quarta-feira, 26 de setembro de 2007

The Blind Boys of City of Kings | Carlos de Souza


"Um galgo cavalga costelas nuas no beco da galinha morta"



Cachorro Magro [Fragmentos]


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O cachorro atravessa a areia branca da praia molhando as patas na espuma pérola das ondas que morrem rubras de sangue no quebra mar Mastins de dentes afiados afiam as presas rasgam a carne dos infiéis em nome da cruz bandeiras tremulam sobre a amurada do fortim Tambores saúdam a boa vinda dos que chegam donos de tudo que antes fora de ninguém É o início da cruel jornada dos que vêm Canhões cospem ferro na areia branca da praia


James Joyce acorda de um sonho numa praia do Atlântico Sul toma um gole de whisky e recita: “Um ponto, cão vivente, crescia à vista correndo pelo escampo do areal”


É o cão chupando manga no meio do redemunho O cramunhão canho coisa-ruim não-sei-que-diga cujo coxo sujo o malandrim Tudo isso no panelão da raça negros, brancos, mulatos, caboclos afins A boa massa taça rasa da caça busca na fera lúcida um veio de testemunho queima na face rubra a chave do seu sim

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No entanto meu poeta canta uma manhã com “miasmas de cerveja choca” enquanto o peixe apodrece no mercado público o renegado pede mais uma e mais uma e mais outra a fera ruge em seu peito que quer esganar o dia aquela mulher não quer seu desejo canino o menino esmolambado pede esmolas faminto como uma ferida aberta é a espuma leve dos dias mortos o arroto compulsório dos que não comem é este viver ordinário de quem nada espera o caminhar profundo dos homens rotos o esbugalhar de olhos sob a velha fome porque o futuro aguarda ali em frente com sua ceifa e seu ódio de cachorro insano
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Areias de Jenipabu se misturam às de Alcácer Quibir Ai, meu Dom Sebastiãozinho armadura luzindo ao sol espadas tocadas a golpes de cimitarras que escorrem sangue Ai, a gente que trouxe essa dor tão nossa e tão antiga Ai, essa madeira que singrou as águas espumosas os nobres que tombaram nessa imensa praia potiguar Ai, meu tolo monarca desconhecido que morreu por nada o que tenho além dos grãos de areia dessa tua imagem tão pomposa e fugidia que parece raios de sol na prata de teus arreios e tu sozinho morrendo em uma manhã sem cor E eu aqui coitado chorando sobre esta duna potiguar O teu fadado sonho de glória e a vã cobiça de mandar
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Eles chegam e penetram o canavial como quem já afundou mil navios o pau-brasil é o adobe de sua sala São os piratas sem navio destes mares verde cana que entopem suas veias
Com seu elmo prateado o homem brande a espada como se fosse um cão Cospe no prato indigesto do fraco indigente E aperta o cabo de madrepérola da pistola niquelada para enterrar na garganta da esfinge e esganar a pestífera férula faringe do esfarinhado Dorme sobre tombadilhos e trocadilhos como em barcos desesperados de vontade de estuprar violar nativos da terra virgem que gemem Come vomita dorme na cova dos condenados e sorri embevecido da dor que deveras sente


