Folheie as páginas da CartaCapital 463 ainda nas bancas e diga se não tenho minhas razões que a própria razão reconhece: virando a de número 65, meia página emoldurada pelo corpo defunto de Ernesto Guevara, mais 1/3 inferior com o dedo acusatório de Lyndon Johnson, o leitor dá de cara com 2/4 de pura frescura, na melhor acepção da palavra.
Uma frescura mística.
O retrato de Charles Cosac, editor da mais luxuosa editora jamais vista na Terra dos Papagaios.
No meio de uma floresta encarnada.
A tela na parede de fundo é vermelha, vermelho o tapete que veste o chão, onde o dândi, de ladinho, debruça o olhar inquieto para além da página, para além dos excessos do mundo.
O terno é preto, como convém a qualquer criatura celestial que tenha parte com o submundo – não o submundo tolo da terra dos homens, tropa de elite e que tais, mas o submundo mesmo, as entranhas da terra, Quinto, Quinta dos Infernos.
Todo anjo é terrível, parece ser a epígrafe. Invés, a didascália clama pelos gritos e sussurros de Ingmar.
Se o terno e as listras do quadro são pretos, as mãos são brancas, frágeis, imaculadas.
Branco é também o rosto oval bem escanhoado, alguns mililitros de gordura em discreto e vaporoso excesso.
Um quê de olheiras sutilmente relevadas combinando com o vinco no canto da boca.
O cabelo é comprido, ralo, repartido filosoficamente de ladinho, na direção contrária àquela aonde o corpo se inclina. É de uma geometria perfeita o retrato assinado por Olga Vlahou, ela mesma autora dos Retratos Capitais exibidos na última página da semanal. (Mas, não, aquilo não é lugar para exibir uma criatura dessas – está melhor assim: um L invertido de letras enquadrando um Retrato dos mais Capitais.)
Tem um quê de monstro sagrado, de festa profana, de mística tatibitate, de inferno glacial, de santidade martirizada.
Tem uma infinidade de leituras o retrato do senhor Cosac.
Como os livros que publica, mais importante que o conteúdo – maravilhosamente selecionado – é a forma.
Eu disse “mais – que”? Disse. Eu não deveria ter dito “tanto – quanto”? Não. Fica de bom tamanho o “maravilhosamente selecionado”. E não se fala mais nisso. Senão me enfio no ascensor e vocês verão.
Óbvio que não me enamorei daquela imagem, página meia-sete, diapasão de um ícone bizantino.
O rapaz não esconde os quarenta anos passados – a gordurinha sotto voce, os cabelos diáfanos e sem peso.
Um olho reza: “’Nenhum Cosac jamais fez exercícios’, afirma Charles, entre baforadas de cigarro.”
Pronto: apaixonei.
A mocinha que fez a reportagem – boa, mesmo – atende pelo nome de Cynara Menezes. Notem o Y, sublinhem o Z. É ela quem informa: o senhor Charles fuma três maços por dia. Ai, pecado, ela não diz a marca. Serão Marlboros vermelhos? Serão Santé gregos?
Também: chegou a tomar 45 litros de coca por dia. Charles: “Tive de escolher entre a vida e a Coca-Cola. Escolhi a vida por dois dias e foi terrível.” (Novo amor à segunda frase.)
Quem era mesmo aquela moça que ia pra cama usando apenas algumas gotas de Chanel número 5? Pois Charles, meu Charles, acrescenta um Valium 5 no penhoar invisível, roupa nova do imperador sírio. Sim, meninos, o bruto tem sangue árabe. Assim qualquer um abandona a heterodoxia e abraça de uma vez por todas o amor homo, uno, indivisível.
Charles em casaco de pele em São Petersburgo: outra foto.
Charles girando o mundo – Inglaterra, Rússia, França, Noruega, América (de Kafka, off course).
Charles que fala mal português. (Um leque, please, um abanico, por favor.)
Charles, Charles, Charles. O pai, opressor. A mãe, castradora. Um miliardário americano como padrinho. Godfather!
Charles, que “recebe os amigos de um em um”. Charles, que tem um elevador particular no seu duplex, e que não se acanha em subir sozinho aos aposentos deixando uma visita não mais querida abandonada, perplexa, no térreo, entre as panelas da cozinha (tenho certeza: todas de puro aço inoxidável).
A coleção de mulheres de Charles é imbatível: Virginia Woolf, Marguerite Duras, Katherine Mansfield, Karen Blixen.
E que pensas? Todas, na capa, assim: V. Woolf, M. Duras, K. Mansfield, K. Blixen.
Em compensação, ignorou a viúva Sales Gomes, e reuniu outras mulheres de três pês.
E os homens? Já levei Edgar Allan Poe, Georges Bataille, Giulio Carlo Argan, Manuel Bandeira, Elias Canetti, William Faulkner, Henry James, Adolfo Bioy Casares, João Antônio, e outros, pra cama. Um escarcéu dos diabos. E se não levei mais, foi por falta de dinheiro.
Gyula Krúdy, por exemplo, namorei, namorei, namorei, e ficou só nisso. “Foda adiada é foda perdida”, diz o ditado – que Charles me odiará se souber que o transcrevi.
Charles não toma sol, Charles voltou para o Brasil para ter uma casa. Abrir uma livraria. Charles provavelmente não sabe que o país é governado pelo Lula. Quem diabos seja Renan Calheiros. Nunca viu Mônica Veloso (e se viu, deu de ombros). Não posso afirmar, mas desconfio que o meu Charles pensa que Caetano já está morto, enterrado e venerado em algum lugar da Bahia ao lado de Glauber Rocha, coisa de zilhões de anos atrás.
Charles voltou para o Brasil só para me fazer apaixonar. Desconfio que, no casamento marcado, me abandonará, plantado, buquê de rosasangue na mão, em alguma igreja barroca, todos os putos zombando da minha cara, um ou outro querubim solidário às minhas lágrimas.
O rímel desfazendo meu rosto.
O coração destamainho.
3 comentários:
Esse Charles é realmente estranho. Figuras assim só podem viver reclusas neste país.
Formidável texto. Amei. Mas, pô, não é justo eu já queria casar com o Charles desde o ano retrasado! Cheguei na fila antes... mas aceito um casamento bigâmico se quiser se unir a mim para que façamos planos escusos porém escusáveis para chegarmos até o emir.
Beijo, sua mais nova leitora.
alma (-mahler): u r wellcome.
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