sexta-feira, 29 de maio de 2009

Fête galante, Bête noire



Watteau, Peregrinação para Citera, c. 1717





Island of Love, Coney Island Baby




Watteau, O embarque para a ilha de Citera, c. 1719





Watteau, Elias




Watteau, Plaisirs d’amour, 1719





No caso, porém, do mito moderno da
viagem à ilha do amor, não se trata de uma utopia das classes trabalhadoras que
imaginam para si mesmas uma sociedade melhor no futuro, mas de uma utopia ao
gosto de um público predominantemente aristocrático, da corte, que, na medida do
possível, prescindia do trabalho profissional para ganhar a vida.
[...]
Em
vez do santuário real, a imagem da ilha de Citera aparece como símbolo de um
fictício santuário do amor, alvo de peregrinação para jovens casais, tornando-se
o símbolo de uma imagem do desejo, uma utopia secular.
[...]
O santuário
da atemorizante e auspiciosa deusa do amor transforma-se na imagem onírica de um
lugar de peregrinação para casais de amantes que querem viver as alegrias, e não
as dores, do amor.
[...]
Por isso mesmo, tempos antes, havia sido sugerida
a hipótese [...] de que o quadro não deveria ser entendido como uma partida para
a ilha do amor e sim, ao contrário, como uma partida da ilha do amor. A
propósito, era mencionado como uma das razões para essa hipótese o fato de que
uma das jovens do quadro de Watteau permanecer de costas para o barco e, assim
se concluía, parecer hesitar em se dirigir para ele. [...] É, se assim se pode
dizer, a representação mimética da hesitação da jovem – entre o flerte e o medo
– em pleno jogo do amor.


[Norbert Elias A peregrinação de Watteau à ilha do amor, tradução de Antonio Carlos Santos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006]



segunda-feira, 25 de maio de 2009

anatomia





[delacroix, 1850]


descalço, o pé encontra a nudez de outro, se enrodilham, feito bico de passarinho mergulhando em plumagem quente, se enrolam, como o vento varrendo outonos para debaixo das copas, se aninham, se perseguem, se sombreiam, se querem, sem motivo algum a não ser o querer puro, sobe um arrepio mínimo, mudo, mouco, na linha crescente da maciez das peles, tendão de aquiles, batata, coxa, o encaixe se aperfeiçoa à altura dos rins, encontra abrigo, mergulha infinito o corpo erétil entre convexos, tão diferentes, com a mão direita toca o direito, com a esquerda o esquerdo, são iguais, o peito afasta-se por um instante para deitar um beijo morno na omoplata, brota um silêncio de ruídos no vácuo que se forma, por um instante, um só momento, enquanto os dedos se estendem, dilatam, multiplicam entre a raiz dos cabelos.


– em sístole.


– em diástole.



quinta-feira, 21 de maio de 2009

tardança







Uma dona sem um vestido / não é a mesma dona com o vestido. / Como uma mulher despida de óculo / é desigual quando mascarada. / Cobre-lhe as olheiras e o pranto. / Um. / Revela-lhe as formas ao escondê-las. / Outro. // Um vestidinho diáfano é coisa segura. / Ao passar, esguarda o tempo / Como rede em fundo de escolhos. // O vestido da dona é ainda mais imponente / que sua própria nudez superior. / Balouça, freme, agita – / até abalroar os sentidos. / Repercute em maremotos, abala sismicamente / Revolteia em si mesma, bailarino / Ricocheteia entre as rochas do cânion: / Tiquetateia o silêncio em que abismo. // Uma mulher toda algodão ou seda e carne. // Não há nada supérfluo em um vestido. / Ele é tudo, e / ao mesmo tempo / nada.






terça-feira, 19 de maio de 2009

Eyewear III





Quantas Alices tem esta Cidade. De los reyes, de las reinas.

Nem todas portam óculos doidos.

Nem todas tecem maravilhas nos subterrâneos.

Nem todas endossam azul-bebê no vestido e candeggina no avental.

Mas todas não me dizem o nome.

É das Alices a gostosura do anonimato.

Quando vestem t-shirt, bolso esquerdo do peito, dele não sacam cartão de visita. E estendem a mão vazia para retirá-la logo após.

– Alices.

Muitos prazeres têm as Alices.

Brilhantes, nacarados, perolados, esmeraldinos. De todas as cores e feitios e durezas. Prazeres com tê: Turmalinas; Turquesas. Prazeres com a: Azul celeste.

Ah, Alice no céu com diamantes. Alice sobrevoando labirintos em Creta. Alice flertando com Ícaro.

Ah, Alices.

Tão antigas.

Tão risonhas.

Tão róseas e vermelhas-sangue quando aplicam jabs e uppers.

Nos campos de algodão, nos campos ensolarados da plantation, nos campos líquidos dos mangues pantanosos, mergulho so-no-ro.

Ah, Alices: quando lhes direi outra vez

– Meu coração: represa para o salto dos peixes

(Os negros ferindo os dedos nas flores alvas, águas mornas encubando peixes.)

