Luzia Dantas - o dragão da maldade contra o santo guerreiro, ou, o santo da maldade contra o dragão guerreiro, ou,
Kind of blue
A insônia não me surpreende às quatro da manhã: é domingo, e as manhãs de domingo servem a isso, acordar mais-que-cedo, capuchino, cigarros, water closed, café, cigarros. Cigarros. E livros.
O Spleen de Natal é de véspera – a leitura de O Spleen de Natal, esclareço, é de véspera. Mas, numa manhã insone de domingo – a maresia atlântica recobrindo os relevos acidentados da casa silenciosa, o sol preenchendo, pouco a pouco, os móveis e objetos da casa ainda adormecida, ribeiras do Atlântico – a releitura do livro de Franklin Jorge adquire nova dimensão, se reveste, ele mesmo e o ambiente onde é consumido e consumado, de uma estranha pátina que mistura melancolia com alegria.
O Spleen deveria ser distribuído, grátis, nas salas de desembarque do aeroporto de Natal. Os turistas – essa fauna exótica cada vez mais aloirada a quem rendemos inquestionável culto, exibindo sem pudor o fundo das calças nos salamaleques cordiais – não entenderiam nada, bulhufas, patavinas, porra nenhuma. Mas, enfim. Uma vingança sutil, bilhete de suicida de uma cidade idem, não digam que não avisamos, Natal não consagra nem desconsagra ninguém, etc.
Um assombro.
Um desassombro o livro de F. Jorge. Estão, quase, todos lá. De Blecaute a Jota Pifa. De... de... Esqueçam. O Spleen tem, na verdade, muitos anônimos. Ou muitos pouco conhecidos. Ou quase nenhum lugar-comum. À parte os já citados, um Marcelino Bob, um J. Gualberto.
Até mesmo Dona Maria Raimunda, uma época lugar-comum, aparece desprovida dos estereótipos que lhe renderam culto e fama fugazes. “Dona Maria Raimunda tem espírito aristocrático”, começa F. Jorge. E por aí vai, descrevendo a casa, os móveis, os objetos, o guarda-roupa, e, através destes, não apenas o espírito de D. Raimunda, mas o zeitgeist. De ontem, hoje, amanhã.
Sutil, F.J.: “As pérolas de imitação saltam de dentro da caixinha de marchetaria ou de pastilhas medicinais”.
Sutil, F.J., sem curvar-se diante dos lugares-comuns, como quando revela, através de D. Raimunda, um prefeito de Natal – Garibaldi A. Filho – expulsando-a do carro oficial para dar lugar à filha do defunto, no cortejo fúnebre de Cascudo. A velha aristocracia cult, marginal, cedendo seu lugar à velha aristocracia chapa-branca, ambas fake, ambas caixinhas de marchetaria e pastilhas medicinais. Ontem. Hoje. Sempre.
Ilustrativo. Poucas imagens valem por tão poucas palavras.
Ou como quando, através de J. Gualberto, revela os erros em português cascudiano do original de Prelúdio e fuga do real.
Ou, ainda, como revela, através do próprio João, um Gualberto de bobeira em busca da grana de prêmios literários.
Intenso, F. Jorge, quando repete o texto black do poeta Blecaute. Passa da camisa azul celeste e calças cor de goiaba e tênis brancos e meias roxas “de monsenhor” para as torturas violentas da carne e d’alma – testículos furados, arame enfiado no pênis, tapas na cara, estupro oral sob a mira de um três-oitão. O pecado de Blecaute, vulgo E. Borges, segundo Borges-Jorges: nascer preto. Pobre. E com vontade de mostrar-se menos marginal, vestindo produções extremamente coloridas. O que faz com que outros pretos, pobres, vestindo fardas monocromáticas, desçam o cacete em sua carapinha “pirandélica”.
A cara de Natal. A metáfora de uma cidade às escuras. O Aleph triste-tropical.
Os personagens de O Spleen são protagonistas e vítimas de uma cidade romântica, enquanto dure. Romântica e felliniana:
O sobrinho do cardeal trocando beijos com o padre professor de religião no Colégio Marista, e, metamorfoseado, anos depois, em transformista.
O ocaso do colunista social, que vê minguarem os bailes de debutantes e crescerem o número de velórios, revelando, ainda, a festa americana no Trampolim da Vitória: “[os americanos] Adoravam uma boa felação. Muita gente em Natal tirou diploma nessa especialidade.” E, surpreendentemente revelando-se um pensador: “Hoje eu percebo que toda essa efervescência nos distraía da idéia de que Natal era uma cidade ocupada.”
