Qual o pente para desembaraçar sonhos?
Hoje eu vou me embriagar. Só um pouquinho. Um vinho de quinta na nevera. Um cálice – cálice... se diz copo, verdade? Eu, que detesto reticências, coloquei uma aí, três pontinhos – pois, um copo de vinho, nada de cristal tinitante. Algumas carteiras de Camel. Basta uma, mas nunca se sabe a sede dos pulmões. E Leonard Cohen no computador, que infelizmente não tenho nenhum LP de LC, e tampouco CD player. Ando tão desprovido de música, que é um pecado. Ainda que eu não acredite em pecados. Nenhum. Dia desses me falaram de uma historinha hilária: o rapaz foi na casa da moça. Ia dar uma carona, trabalho qualquer da universidade. Ela perguntou se ele queria subir, beber uma água, enfim, não tinham pressa. Nem ela tinha nenhuma intenção debaixo das pernas, acreditem. Nem todas as mulheres têm intenções primeiras ou segundas baixo ventre. Pois. Ele, ansioso, recusou água, café, o que mais foi oferecido. Pediu um prato. Aliás, perguntou assim: Tem um prato? Ela, claro, tinha um prato, tinha inclusive apenas lavado a louça. Foi lá na cozinha, sacou um do escorredor, branquinho, ainda úmido. Entregou pro rapaz, que parecia cada vez mais louco. Ele tirou um saquinho do bolso. Balançou. Abriu. Começou a despejar o conteúdo no prato – era um prato de sobremesa, não falei? Pois era. De sobremesa. Ou não era? Não importa. Ele começou a despejar o conteúdo do saco e parou assustado: Cê tá louca? Isso aqui tá ainda molhado. Sabe quanto dinheiro você ia me fazer perder? E cheirou suas carreiras e foi a única vez na vida que a moça viu alguém cheirar cocaína. Que tem a ver a história? Nada. Estou me embriagando, avisei. Nenhum pó na house. Nem nas prateleiras que a moça da limpeza semanal passou ontem. Ou foi antontem. Enfim. O vinhozinho é bem ruim. Um gostinho meio delicado, ao mesmo tempo ácido. Olha, não tenho a menor idéia de sabores frutados, odor de carvalho, não sei nem balançar o copo, como em circunavegação, como quem descobrisse o caminho das índias ao fazer o gesto e levar a taça – isso: nem cálice nem copo, o certo é taça – às narinas. Mas vinho tem que ser forte. Seco. E nada de tom rubi, a não ser que seja um rubi quase negro. Em quantas taças estou? A terceira, me parece. Três cigarros ao menos. E Leonard Cohen na vitrola digital.
O chato de morar em apartamento é que você não pode botar o som nas alturas. Quer dizer, pode né? especialmente se você mora no décimo-terceiro andar, o que é bem alto. Mas. Mas já tô a fins de, depois de tomar Manhattan, tomar Berlim. E ouvir um The Clash básico. Straight to hell, boys. Daí que, buscando no goear descubro essa versão, razoável, Moby e tal
Mas prefiro essa, original.
Tem uma faixa que tem a participação de Allen Ginsberg. Procurem. Não vou postar aqui. Ginsberg, de Uivo. E outros poemas. Ginsberg esteve no Marrocos? Não lembro. Burroughs, sim. William. Eu, um dia, ou noite, na City Lights de Firenze: E esse disco de burous na vitrine? O vendedor, chato. Ah! Uilame Barous. Ok. Não levei, no money, no way out. Falar de quê agora? De Sandinista, claro. Disco triplo do Clash, que exigiram fosse vendido pelo preço de um. Desconfio que no Brasil sudaca sacanearam com os caras e venderam um tanto a mais. O Clash era bem político. O que, claro, nesta cidade de reis e rainhas do maracatu tem outra conotação. Ancora un bicchieri per favore. O vinho começa a melhorar. Lalcahol. Vamos de Serge. Conhecem essa?
