quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Desencontro



[Guido Crepax]



Eu pensava que te encontraria no bar da esquina. Mas estava fechado, as cadeiras com as pernas pra cima, um gato dormindo e espalhando pêlos sobre o balcão.

Na praça, não fui, que me espantam sombras que noite sóis derramar no chão de pedras portuguesas.

Espiei cada táxi – só motoristas cansados, sonhando carneiros, uns. Outros três – em círculo, não em triângulo isósceles – fumavam baganas, os pés rodopiando espirais.

No bar da moda, apenas o bar da moda. Moças, moços. Não nessa ordem e ou seqüência. Não em gênero, número, grau.

Tudo tão tranqüilo com o vendedor de amendoins.

Com a moça das flores.

Com a cartola e a capa do mágico.

Comprei cigarros no armazém do porto. Uma puta, batom borrado. Uma puta, boca torta. Uma puta, coxas mulatas. Tafetá.

Desandei com os cigarros, como se Buenos Aires fosse. Não era rio. Não era mar. Apenas a catraia chovendo ferrugens.

Procurei entre os pomodoros do spaghetti western: Sergio Leone me piscou o olho, Clint Eastwood riscou um fósforo no solado da bota, Alex Nascimento me mandou beijinhos. Que moça adorável, Alexinho!

As nuvens apostavam corrida com o automóvel triste. O edifício tinha um nome: Étoile.

Subi e desci. O elevador fazia rumores de gato arranhando cortinas. De seda. Púrpura. Uma criança entrou no 27º. Cachinhos dourados. Asinhas nas costas. Quando se virou pra despedir um sorriso branco, deixou um odor de enxofre.

Também lá.

Dirigi a noite inteira. Oh night long. You’re the sunshine of my life. I just call to say.

Um uísque ainda na casa do velho amigo. Me serviu sem pedras. O rosto vincado. Tão agreste amizade. Mais rumor fazia um calango aquecendo rocha. Mostrou-me uma lista: teu nome de cima abaixo.

Riscamos todos. Quando a tinta acabou, passamos ao batom. A filha adolescente os havia dispensado quando optou pela careca radical e coturno pesado. Bela moça, ainda que as olheiras escuras.

Passeei ao largo, um Anjo me acompanhou, asas em movimentos tão sutis que nenhum papel rodopiou ao alto, nenhuma flor desabrochou.

Apenas te vi de relance na vitrine apagada. Por engano, era eu. Tão triste, tão só, o sobretudo abotoado escondendo as mordidas, os cabelos enganando os olhos escuros, o Anjo afagando o ar.

Quando reentrei em casa, bexiga cheia flertando com booom-bum-bang. Você se virou erguendo a coxa e desafiando os lençóis. Eu apenas entrei e saí, em tempo de ouvir da tua boca um apelo que não ouso repetir.

domingo, 21 de setembro de 2008

A felicidade é um revólver quente



A felicidade é um revólver quente.

O cano ainda fumegante.

O dedo ainda no gatilho.

A mão ainda na coxa.

Teu dedo em minha nuca.

Minha boca em tua língua.

A felicidade é um cão dobrando a esquina.

Longe das árvores.

Sob a sombra das copas.

A felicidade é um negócio ruim.

Quando bate, queima.

Quando fisga, morde.

Quando morde, rasga.

A felicidade é um cão dobrando a esquina.

Mas a felicidade do cão não é a mesma da esquina.

Um troço ruim.

Quando vem, machuca.

Quando queima, arde.

Quando arde, esquece de assoprar.

A felicidade.



Eu pensava que a felicidade fosse apenas um revólver sem balas.

Eu pensava.



Longe de mim, teu corpo fenece.




Oceânica





Como não me perguntaram, eu não falei.

Não disse.

E por que não me perguntaram, recolhi, recolhi-me, recolhi tanto lixo sideral, poeira de estrelas, copos vazios, cinzeiros quebrados.

E por não recolher-me, parti.

Sem um adeus, sem beijo de despedida.

Sem lenço na plataforma da estação.

Era inverno e no entanto era verão.

Primavera.

As folhas caíam como no outono, os frutos maduravam nas calçadas.

Só eu e você diante do nascer do sol.

Soprou um vento úmido. Fez frio de gelar as ventas.

O rio continuou seu mergulho contínuo no mar.

As ondas quebraram na praia.

Mesmo longe da arrebentação, nos arrebentamos todos.

Todos, eu e você.

Numa mesma ilha, sem nos encontrar.

E tão pouco (tão pouco) nos perder.

Secret life of plants






Beba-me, e eu andarei sobre estrelas.


Beba-me, e engoliremos a noite.


Beba-me, e as nuvens deixarão fiapos soltos entre dentes nossos.


Beba-me, enquanto minha boca busca tua mordida. Enquanto tua boca ronda meu pescoço.


Enquanto tua mão colhe plantas e flores no calor do meu sexo. Transplantados ao teu. Haste úmida, respiro aquático.


Beba-me, enquanto dançamos à beira do abismo, princípio nosso de cada fuga que fazemos antes do amanhecer.


Beba-me, mate-me.


Beba-me enquanto me comes.


Só não me abandones.


quinta-feira, 11 de setembro de 2008

eyewear



Me olhou através de uns óculos doidos uma moça de nome Alice.

Não, não me disse o nome, e estava mais para uma das tantas maravilhas de país subterrâneo do que para lolita em vestido azul-bebê e avental candejante.

Não me disse o nome.

Não se apresentou – assim:

– Alice.

Muito prazer.

Me olhou apenas com pérolas esmeraldas. Turmalinas. Turquesas. Azul celestial. Coro de anjos em Creta.

Me olhou apenas com molduras heritage.

Um sorriso rosa na comissura labial.

Sem luvas de boxe.

Acompanhei a brancura de um braço magro, despontada na t-shirt de algodão. Cotton club. Barriguinha aflorando sobre o cós da calça jeans.

Nuca navalhando fios de cor indefinida, de corte indefinido, de sexo indefinido.

Por trás dos óculos.

O sol derramando-se por sobre os casulos da plantation, os negros ferindo os dedos nas flores alvas, águas mornas encubando peixes.

Meu coração: represa para o salto dos peixes.

Ao final, ao final, descendo olhos, desabando olhares, acompanhando as duas pernas de algodão sarjado lavado nas pedras tingido de verde, ao final, ao final, dois minúsculos pés de gueixa – sempre em sintonia com os olhos emoldurados e o sorriso róseo.

Me olhou através de óculos que gostei. E por que atrás dos óculos brilhavam dois olhos que supus verdes. Da cor com que se tintura o algodão das lonas índigo.

Encostou a coluna nas vértebras da entrada. De madeira o pilar central. Alguém atravessou o salão espalhando os saltos altos no assoalho de tábuas. Cruzou o salão, os pés estancaram, abriram-se em leque. Diante de uma radiola. O long play reagiu à mordida da agulha, continuou a girar.

Ela me levou pela mão, abriu a porta do Porsche Carrera branco-pálido. Descortinou a rodovia sob nossos pés o asfalto correndo e sumindo no retrovisor, seus óculos, óculo, abandonados no rosto, a pele tão branca, tão alva, cotton club.

sábado, 6 de setembro de 2008

speaking in Tangos


Um punhado de tabaco.

Um punhal de aço inoxidável.

Uma cerveja maltada.

Um bloco de anotação.

Uma bic azul.

Não escrita fina.

Uma bic azul.

Não escrita fina.

Uma multidão lá fora.

A solidão cá dentro.