sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Cloverfield de agave [290208]

Em Cidade dos Reis as damas não perdem a cabeça por pouca coisa













Eu juro que esperava mais.

Um vento, vendaval, um terremoto, um maremoto, uma revolução.

Telefones congestionados, trânsito caótico, os pais buscando desesperados os filhos mais cedo nas escolas, a cúpula do governo reunida em palácio, a PM e o exército acionados, assessores se descabelando, garçons servindo, pressurosos, jarras e mais jarras de maracujina.

Eu esperava ver o povo polindo as lâminas de centenas de guilhotinas nos quatro cantos da cidade, e, no interior, retirando do punho das redes as cordas para enforcar os poderosos de sempre, os suspeitos de sempre, como em Casablanca – e junto com eles a corrupção, velha senhora pairando sob os céus luminosos do Ryo Grande, com seus dias contados.

Eu juro. Eu esperava mais. Blecaute. TVs fora do ar. Barricadas nas portas dos jornais. Celulares fervendo. Carros freando bruscamente nas portas das livrarias e nas cigarreiras. E homens de preto, óculos escuros e queixo quadrado abrindo porta-malas e apreendendo a primeira edição de um livro de 346 páginas com subversivo título.

Eu esperava que o 27 de fevereiro fosse o nosso 11 de setembro. Que a Manhattan de “Cloverfield” migrasse das telas para a Afonso Pena, nossa Manhattan local.

Desilusão, meu bem.

Me sentindo o próprio coelho de Alice, desembarco, sol posto, na banca de Tota – marco zero do Plano Palumbo, como entoam os cronistas da cidade. Corro os olhos pelas prateleiras e sem dificuldade encontro a mina atômica, com suposto potencial para derrubar governos e mudar o curso da história política do Erre-Ene. A distribuição tinha começado na calada da noite anterior. Pergunto quantos ainda tem em estoque. Cinco, me diz o balconista. Quantos vieram. Cinco, repete a primeira resposta.

Sem nada a fazer, pago os 40 reais pelo livro e vou pra Pasárgada, onde não sou amigo de ninguém. Ler meu livrinho sossegado. O faço, de uma tirada só, na noite calma e serena, céu descoberto, estrelas brilhando, e o mar, ali bem perto, marulhando, marulhando.

Descubro que “Alças de agave”, o livro prometido de François Silvestre não revela muito mais do que já se sabia. Sobre o folioduto – que eu prefiro como foliaduto. François nomeia algumas reses, mas omite também alguns nomes do rebanho. O saldo, embora positivo, termina enfraquecido por essas ausências. Ao pisar em ovos, naturalmente quebra alguns. E mostra-se, ao longo das três centenas e meia de páginas, tão desiludido quanto enganado. Enganado pela governadora Wilma de Faria, pelos assessores diretos – alguns deles amigos pessoais –, mas enganado, principalmente, por ele mesmo, caçador de abelhas, criador de preás, servidor de pato na bandeja político-eleitoral. “O pato é um dos poucos animais que anda, corre, nada e voa”, escreveu, relembrando a campanha que levou Dona Wilma ao governo.

Pois, à frente da Fundação Zé Augusto, François andou, correu, nadou e avoou. Foi derrubado em pleno vôo, pretensamente livre das burocracias que rejeita, mas acorrentado nas armadilhas de um governo que, à imagem da governadora, “não gosta de cultura”, mas de “cultura de festejo e diversão, que é o lado secundário da cultura”. E refém do wilmismo, mais afeito à “sabujice” e à “bajulação” que ao trabalho profissional e desinteressado.

Derrubado mas não abatido, o pato escapou da panela e escreveu um livro. Que não provocou ventos nem tempestades etc. E que, apesar disso, já nasce como um clássico.

Daqui a meio século provavelmente vai ser o único registro em papel, a única versão sobre o atual governo, que, no andar da carruagem e ao dar as costas para a cultura, ignorando, entre outros, a literatura, termina apagando sua própria história. Sem deixar rastro.





PROSA
Se o poder fosse honesto, franco, limpo, conviveria muito bem com a cultura.
François Silvestre
Alças de agave
VERSO
Calei também de tristeza
de cansaço e desencanto.
François Silvestre
“Arquivo”



quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Mahatma e o elefante sem memória [100108]




“Natal é uma mocinha do interior – hipócrita, safada, e que se prostitui à noite, barato!”