Tava procurando o disco que ele gravou na Jamaica. Com copa & cozinha, drum & bass, Sly & Shakespear. Ou seja, Sly Dunbar, drums, Robbie Shakespear, sem E, bass. Mauvaises nouvelles des étoiles. Wow. Que título. Encontrei o disco (CD, duplo) numa lojinha furreca lá na Princesa Isabel. Coisa de seis anos atrás. O que é muita sorte. Nisso sou sortudo. Encontrei, também, o LP L’homme a tête de chou, o homem com a cabeça de repolho, o que não é pouca coisa. Onde? no sebo de Jácio, em Morro Branco. Edição original, francesa. Mick Harvey, do Bad Seeds, foi quem melhor debulhou o homem que adorava Gitanes. Tem dois discos, Intoxicated man e Pink elephants, em covers de responsa de Gainsbourg. Nada no goear siginificativo, passo adiante. Sabe lá deus – que não fuma havanas – porquê, encaro uma PJ Harvey. Podia, ia, postar aqui Oh my lover. Não. Vou de The dancer, versão acústica.
Mas o melhor do vinho, sabem? é servir em pé. Porque você assiste o líquido escuro fazer um caos na taça, borbulhar aqui e ali, revolucionar o espaço bojudo num maremoto rosso que não dura muito, mas é uma tempestade fascinante. Experimentem servir o vinho sem excessivo cuidado. Nada de tocar a boca da garrafa na borda da taça – deixem que o vinho escorra pelo gargalho, como num tobogã psicodélico e jorre, literalmente, entre a parede circular de cristal, mesmo que o cristal seja barato e tal. E não deixem nunca que uma moça leve taças ao seu apartamento – um dia ela some, e as taças ficam lá, e permanecem tristes e caladas e começam a se encher de poeira e você não as usa e um dia elas se quebram e você há de descobrir uma explicação trágica para essa perda e perdas, moços, melhor que não sejam explicadas.
Robert Plant, Jimmy Page, John Paul Jones, John Bonham. Não precisa de explicações, né?
Também nem precisava de mais, mas vai essa versão, de bônus, bem legal
e olha (ou ouçam) o suingue dessa – The Who – nem parece, mas, ouçam alto:
o vinho é bom, sempre termina bom.
[Carla Bruttini, Detroit, 2009 Acrilico su tela cm 70 x 100]
Naquele tempo os dias passavam rápidos, como nuvens no céu.
Numa caixa aberta de Mate Leão, passarinho fez ninho.
Ficava no forro, onde cabiam meninos abaixo dos dez anos.
As telhas horizontais, de amianto. Podia-se caminhar sobre elas, sem perigo, mais próximos do céu.
O mundo era tão imenso.
As tardes permaneciam acordadas. Então, as nuvens interrompiam sua marcha e flutuavam, estáticas. O sol aquecia. As pálpebras se buliam, tímidas.
Lá embaixo a cidade quase não existia. As ruas vazias. Os adultos no trabalho. A faina era tão distante e desconhecida. Como os passarinhos, vez ou outra tornavam, nos horários das refeições.
Ele assistia o mundo se mexer, em retalhos de cotidiano. Desconhecia o compasso das horas, a fluidez dos minutos, a velocidade dos segundos.
Por que nunca tentou alçar vôo?