Seja um cão de guarda potiguar um legítimo cão pastor um cão de fila exemplar Erga suas preces ao céu e reze que alguém ouça que Ele venha lhe buscar Envolva bem sob seu manto o balbuciar de lábios trêmulos o tremelicar de dentes pêndulos que de nada valerá Tua hora urgente chegará no fio de uma boa espada no vão de uma grande escada na flecha de um Tupinambá
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Empunhas a faca que é tua espada teu instrumento de identificação E morres na areia como um rei um besta menino português cavalgando as dunas da desgraça rolas pelo despenhadeiro do nada nadando em desespero vil Oh mais um gole de cachaça todo o suor do vale do Ceará-Mirim
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Fugindo da matilha dos capitães do mato Correndo entre os labirintos da mata Pelo emaranhado das plantas sertão adentro em busca de um quilombo que me aquilombasse Mesmo assim guardei o amor pelos cães Ainda ressoam em meus ouvidos os latidos em meu encalço Meu corpo treme ao ouvir ainda o som dos gritos da morte Meus algozes por perto a dor da corda de cânhamo no pescoço As chibatadas as correntes o tronco E a humilhação de se saber gente no meio de tanta iniqüidade
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É madrugada nos bordéis da rua São Pedro em Natal Entre sífilis podridão e vício oferto louros ao teu ofício sirvo no prato frio da morte tua vida de louca consorte As radiolas de ficha soltam música fuleira cervejas chocas ofuscam os odores da feira O amor não tem metáforas sãos frestas nas portas furadas são chatos nos lençóis fedidos Oh meu santo perdoai orai pro nobis e chorai As meninas pensam em casar enquanto seus dentes caem A beleza é um espelho atroz a realidade é o reverso feroz E assim uma cadela chamada Baleia uma baleia chamada Moby Dick um pescador chamado Santiago um profeta chamado Jonas um boneco chamado Pinóquio Desobediência é um sinal de morte Pinóquio chora no ventre do peixe Jonas blasfema contra Deus Santiago amaldiçoa os céus Moby Dick estraçalha o barco Baleia uiva por seu dono As letras traçam seu caminho ao léu
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A velha joga água fria sobre os cães que copulam no meio da rua Uma mulher gorda dorme nua enquanto amamenta o bebê Moscas passeiam pela pele branca pelo bico rosado dos seios sugando gotas de leite cru Meninos olham aquela cena com olhos de nunca mais Depois seguem pelos becos para ver a cópula dos porcos e tocar punheta sobre o monturo O sexo na infância tem imagens confusas de bichos e mulheres gordas de seios grandes e focinhos idem A infância tem qualquer coisa de ruim de perverso e de inocente assim
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Vejo o elmo brilhando ao sol e os mastins rasgando o ventre das índias grávidas em plena selva brasileira Vejo os navios portugueses rompendo a barratrazendo para o povo potiguar sua boa nova Vejo também a cor do sangue espumando entre os dentes alvos como a alma dos cães danados os cães no paraíso que virou inferno Minha memória canina não me trai
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Uma tríade caminha pelo deserto Um trio canino espreita ao longe camelos que levam Reis modestos que vão louvar um menino assim contido em três entidades sem fim Pai, filho e espírito santo Equação mínima da religião ocidental Magos por que sacros Cachorros por que magros Também a estrela olha o céu Não há sol sobre seus véus Não há ouro, incenso e mirra Há o sangue dos índios mortos Há a ira do bandeirante feroz Há o clamor dos bárbaros morrendo no Vale do Assu Há o Forte dos Reis Magos os canhões explodindo além A caravana dos magos passa indolente e os cães dos potiguares não ladram nada
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Teu nome é Cam e teus descendentes vagueiam pela vida pagando o preço de teu anátema Porque vistes a nudez de teu pai E desde os tempos imemoriais vagueiam pelo deserto arrastando seus molambos no rastro das caravanas São caçados a laço nas clareiras das florestas da Velha África São atirados nos porões dos navios negreiros Apodrecem nas fábricas da Velha Inglaterra Comem o pó do carvão nas minas infames Esfolam a pele enegrecida no corte da cana e morrem queimados no caldeirão de melaço dos engenhos de Brasil Esmolam pelas estradas Morrem nas secas do Nordeste arcaico Sonham entupidos de drogas nas ruas das cidades grandes do Novo Continente E tu nada podes fazer Pois teu olhar está mais fundo que o escuro fundo do anoitecer


Este ganido é para ti, Torquemada, filho do Demo Da escuridão da história do alarido das vozes de Espanha e Portugal que ressoam nos becos de Natal Os que queimaram o teatro de palha E a intolerância que ainda vigora nas mentes desta terra ignota Este poço de mediocridade enquanto a burrice quer triturar ossos, dedos e tendões Ouve-se a risada de Lúcifer A província afunda no nada o mesmo é sempre o molde do mesmo talhe de agora E o torrão “não consagra nem desconsagra” Enquanto os quadrúpedes passeiam sua pose pelas ruas pelas praças e cafés e arrotam sua sabedoria cagando tolices nas folhas dos jornais O bruto olha para o entardecer colhendo o fruto da imundície pobre terra do sol


Eu Filho da espada de Jerônimo de Albuquerque Os pés calejados de andar no tombadilho das caravelas que aportaram ao largo do pequeno grande Potengi Forniquei com as filhas do Imperador dos Camarões e fiz guerra aos holandeses Nada tenho a dizer de minha origem de cão feroz Sempre de pênis ereto disseminando a raça dos que trazem a pele pálida povoando praias e sertões com esta gente de cor ímpar a que chamam potiguar Trago em meu peito a gana dos malditos e em minha mão a adaga de prata Pois temo a noite escura o poço escuro em que atiraram o herói Jaguarari Tenho a fala fácil e o silêncio dos que sabem o fado final da morte Cravo em teu ventre o aço quente de minha volúpia e bebo o sangue amargo e doce de tua desejada inocência Para que mais tarde seja enfim louvado como o grande fazedor de raças gentes de toda essa gente Albuquerques, Homens, Maranhões a estirpe de Felipe, Surupiba e Janduís Cavo minha cova sob as serras E deito para dormir sobre a terra A meus pés minha raça fenece sob o peso da desgraça e ignomínia de seus pares Bebedores de sangue da miséria alheia Próceres ilustres forjados na limalha dos que lambem as botas do poder a pocilga onde espojam até hoje nos despojos imundos se seus descendentes carrapatos de curtume coprófagos da diarréia geral é o que resta de nossa epopéia secular
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[Carlos de Souza, Cachorro magro. Natal: Sebo Vermelho/Edufrn, 1999]


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