Algumas Alices têm os pés de gueixa. Minúsculos.

Nem todas Alices tingem de verde as águas quando banham-se na moldura natural das pedras.

Todas as Alices cruzam o salão, sempre que haja um para a mordedura dos seus pés.

Todas as Alices guiam – temerosamente – Porsches Carrera branco-pálidos.

(Algumas, Mercedes.)

Todas as Alices têm uns quês de pistoleiras.

Todas as Alices voam em nuvens de alcahol – sem sombrinha: são Alices, não Maries Poppins.

Descobri tarde que, entre eu e qualquer uma das muitas Alices, são elas quem sempre sacam primeiro.

São elas quem rasgam com os dentes e as unhas as páginas coloridas das fábulas.

(Da última feita, demoraram dias até descobrirem meu corpo estendido no prado – só reconhecível pelo embornal pleno de carne de caça.)

– Quando te levarei de novo, Alice, a ver as perdizes, as lebres, as aves-do-paraíso?

Então, não são mais fortuitos esses encontros em público.

Das galeras partem polegares, quase todos girados pra baixo.

O público já se deu conta de nossos olhares boca-a-boca.

O público já se reúne sobre as pontes, a esperar a passagem das águas, se refrescando com bebidas gasosas vermelhas, aguardando a chuva de estrelas cadentes.

O público já abriu as portas da gaiola dourada – e dela partiram plumas em direção às estrelas.

O público já arrombou o assoalho de tábuas. Sotto, pulsante. Vermelho-vivo.

O público se acotovela agora à beira do abismo.

Você dará a largada. O teu vestidinho curto de algodão balançará, pra lá e pra cá.

O motor do carro, um som tão silencioso que.



domingo, 17 de maio de 2009

cartão de visita










sem saber onde ponho as mãos,


sem saber com quem falo, e com que falo,


me apresento –


o mesmo dos joelhos esfolados


das cicatrizes abertas


do coração denunciador








[foto: a martins sobre trabalho de a martins cinemadebairro - manipulado distorcido cortado e recolorizado por midc]


quarta-feira, 13 de maio de 2009

rainning





[Carla Bruttini, Senza nome, 2009, acrilico su tela, cm 100x100]




Deixei a chuva entrar pela janela aberta molhando os livros sob a janela. Um dicionário da língua portuguesa, um almanaque de símbolos, uma revista de moda. Ficaram ensopados e as páginas coladas umas sobre as outras. Deixei a janela aberta por onde você entrou sem agasalho, sem capa-plástica, sem guarda-chuva, sem polainas. Você sentou-se na poltrona azul junto à lareira e acendeu um puro brincando com as longas unhas vermelhas sobre a superfície escovada do isqueiro. Sua boca brilhava diante das chamas. Eu quis beijar o batom na sua boca e ter suas unhas rasgando minhas espáduas. Ah, que olhinhos verdes você tem. Eu pensei. Enquanto batia um cigarro contra o mármore da lareira, o retrato do meu pai assuntando junto às cabeças dos animais que abatemos no último safári. Ah, que pernas compridas nascem do seu vestidinho preto. Eu pensei. Enquanto a chuva continuava a entrar pela janela e a revista de moda, o almanaque de símbolos e o dicionário da língua portuguesa se desfaziam em círculos líquidos. Ainda tive tempo de ler numa página que navegou até meus pés Agni, Indra e Surya são os fogos dos mundos. Então. Pensei naquele escritor que disse num programa de tv se eu tivesse que salvar algo no incêndio da casa eu salvaria o fogo. Pensei naquele outro todos los fuegos, el fuego. Ainda há vinho na geladeira. Pensa. Anda, vai, atravessa o tapete de plumas, cruza o corredor de pássaros, adentra a cozinha onde os negros dormem pelo chão frio, amontoados uns sobre os outros, as páginas coladas em seus corpos brilhantes. Pensa. Anda, vai, toma da garrafa pelo gargalo verde-espuma, colhe duas taças do aparador Luís XV, verte o líquido que beijará aqueles lábios, comungando rúbeos, dois animais nacarados que sorvem o desejo que pinga dos meus dedos. Pensa. Anda, vai. Mas, não. Permanece sob o olhar arrogante do pai, os animais preparando o bote, o cigarro fino e branco alongando-se entre os dedos. Ah, que presença você tem. A curva das costas enrodilhando-se no veludo da poltrona. As pernas encolhidas em direção ao peito extenso. As unhas afagando o aço escovado e sua boca sorrindo desejos. Tateio os bolsos. Procuro fósforos. Não os tenho. Você continua a sorrir, os olhos semicerrados, a boca semi-aberta, nasce um branco debaixo dos lábios, a fumaça do puro voluteia até o teto onde brilham os doze signos do zodíaco. E a chuva continua entrando pela janela aberta e explodindo no parapeito luminoso. E o seio continua ondeando as curvas do vestido negro. E o almanaque de símbolos, e o dicionário da língua portuguesa, e a revista de moda. Quando meu dou conta, a água já está pelos joelhos. São os meus? São os seus? Ainda preciso tomar os fósforos de alguma gaveta adormecida. Ainda preciso chapinhar entre os corpos negros na cozinha. Ainda preciso recolher velas. Ainda preciso não perder de vista os olhos selvagens à espreita – ainda preciso livrar meu coração da tocaia do seu calor, a fumaça do puro sangrando minhas veias. Ah, que beleza você é. O dicionário da língua portuguesa. Chove. O almanaque de símbolos. Continua a chover. A revista de moda. Do céu deságuam nuvens. Que sabor acre este vinho tem. Quando me dou conta, novamente, a poltrona azul flutua a céu aberto, e você colhe estrelas no horizonte, e as velas estão enfunadas, e os animais, todos os animais, a seus pés. Caberá a nós recriar o mundo. Toco o bolso sobre o peito. Estão lá os fósforos. Atrás de nós, o retrato do meu pai em chamas.Caberá a nós recriar o mundo. Toco o bolso sobre o peito. Estão lá os fósforos. Atrás de nós, o retrato do meu pai em chamas.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