Agora que ela se foi pode respirar sossegado Pode comer em paz e não mais saltar as refeições Pode dormir o sono dos justos e não mais permanecer insone buscando na linha cruzada do sartório dela o prazer a vida o aconchego Pode assistir filmes na tevê ler livros na poltrona urinar no box beber à vontade o vinho que ficou aberto e sem rolha na geladeira Pode sair de casa tranquilamente às duas e vinte da manhã e voltar com os passarinhos tilintando entre as pedras da calçada Pode e quem diria que isso seria possível? deixar as janelas abertas e a chuva varrer o chão da sala e os tapetes dos quartos Pode fumar em todos os aposentos e tropeçar o cotovelo em um dos infinitos cinzeiros deixando que as cinzas se percam em si mesmas Pode dormir no sofá da sala e deixar a tevê ligada e as luzes acesas e não trocar os lençóis e não fazer a cama e não tirar o lixo pra fora nem o gato de cima do fogão Pode tranquilamente ir ao bar da esquina responder com um sorriso à pergunta do garção por que tinha sumido tanto tempo e saber que sim tanto tempo tinha se passado e nem ele sabia quanto tempo era mas agora sabe e nossa como foi muito tempo desde então Pode também perguntar por aquela morena a de olhos verdes e cabelo índio e nem se preocupar com a resposta porque aquela outra loira já sentou à sua mesa e ele agora pode tocar em seu joelho redondo como se nada fosse e não não é como se nada fosse é apenas o sinal para que mais tarde ela suba ao seu apartamento e se dispa e e e aconteçam coisas maravilhosas que antes não poderiam acontecer porque ela estava ali Agora que ela se foi ele não sabe por que fazer nenhuma dessas coisas Porque ela se foi e ele pode respirar sossegado comer em paz dormir o sono dos justos Mas o ar é muito pesado a comida é sem sal e não há sonho na justiça.
[Robert De Niro The Mission 1986]
Comprei flores. Pétalas brancas, corola amarela, um amarelinho tão claro, com vontade de sumir.
É preciso ter flores em casa. Apartamento que se deixa respirar pelos buracos abertos do ar-condicionado que não há.
Não senti ainda algum perfume, se perfume existe. Vez por outra sobe um ar nauseabundo das ruas. Mas me recuso a senti-lo.
Só uma questão biológica, mesmo.
[Ouka Lele El espejo]
Para abandonar um corpo deve-se antes calcular seu peso, massa e volume – e as dimensões que ocupa na alma humana. Deve-se saber, ainda, a linha que o costurou – se em algodão cru, se em fio metálico, se em nylon de pesca, ou cipó, ou capim. Apreender os modos e os caminhos dos nós é também de vital importância. Como penetrou na pele, idem. Hoje, sabe-se que os perfurocortantes são especialmente rancorosos.
Para abandonar um corpo deve-se entender qual instrumento responde melhor à necessidade imperiosa de medir sua sombra entre as ranhuras da calçada. Um certo conhecimento musical é válido, e de grande serventia, especialmente quando as sombras são do tipo helicoidal. Sombras do tipo coleóptero, é do conhecimento da gente que vive em laboratórios, são silentes. Sombras que arrastam redemoinhos são particularmente invejosas. Atrás delas é comum, e até esperado, que a matilha arda em febre, sedenta de sangue.
Para deixar um corpo ir – e esse trecho é fundamental – é preciso antes agarrá-lo. Com unhas, se necessárias. As mordidas, mesmo que arruínem o objeto, são permitidas. Os caninos não são mais contundentes que os molares. Atentem para o uso das mãos. Em muitas ocasiões o uso do sartório é de grande valia. Espécie quando traz em sua contratura a memória recorrente do que já foi – e ainda não se foi.
Para deixar um corpo é preciso antes tê-lo recebido.
Em toda a sua intensidade e grandeza. Em toda sua extensão e profundidade.
Para abandonar um corpo é importante manter as mãos suaves e perfumadas. Colher amoras é recomendável. Afrouxar a coleira de cães pode trazer bênçãos. Acreditar no infinito, leva a atalhos.
Muitas linhas têm as mãos. Em suas plantas. A linha da vida, a do tempo, amor, doença. É quando se separam, não em seu encontro, que reside o segredo de bem deixar partir o corpo que se deseja que parta.
Olhar as rugas no espelho ajuda nos casos de corpos antigos. Mudar a disposição dos móveis da sala, naqueles mais novos. Corpos de um dia podem ser mais perigosos do que corpos com muita existência nas costas. (Os cálculos são feitos a partir da angulação das vértebras.)
