quarta-feira, 13 de maio de 2009

rainning





[Carla Bruttini, Senza nome, 2009, acrilico su tela, cm 100x100]




Deixei a chuva entrar pela janela aberta molhando os livros sob a janela. Um dicionário da língua portuguesa, um almanaque de símbolos, uma revista de moda. Ficaram ensopados e as páginas coladas umas sobre as outras. Deixei a janela aberta por onde você entrou sem agasalho, sem capa-plástica, sem guarda-chuva, sem polainas. Você sentou-se na poltrona azul junto à lareira e acendeu um puro brincando com as longas unhas vermelhas sobre a superfície escovada do isqueiro. Sua boca brilhava diante das chamas. Eu quis beijar o batom na sua boca e ter suas unhas rasgando minhas espáduas. Ah, que olhinhos verdes você tem. Eu pensei. Enquanto batia um cigarro contra o mármore da lareira, o retrato do meu pai assuntando junto às cabeças dos animais que abatemos no último safári. Ah, que pernas compridas nascem do seu vestidinho preto. Eu pensei. Enquanto a chuva continuava a entrar pela janela e a revista de moda, o almanaque de símbolos e o dicionário da língua portuguesa se desfaziam em círculos líquidos. Ainda tive tempo de ler numa página que navegou até meus pés Agni, Indra e Surya são os fogos dos mundos. Então. Pensei naquele escritor que disse num programa de tv se eu tivesse que salvar algo no incêndio da casa eu salvaria o fogo. Pensei naquele outro todos los fuegos, el fuego. Ainda há vinho na geladeira. Pensa. Anda, vai, atravessa o tapete de plumas, cruza o corredor de pássaros, adentra a cozinha onde os negros dormem pelo chão frio, amontoados uns sobre os outros, as páginas coladas em seus corpos brilhantes. Pensa. Anda, vai, toma da garrafa pelo gargalo verde-espuma, colhe duas taças do aparador Luís XV, verte o líquido que beijará aqueles lábios, comungando rúbeos, dois animais nacarados que sorvem o desejo que pinga dos meus dedos. Pensa. Anda, vai. Mas, não. Permanece sob o olhar arrogante do pai, os animais preparando o bote, o cigarro fino e branco alongando-se entre os dedos. Ah, que presença você tem. A curva das costas enrodilhando-se no veludo da poltrona. As pernas encolhidas em direção ao peito extenso. As unhas afagando o aço escovado e sua boca sorrindo desejos. Tateio os bolsos. Procuro fósforos. Não os tenho. Você continua a sorrir, os olhos semicerrados, a boca semi-aberta, nasce um branco debaixo dos lábios, a fumaça do puro voluteia até o teto onde brilham os doze signos do zodíaco. E a chuva continua entrando pela janela aberta e explodindo no parapeito luminoso. E o seio continua ondeando as curvas do vestido negro. E o almanaque de símbolos, e o dicionário da língua portuguesa, e a revista de moda. Quando meu dou conta, a água já está pelos joelhos. São os meus? São os seus? Ainda preciso tomar os fósforos de alguma gaveta adormecida. Ainda preciso chapinhar entre os corpos negros na cozinha. Ainda preciso recolher velas. Ainda preciso não perder de vista os olhos selvagens à espreita – ainda preciso livrar meu coração da tocaia do seu calor, a fumaça do puro sangrando minhas veias. Ah, que beleza você é. O dicionário da língua portuguesa. Chove. O almanaque de símbolos. Continua a chover. A revista de moda. Do céu deságuam nuvens. Que sabor acre este vinho tem. Quando me dou conta, novamente, a poltrona azul flutua a céu aberto, e você colhe estrelas no horizonte, e as velas estão enfunadas, e os animais, todos os animais, a seus pés. Caberá a nós recriar o mundo. Toco o bolso sobre o peito. Estão lá os fósforos. Atrás de nós, o retrato do meu pai em chamas.Caberá a nós recriar o mundo. Toco o bolso sobre o peito. Estão lá os fósforos. Atrás de nós, o retrato do meu pai em chamas.

3 comentários:

maria disse...

nas brumas de fumaça perdi o sapo, sem nem mesmo chamá-lo de príncipe.

Moacy Cirne disse...

Meu caro,
no Balaio de hoje há um texto seu, do ano passado.

Abraços.

midc disse...

sempre bom estar por la, moacy, em sua companhia e em companhia dos q fazem a sua companhia. abs, nossa sheyla me prende o posto na coluna a partir de amanha, acompanhe pelo sitio do jornal.