A história do Teatro Alberto Maranhão, quase único em sua secular importância, e de seus dirigentes, na voz do funcionário mais antigo, expectador privilegiado do espetáculo diário de vivos e mortos – “até ópera já vi ser cantada aqui por gente que já morreu há muito tempo” – e quase-vivos ou quase-mortos – “No fim da vida [Henrique Castriciano], já subia os batentes com dificuldade (...) era um tipo redondo e morto de preguiça.”
Como o velho funcionário, cuja obrigação máxima era acender e apagar as luzes do templo, F. Jorge reescreve a história dos famosos através da boca dos anônimos, desprezando os holofotes, jogando luzes fugidias de verões passageiros aqui e acolá, feito vaga-lume, deixando de propósito lacunas a serem preenchidas pelo leitor, num texto sem gordura, excesso de peso ou de poesia. Não à toa, inexistem títulos capitulares e referências ou reverências onomásticas. Até as páginas finais, onde repousam algumas fotos, desgarram-se do corpo do volume, livres, como se o texto exigisse apenas a força das palavras.
O Spleen de Natal não é leitura obrigatória nas escolas da Cidadela dos Reis. Nunca foi. Nunca será. A gringalhada que desembarca no Augusto Severo carregada de espelhos vai continuar lendo escrituras imobiliárias e desejos lúbricos nos olhos das meninas de plantão. Palumbo é uma sombra incômoda no Plano Diretor, à sombra das raparigas em flor e dos prédios e condomínios fechados, vendidos a toque de caixa, cash. Velocíter. Dos dólares aos euros, a cidade desaparece numa velocidade impressionante, como diz um personagem.
Às vezes, a luz tênue de Franklin Jorge Fernandes chega a ofuscar. Como uma lua orwelliana na, ainda, Praia dos Artistas. Ou como quando descreve a recusa do garçom em atender o turista e roqueiro Lobão no seu desejo estapafúrdico de beber água de coco – ousadia – no coco:
- Segundo as regras da casa a água de coco deve ser servida em jarras.
O Spleen de Natal é de véspera – a leitura de O Spleen de Natal, esclareço, é de véspera. Mas, numa manhã insone de domingo – a maresia atlântica recobrindo os relevos acidentados da casa silenciosa, o sol preenchendo, pouco a pouco, os móveis e objetos da casa ainda adormecida, ribeiras do Atlântico – a releitura do livro de Franklin Jorge adquire nova dimensão, se reveste, ele mesmo e o ambiente onde é consumido e consumado, de uma estranha pátina que mistura melancolia com alegria.
O Spleen deveria ser distribuído, grátis, nas salas de desembarque do aeroporto de Natal. Os turistas – essa fauna exótica cada vez mais aloirada a quem rendemos inquestionável culto, exibindo sem pudor o fundo das calças nos salamaleques cordiais – não entenderiam nada, bulhufas, patavinas, porra nenhuma. Mas, enfim. Uma vingança sutil, bilhete de suicida de uma cidade idem, não digam que não avisamos, Natal não consagra nem desconsagra ninguém, etc.
Um assombro.
Um desassombro o livro de F. Jorge. Estão, quase, todos lá. De Blecaute a Jota Pifa. De... de... Esqueçam. O Spleen tem, na verdade, muitos anônimos. Ou muitos pouco conhecidos. Ou quase nenhum lugar-comum. À parte os já citados, um Marcelino Bob, um J. Gualberto.
Até mesmo Dona Maria Raimunda, uma época lugar-comum, aparece desprovida dos estereótipos que lhe renderam culto e fama fugazes. “Dona Maria Raimunda tem espírito aristocrático”, começa F. Jorge. E por aí vai, descrevendo a casa, os móveis, os objetos, o guarda-roupa, e, através destes, não apenas o espírito de D. Raimunda, mas o zeitgeist. De ontem, hoje, amanhã.
Sutil, F.J.: “As pérolas de imitação saltam de dentro da caixinha de marchetaria ou de pastilhas medicinais”.
Sutil, F.J., sem curvar-se diante dos lugares-comuns, como quando revela, através de D. Raimunda, um prefeito de Natal – Garibaldi A. Filho – expulsando-a do carro oficial para dar lugar à filha do defunto, no cortejo fúnebre de Cascudo. A velha aristocracia cult, marginal, cedendo seu lugar à velha aristocracia chapa-branca, ambas fake, ambas caixinhas de marchetaria e pastilhas medicinais. Ontem. Hoje. Sempre.
