhas de papel e bolor.
O Sebo Encarnado é uma caverna.
Abimael Silva é seu pastor.
E nada nos faltará.
Nos escombros da caverna tem um armarinho desconjuntado. Não lembro se de madeira ou de metal. Não lembro se com ferrolho ou desprotegido.
É a cartola de mágico do livreiro.
Ele ergue-se da sua espreguiçadeira, as havaianas contraídas em passos rápidos, inclina-se e de lá sai com um volume na mão, já lendo.
O senhor é meu pastor e nada me faltará.
Uma vez, de lá saiu A cozinha africana, de LCC, edição única de Angola; oitenta reais na estante virtual.
E outros. Tudo tão raro, tão jóia, despertando, alardeando nossa cobiça, que preferimos vezes nem perguntar se o mimo pode ser vendido.
Pois, ontem, o livreiro tira da cartola o nosso senhor dos Passos. E dane-se a recitar as passagens onde o americano flana por uma Natal que conhecemos de memória e apenas nela.
- Quanto?
- É da casa. Mas podemos tirar uma xerox pros amigos.
O senhor é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, com um bom livro nas mãos.
E surge o Marechal Porpa. E diz que esteve com John dos Passos. Que o levou para conhecer Aluízio Alves. Que publicou reportagem de primeira página na Tribuna do Norte. Que existe uma revista americana com AA na capa. Que esteve cinco vezes na América e esqueceu de procurar o tal magazine. Que Aluízio dispensou um candidato, dos cinco, seis que o acompanhava em campanha, pra acomodar o escritor no aviãozinho. Que John dos Passos falava português.
O Marechal carrega o último exemplar das pelejas de Ojuara, edição portuguesa, não deu nem tempo de espiar. Os outros foram para Vicente Serejo e, parece, Woden Madruga.
Desço a Rio Branco, a Rua Grande duma época passada. Quero fotografar o ônibus de Binladen, invenção wodenmadruguiana. Sumiu. Uma e dez da tarde de quinta, seis de setembro.
Me pergunto se foi o departamento de trânsito de Cidade dos Reis ou se foi a CIA.
Onde andará Binladen?
Noitinha, Lívio Oliveira esparrama seus hai-kais num negócio de livros acondicionado no centro nervoso da City. Promove o encontro de amigos e inimigos, de conhecidos e desconhecidos, de Fernando com João:
“Viver é muito
perigoso.
É preciso
saber onde
vai dar
o barco.”
Onde andará Binladen? Qual calçada estaciona seu ônibus mágico? Quem pastoreará as mocinhas subindo nos ônibus da parada vermelha?
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Um comentário:
Parabéns pela crônica de hoje, simplesmente ótima. Gostei da homenagem a Abimael - uma grande figura humana, antes de mais nada -, da referência ao Sebo Encarnado. Um grande abraço.
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