Para abandonar um corpo deve-se evitar caminhos muito sinuosos, veredas muito afastadas, senderos luminosos. A lua nova é ideal. Em noites de lua plena, esqueça. Apague as luzes, retire os eletrodomésticos das tomadas, ferva água numa chaleira. Após uma noite de mergulho e imersão, aguarde ao menos quarenta dias – para proceder à nova tentativa. Antes disso é não apenas inútil como altamente desaconselhável. Durante a quarentena o exercício da dança mostra-se excelente bálsamo. Se não cura feridas nem acelera cicatrização, ao menos conforta.
É preciso estar descansado, ao abandonar um outro corpo. Há registros de corpos extenuados que se deixaram levar junto ao corpo que se pretendia abandonar. Desconfia-se que esse era o real desejo. O encanto. O alumbramento. Mas são casos perdidos e não devemos com eles nos preocupar.
Esse é um manual para quem precisa abandonar com premência o outro corpo.
Para os que desejam sobreviver.
Para abandonar um corpo é preciso estar atento aos primeiros sinais de degeneração. Recorrência de sonhos. Olhos abertos colhendo estrelas em plena luz do meio-dia. Arrepio n’alma.
Casos em que o sujeito prefira acompanhar o ondular do vento nas pétalas das flores da campina em vez de pedras carregar são condenados, fadados ao fracasso, impossibilitados de solução.
Para abandonar um corpo é obrigatório conhecer o estado da casa onde o corpo reside. A coabitação dificulta, mas mesmo sem esse antecedente, o esforço pode ser maior do que se imagina. Os novos manuais não mais diferenciam casos assim. Os tempos são outros etc. E quando os tempos são outros etc. não adianta insistir em ilusões perdidas, em bosques de replantio, em rearranjos astrais.
Não adianta.
Desmontar uma casa em pedaços que não se unem jamais é tarefa que exige mais cérebro do que músculos. É trabalho de Heracles, apenas pela dificuldade envolvida. A isso nomina-se metáfora. Não se carrega um caminhão de mudanças com metáforas. O abajur dourado? A caixinha de música? A mulher grávida entalhada na madeira? O quadro de Peter? O long-play riscado? Para abandonar um corpo os tempos são outros etc.
Para abandonar um corpo procede-se assim: com uma leve pressão ao contrário, abra os dedos, um após o outro. Feche os olhos. Ouça o vento. Se ele tornar-se excessivamente rumoroso é você quem foi largado. E o corpo abandonado é o seu.
[Caspar David Friedrich, Der mönch am meer, 1808-10]
Ao amanhecer todas as cidades se parecem.
Só você ao despertar não se assemelha a ninguém nem a nada no mundo.
No alto dos prédios imóveis pastoreia as nuvens o sol.
A teus pés apascento o sonho. Para quando despertes o mundo não se pareça a nenhuma manhã conhecida.
[Gian Lorenzo Bernini, Ratto di Proserpina, Galleria Borghese, Roma]
Agora que foi embora sabe que as paisagens não mudam senão com o vento. Sem indicação de tempestade – os pássaros indiferentes, saltitantes, o bico colhendo insetos invisíveis, uma folha caindo solitária – resta pouco a fazer, olhar o mato crescendo afugentando horizontes, ouvir o canto da cigarra em qualquer tronco de árvore decomposto, deixar-se cegar por um sol tão quente que derreteu as nuvens. Quem é ela? Pensa. A que foi embora. Conclui. Vira de lado, abraça o ventre, as pálpebras não pesam, mas as deixa cair. E, caindo, retornam as sombras. Tempo haverá. Outro pensamento. Fazer agora como o personagem de Proust. “Durante muito tempo, deitava-me cedo.” Ou “Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo.” Duas traduções diferentes para a mesma frase. “Longtemps, jé me suis couché de bonne heure.” A segunda tradução é de Mario Quintana, que morreu em um albergo. Pobre. Que tem a ver? Nada. Nada tem a ver agora que ela foi embora. Um arremedo da frase também sai da boca do mafioso Robert de Niro, comedor de ópio dos bons em C’era una volta in America – Que tem feito todos estes anos?, pergunta o gordinho, o que não tinha entrado pro crime pra valer. – Tenho dormido cedo, responde De Niro, os olhos ausentes dela.