Ilustrativo. Poucas imagens valem por tão poucas palavras.
Ou como quando, através de J. Gualberto, revela os erros em português cascudiano do original de Prelúdio e fuga do real.
Ou, ainda, como revela, através do próprio João, um Gualberto de bobeira em busca da grana de prêmios literários.
Intenso, F. Jorge, quando repete o texto black do poeta Blecaute. Passa da camisa azul celeste e calças cor de goiaba e tênis brancos e meias roxas “de monsenhor” para as torturas violentas da carne e d’alma – testículos furados, arame enfiado no pênis, tapas na cara, estupro oral sob a mira de um três-oitão. O pecado de Blecaute, vulgo E. Borges, segundo Borges-Jorges: nascer preto. Pobre. E com vontade de mostrar-se menos marginal, vestindo produções extremamente coloridas. O que faz com que outros pretos, pobres, vestindo fardas monocromáticas, desçam o cacete em sua carapinha “pirandélica”.
A cara de Natal. A metáfora de uma cidade às escuras. O Aleph triste-tropical.
Os personagens de O Spleen são protagonistas e vítimas de uma cidade romântica, enquanto dure. Romântica e felliniana:
O sobrinho do cardeal trocando beijos com o padre professor de religião no Colégio Marista, e, metamorfoseado, anos depois, em transformista.
O ocaso do colunista social, que vê minguarem os bailes de debutantes e crescerem o número de velórios, revelando, ainda, a festa americana no Trampolim da Vitória: “[os americanos] Adoravam uma boa felação. Muita gente em Natal tirou diploma nessa especialidade.” E, surpreendentemente revelando-se um pensador: “Hoje eu percebo que toda essa efervescência nos distraía da idéia de que Natal era uma cidade ocupada.”
A história do Teatro Alberto Maranhão, quase único em sua secular importância, e de seus dirigentes, na voz do funcionário mais antigo, expectador privilegiado do espetáculo diário de vivos e mortos – “até ópera já vi ser cantada aqui por gente que já morreu há muito tempo” – e quase-vivos ou quase-mortos – “No fim da vida [Henrique Castriciano], já subia os batentes com dificuldade (...) era um tipo redondo e morto de preguiça.”
Como o velho funcionário, cuja obrigação máxima era acender e apagar as luzes do templo, F. Jorge reescreve a história dos famosos através da boca dos anônimos, desprezando os holofotes, jogando luzes fugidias de verões passageiros aqui e acolá, feito vaga-lume, deixando de propósito lacunas a serem preenchidas pelo leitor, num texto sem gordura, excesso de peso ou de poesia. Não à toa, inexistem títulos capitulares e referências ou reverências onomásticas. Até as páginas finais, onde repousam algumas fotos, desgarram-se do corpo do volume, livres, como se o texto exigisse apenas a força das palavras.
O Spleen de Natal não é leitura obrigatória nas escolas da Cidadela dos Reis. Nunca foi. Nunca será. A gringalhada que desembarca no Augusto Severo carregada de espelhos vai continuar lendo escrituras imobiliárias e desejos lúbricos nos olhos das meninas de plantão. Palumbo é uma sombra incômoda no Plano Diretor, à sombra das raparigas em flor e dos prédios e condomínios fechados, vendidos a toque de caixa, cash. Velocíter. Dos dólares aos euros, a cidade desaparece numa velocidade impressionante, como diz um personagem.
Às vezes, a luz tênue de Franklin Jorge Fernandes chega a ofuscar. Como uma lua orwelliana na, ainda, Praia dos Artistas. Ou como quando descreve a recusa do garçom em atender o turista e roqueiro Lobão no seu desejo estapafúrdico de beber água de coco – ousadia – no coco:
- Segundo as regras da casa a água de coco deve ser servida em jarras.
Natal continua servindo a água de seus verdejantes coqueiros em jarras.
Em jarras.
Em jarras.
[escrito por midc há tanto tempo]
[Franklin Jorge, Spleen de Natal. Natal: Edufrn, 2001]
2 comentários:
Texto servido no coco! Salve Jorges!
"Spleen de Natal" é um ótimo livro. Pelo menos, assim sempre me pareceu. Minhas divergências literárias com FJ não me impedem de admirar a sua prosa, claro. Um abraço.
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