karaoke







Just a perfect day, Drink Sangria in the park, And then later, when it gets dark, We go home. Just a perfect day, Feed animals in the zoo Then later, a movie, too, And then home. Oh it's such a perfect day, I'm glad I spent it with you. Oh such a perfect day, You just keep me hanging on, You just keep me hanging on. Just a perfect day, Problems all left alone, Weekenders on our own. It's such fun. Just a perfect day, You made me forget myself. I thought I was someone else, Someone good. Oh it's such a perfect day, I'm glad I spent it with you. Oh such a perfect day, You just keep me hanging on, You just keep me hanging on. You're going to reap just what you sow,You're going to reap just what you sow,You're going to reap just what you sow,You're going to reap just what you sow

[foto autor desconhecido]

domingo, 10 de maio de 2009

Versos de Nicolai


Dias se sucedem,
semanas se suc semanas se sucedem,
torvelinham,
num galop num galope célere;
como se cavalgássemos
sobre um tempo de so sobre um tempo de aço
voando
– olhos – olhos abertos –
pelo espaço pelo espaço pelo espaço.
Assim a vida,
ela nos atra ela nos atravessa –
o ouvido zoa,
o coração di o coração dispara,
como
se qu se quisesse
saltar para salta r saltar para
fora,
fora – é só o que lhe resta!
Se alguém
Se alguém tenta detê-lo,
Se alguém tenta detê-lo ele se altera:
toca a rebate,
toca a rebate dá por paus e pedras!
E quantas vezes
E quantas vezes o coração
E quantas vezes o coração explode
e não se ouve
e não se ouve a explosão
e não se ouve a explosão que o sacode.


[Nicolai Assiéiev, Coração batendo sem que se ouça, tradução de Haroldo de Campos, in Poesia russa moderna, São Paulo: Perspectiva, 2001]

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Um soneto de William


Leva-me, amor, todos os meus amores:
Que tens agora a mais que não te déssemos?
Nenhum sincero amor, amor, que apores
Ao quanto era já teu sem tais acréscimos.
E se é por meu amor que o amor me raptas,
Não te posso culpar se dele abusas;
Todavia te culpo se te adaptas
Só por capricho ao que em geral recusas.
Gentil ladrão, eu te perdôo a ofensa,
Pois roubaste de ti minha penúria.
Que sempre soube o amor ser dor mais densa
Sofrer seus erros que do ódio a injúria.
llllLasciva graça, que faz bem do mal;
llllMorro do teu desdém, não teu rival.



[William Shakespeare, 40, in 42 sonetos, organização e tradução Ivo Barroso, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005]


quarta-feira, 6 de maio de 2009

Um poema de Ada



Como eu queria
passar um dia
dentro de ti

para saber
onde me guardas
se é que me tens...



[Ada Lima, in Menina gauche, Natal: Edições Flor do Sal, 2008]



segunda-feira, 4 de maio de 2009

Com os restos da manhã alimentei teus pássaros






Com os restos da manhã alimentei teus pássaros.


Moça.


Pra que olhar pra cima e não enxergar a estrela escura do teu esconderijo?


Moça.


Uma gaiola tão dourada brilhando sob a chuva. Manhã.


Moça.


Quando da noite.


Da minha janela não vejo a tua.


Mas sei que estás.


Moça.


Sou apenas o rapaz que todas as manhãs varre a gaiola de ouro.


Moça.


Enquanto o sol te espana a face e teus dedos brincam com taça de cristal.


Moça.


O moço que não é pai de teus filhos.


O moço de uniforme para parecer tão igual.


Moça.


Enquanto tua boca se entreabre pedindo carícia.


E os olhos cerram e tateiam sonhos.


Moça.


Eu varro a sujeira dos pássaros para longe do ouro da tua prisão.


Moça.


Até que a manhã se vai e o alarido continua.


Batendo asas.


Moça.


Sem poder sair.