Por mim restaria do lado de fora, falei. Por mim desconheceria as marcas no ringue, pensei. As cordas tensas. O ventre seco. Descemos a colina em busca do mar. Areia nos joelhos. A água um imenso prato raso coalhado de luzes intensas. Os garotos, todos nus, garotos, correndo à beira-mar. Ao fim, encontramos Monica. O cabelo de menino loiro. Os seios por trás da malha branca de mangas compridas. Pensei que não viriam mais, ela disse. Eu sorri e desviei os olhos lá pros lados do pontilhão que avançava rumo ao horizonte. Ela enterrou os pés na areia, a mão no queixo. Um fio de cabelo teimou em lamber-lhe o nariz. O sol se desmanchava no fim da tarde, fim do céu. Tudo tão dourado. O mar, raso. Sem sombras. Sem ondas. Uma quietude só. Eu estendi a mão e afastei o fio de cabelo. Ela abraçou Monica pelas costas, os pés ainda enterrados na areia fina, remexendo sob a areia fina, tarde de verão, fim de tarde de verão. Quando caí, as marcas das cordas tensionadas desenhando nas minhas costas linhas horizontes sinais – Foi do que lembrei. Eu disse. Ou pensei, não me lembro bem.
Cai a noite e o horizonte se coalha de estrelas mas estrelas não são.
Cai a noite, no horizonte se multiplicam as salas, as cozinhas, as áreas de serviço, os quartos de dormir.
Cai a noite e se espraia pelo horizonte lampejando verdades dúvidas sinais.
Cai a noite – as pessoas em casa têm tornado cedo.
Caída a noite, a gente acende seus Lares. E preparam seus banquetes. E comem seus deuses.
Calada a noite. O telefone toca. Alguém diz:
- Preciso tomar um café com leite.
Noutra ponta: um caffelatte.
Foi impressão minha ou as estrelas se desalinharam quando seu rosto não tocou o meu?
A verdade é que eu caminhava pelos subterrâneos, sempre. A verdade é que onde eu ia encontrava rapazes e moças com os braços espetados de seringas, sempre. A verdade é que todas as vezes em que estive em África eu contraí a AIDS, sempre, todas as vezes. A verdade é que todas as vezes em que fui ao Camboja me entupi de ópio, sempre. A verdade é que sempre que eu cruzava a rua você estava do outro lado, me esperando, sempre. A verdade é que cada vez que você sorria eu sentia um punho de dentes na boca do estômago, sempre. A verdade é que, naquela tarde, em Ollantaytambo, sempre, o vento assanhando seu penteado, sempre, a verdade é que no domingo de páscoa, em Panarea, sempre, em Panarea, sempre, Lisca Bianca, sempre, a verdade é que, naquela tarde, em Ollantaytambo, o vento assanhando seus cabelos, o vento desfazendo seu penteado, eu lhe abracei e evitamos cair do penhasco, sempre. A verdade é que eu sempre estive caindo de penhascos, rochedos, desfiladeiros, escarpas. Sempre.
A verdade é que eu subia e descia de bondes elétricos em Viena d’Áustria enquanto dormia as noites num quarto de hotel vagabundo em Viena d’Áustria e sonhava em ser escritor só porque no quarto de hotel vagabundo em Viena d’Áustria havia uma mesa e uma cadeira no centro da câmara com vistas para a estação de trens onde velhos nazistas me olhavam com raiva nos olhos e eu nem me importava porque tudo que eu buscava eram cigarros contrabandeados e um pouco de haxixe para mascar, sempre. A verdade é que quando te abandonei no mercado de pulgas de Paris com um lenço enorme cheio de arabescos indianos nas mãos eu queria fugir, sempre, porque, sempre, em toda a minha vida eu quis fugir de você, sempre. A verdade é que eu passei boa parte daqueles anos descendo e subindo as escadas do metrô, sempre. Sem um trabalho, sem um prato de comida, sem um amor, sempre. Porque é verdade que nada disso importava muito, e nada importava sempre, porque sempre sua ausência se impunha com a força de um furacão levando tudo mais embora. Sempre.
