Por onde começo.
Estou bem, obrigado, muito obrigado pela cadeira.
Bonito, o lugar.
Os passarinhos. Posso dar alpiste. Uma beleza esse som de asas, as penas rangendo silêncios. Bonito lugar. Sei, já falei.
Tenho essa mania de cruzar as mãos. Gosto de sentir meus ossos. Tenho ossos fortes, o médico falou.
O paletó foi presente do pai. Mãe lavou. Estirou. Não, não gosto de ferro de engomar. É quente. Queima.
Seria bom um copo d’água. Quando os joelhos começam a inchar é sinal de nuvens no céu. Lá pros lados do horizonte fica tudo coalhado de nuvens, o breu começa a devorar tudo, a copa das árvores, e o canto dos passarinhos.
Vez por outra ouço sua voz. Mas não quero. Sempre perguntando. Não sei as respostas, nunca sei. Então, com o indicador, aperto aqui do lado, na têmpora. Desligo. Desce um silêncio feito anjo do céu.
Bonito esse azul virando encarnado.
Mas quando fica tudo escuro, não gosto.
Dá tristeza. Melancolia.
Tristeza é assim, esse vazio. Um vazio que incha como um balão de pedra. Não é oco não. É uma bola de pedra compacta, inteira, bem lisa e arredondada.
Melancolia é quando a pedra começa a rolar.
Olha, minha mão tem muitas linhas, todas com seu significado.
O cravo foi minha irmã quem deu. Botou no bolso, me deu um beijo na face. Fiquei corado. Gosto dela.
Pai não quer que eu brinque com ela.
Daí fico triste. Outro caminho, esse, para a tristeza.
A solidão, não. Solidão é um atalho.
Quando querendo brincar comigo mesmo, fico só. Bonito esse ficar só no mundo. Mundo grande. E eu no meio.
Depois do meio da tarde, quando o sol inclina sua crista e as nuvens descem a ruminar o pasto. As sombras se alongam, até não poderem mais se esticar. Gosto.
É das horas que mais gosto.
As vacas balançam sinos, os sinos balançam úberes, meu peito incha de dor.
Penso nela. Gosto sempre de pensar nela.
Mas dói.
Outro caminho para a tristeza.
Daí a solidão vira pedra. E eu não consigo empurrar a pedra. Bem maior que eu. Olha, esse músculo ficou todo contraído.
O cabelo, o moço cortou ontem. Às vezes machuca, o moço. Sempre sério, todo vestido de branco, uma alvura. Mas ele é moreno. Assim, como esse toco de pau. Uma vez falou o nome, só pra me chatear. Fiquei enfezado. Bati nele com um pedaço de pau. Não, maior.
Eu não roia as unhas, antes.
Mais água. Por favor. Os gringos dizem, plízi. Vi na tevê.
O sonho com ela. Foi hoje, de manhã, cedinho.
Tão lindo.
Bonito de se ver. Mas só eu vi. Se pudesse, mostrava, como na tevê.
Esse gravador, não grava vozes. Então. Tinham de inventar um gravador para gravar sonhos. Assim eu não esquecia os pedaços, como agora esqueci.
Na casa dos meus pais. A da minha infância. Todos lá. Os irmãos, a irmã. Pai ainda não ficava brabo com eu metido em seu quarto. Brincando com os vestidos das bonecas.
Eu amo ela, sim. Não como amava a mana. A mana era só brincadeira. Com ela é diferente, é uma febre malsã. Fico todo cheio de mim.
O sonho.
Lembro pouco. Nós dois na cozinha. O chão frio. Eu falava normal, entende. Era como se a gente rodopiasse e o lugar era um salão. Mas não era. Nem a gente dançava, nem o quarto era tão grande. Depois a gente sentava no corredor. Todinho azul. Um de frente pro outro. Ela esticava os pés, nus, eu brincava com seus dedos. E eu dizia: a gente não pode ficar junto, eu sei. Não. Acho que eu não falava nada. Falava, sim, mas não isso. Mas eu sabia, ela sabia, que não podíamos ficar juntos. Ela, uma mulher comprometida.
Mas naquele momento, havia só eu e ela.
Assim. Suas pernas esticadas rumo a mim.
Ela apoiada no braço, minhas mãos acariciando seus pés.
Nunca fui tão feliz.
Nem ela.
Mas não sei se ela sonhou comigo. Como eu sonhei com ela.
Mais uma vereda para a tristeza.
Ela sorria, no sonho ela sorria.
Então, me rio também.
Vê, sou todo felicidade. Júbilo. Louvor.
Assim, descruzo as mãos e bato palmas. Me levanto num salto, o sol se ergue comigo. Os passarinhos vêm e me bicam os cabelos. Tenho alpistes nos ombros. Sou forte. Quer ver como empurro a pedra.
Sonhei com ela. Se ela sonhar comigo a pedra some.
E tudo é planície.
Daqui além.
Precisava ver. A ponta da sua perna em minhas mãos, tão juntinho de mim. Eu ria, ela ria também. Só lembro nossas bocas, sorrindo, a dela mais vermelha que a minha. Meus olhinhos mais apertados que os dela.
Troco todo esse lugar por aquele corredor-azul.
Onde, nós dois, eu e ela, ela e eu, estaremos sempre mais próximos.
Porque agora estamos tão longe. Tão longe. Nem eu sei dela, nem ela sabe de mim. Vê, nem lá longe enxergo. Vê. Não é ninguém que vem lá, no fim do horizonte, onde as nuvens beijam a terra, onde o sol estende seus raios e aprisiona o orvalho em arco-íris de luz.
Tudo tão vazio. Quando fico assim, minha boca murcha, pende, em direção ao centro da Terra. Quase se desfaz.
A pedra incha. Não consigo movê-la. A boca seca. Não consigo beber. Minhas mãos. Os ossos fortes.
Licença. Preciso dormir. Quero sonhar com ela. E com ela sonhando comigo. Só assim posso viver. Juntinho dela, os dois abraçados naquele corredor-azul.