A verdade é que eu nunca estive na pior em Paris e em Londres, sempre. Porque eu nunca estive sempre em Paris, nem sempre Londres, nem sempre. A verdade é que todos aqueles punks em Picadilly Circus me pareceram por demais idiotas ainda mais quando os idiotas me quebraram o nariz e me torceram o braço e me chutaram as costelas como só os idiotas, os brutamontes, os imbecis, os mais-fortes-do-que-eu sabem chutar e quebrar costelas, sempre. A verdade é que você a tudo assistia e eu só me importava se o comprimento da sua saia não deixaria aqueles idiotas verem sua calcinha. A verdade é que eu nunca me lembraria nunca, jamais, sempre, de todas as suas calcinhas, nem daquela, minúscula, o cordãozinho de ouro cingindo sua cintura, sempre. A verdade é que em todos os aéreos em que embarquei, em todas as naves que singraram as águas calmas dos portos, em todos trens que saltei, sempre, antes da última estação, sempre pensei em você, sempre. A verdade é que todo esse percurso de fugas, de exílios, de ciladas, de drogas, sonhos, delírios, toda essa manada de elefantes no centro da sala, sempre, sempre, findaram me levando ainda mais próximo de você. Sempre.
Com os restos de palavras suas reconstruí parte do mundo, ou ao menos mais um graveto partido e esquálido para o ninho que nunca edificaremos. Não houve como evitar. Parabéns. Você me disse. E desta vez não retruquei. Eu posso. Você pôde – acrescentando um sic entre parêntesis maternos – (sic).
Ah. Sic. Sick. Sicky. Palavras inglesas. Não minhas. Se é ficção. Se é realidade. A vida não imita a arte, imita a vida, mesmo.
A vida e seus anzóis. A vida e seus anéis. A vida e seus dedos.
A vida e seus comentários.
Todo esse labirinto de palavras. Toda essa teia de não-promessas. Toda essa ferrugem cobrindo sonhos, agasalhando invernos d’alma.
Tudo é desencontro. E desassossego. Você, que está sempre partindo, mala e cuia nas mãos, os vagões açoitando seus cabelos.
Você. O capote escuro, pesado, caindo seus ombros sobre bagagens perdidas. Achados, perdidos, reencontrados.
Neste momento milhares de pessoas embarcam, seguem viagem.
Noutro, milhares de pessoas fizeram o mesmo. Viagem. Farão. Viagem.
Trens cruzam trens. Aéreos passam sobre rotas de outros aéreos. Barcos chapinham seus cascos de aço em oceanos profundos. Um pirata palita o dente. Uma jovem esposa abre a caixinha e descortina brincos de pérolas. Uma senhora, o cê duplo marcando a bolsa, vagueia seu corpo diante de vitrines iluminadas.
Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que é branco é pérola, nem todo peito é nacarado.
Uma moça serve café.
Outra acabou de mudar-se. Deixou a mala fechada e desceu para tomar um copo de vinho na esquina e não comprar cigarros e olhar pelo clarão da fachada e lembrar o amante quilômetros além, milhas náuticas, bússolas partidas, relógios sem corda.
Apenas eu e você restamos na cidade vazia. Nossos corações batendo forte em esquinas por onde passamos em horários diferentes, em dias diferentes, em vidas diferentes, evitando o encontro, o naufrágio, o acidente, os corpos por resgatar.
É assustador, eu sei.
Já passei por isso. Era preciso uma bicicleta, uma noite fria, uma chuva providencial e uma avenida ao longo de um rio para sentir na realidade o que é ficção, sonho, ilusão. Para desenlear as rotas, desenjaular medos, desencantar recifes.Não sei de suas palavras. Das minhas, soçobro.