Marcelo Gandhi não tem papas na língua, percebe-se logo, quase de cara ou em ao menos cinco minutos numa conversa onde não procura agradar nem tão pouco cuspir no prato em que comeu. Gandhi nasceu em Natal, foi pra Parnamirim bem cedo, filho de militar e professora. Se lhe perguntam onde quer gravar um depoimento em vídeo sobre sua carreira artística, responde quase de supetão: “Em Parnamirim, na praça, tomando sorvete”. Pra Marcelo Gandhi parece não existir muita diferença entre a arte que produz e seu maior prazer: “Tomar sorvete é a minha cara”, explica, repete. Não à toa pichou na parede do Salão Newton Navarro da Fundação Zé Augusto: “Sorvete é bom demais”. Pichou também: “Depois da era vitoriana, o grande elefante se desmaterializa-se, a gênese do conformismo em Natal”. A redundância do pronome “se”, faz questão de explicar, é proposital. Não a mim, mas aos visitantes da sua exposição Site specific – lugar específico: a explicação redundante é também pichação na parede.

Eu escrevi pichação? Pode ser, mas também grafite ou grafito – a segunda expressão já remetendo à arqueologia. Caverna. Cela de prisão. Galeria de Arte. Ante-sala e anti-sala de uma Fundação que parece em vias de extinção.

O lugar específico de Gandhi é romper com o banal e os lugares-comuns. A exposição provocou polêmica e mal-entendidos ainda antes da abertura, na semana que passou: um funcionário da Fundação, ao dar de cara com as pichações, desenhos, carimbos nas paredes do Salão Nobre, o retrato de Navarro num canto, pensou tratar-se de obras de vândalos.

Gandhi parece se equilibrar entre o incômodo pessoal de não ser compreendido e o incômodo que provoca nos outros, inclusive nos setores culturais. Quanto a isso, está bem contente com a exposição de despedida: há dez anos procura com sua arte discutir o espaço, discutir o padrão de beleza vigente, discutir o suporte tradicional da arte (incomoda-se particularmente com as molduras limitantes) e a rigidez das instituições.

Vai para São Paulo, diz, em busca da grana. Repete a palavra grana, uma, duas, dez vezes, como um disco de Zappa enganchado na faixa “We’re only in it for the Money”. Palmas para ele, que não tem medo de ser mal entendido, que não se enquadra na tradição – mais velha que a Serra do Cabugi – de um falso romantismo que prefere enquadrar arte e artista na velha tríade – marginal+pobre+louco. Lembra que passou a vida entre Parnamirim e Natal sentindo-se fora do prumo, fora do eixo, estranho no ninho. Até na UFRN, onde formou-se em Educação Artística. Em São Paulo sentiu-se em casa, percebeu que o que fazia não era estranho, e, melhor, que podia ser pago por isso. Encontrou a sua turma, o coletivo Ação Multiplicadora: sete paulistas, um cearense, um potiguar.

Cansou. “A política no estado ocupou tudo, caderno cultural é coluna social. Mas saio de Natal sem nenhuma raiva. Adoro isso aqui. Natal é belíssima mas vou buscar em São Paulo a tampa pra cobrir minha panela”.

Eu pergunto o porquê dos carimbos dos patos que repetem-se nas quatro paredes do salão, tão minúsculos e tão sonoros. Explica que vem de Björk, a cantora islandesa, que usou a ave numa logo e que ele adora. “É também um bicho que nós comemos, e quase ignoramos”. Se Marcel Duchamp pintou o famoso Nu descendo a escada, Gandhi substitui a figura feminina (que em Duchamp mal se percebe sexo e nudez) pela imagem do pato.

Alguém pode pensar que é ironia do artista com o público – quem é o pato que cai nessa que isso é arte? Alguém pode pensar que é uma homenagem a João Gilberto. Alguém pode pensar que é pelo jeito cadenciado, malemolente da ave, ainda mais ridícula ao descer eternamente degraus sem fim acreditando ser uma mulher, nua e bela. Alguém pode nem ter visto os patinhos, cruzado o hall de entrada e comentado com indignação: “Vândalos!”


Retrato do artista segundo outros
“Marcelo Gandhi foi o primeiro potiguar a ser selecionado pelo Itaú Rumos Visuais – isso, historicamente, foi muito importante, e também permitiu que ele tivesse acesso a um grande número de profissionais das artes, inclusive curadores. Ele está abrindo a casca do ovo agora, comete alguns excessos – e deve cometê-los – graças à própria juventude.” [Flávio Freitas]


“Ao transportar o cotidiano urbano para dentro de uma galeria, ainda mais numa instituição pública, Gandhi chocou as pessoas – e se há esse choque é simplesmente porque as pessoas não querem ver o próprio cotidiano. O que falta em Natal é repertório para absorver o que é produzido de boa qualidade aqui.” [Sayonara Pinheiro]


“A entrada de Marcelo Gandhi na cena cultural potiguar, no inicio dos anos 00, personifica, pra mim, a entrada em cena de uma nova geração nas artes visuais do estado, depois de uma década de 90 um tanto estagnada nesse setor, uma década sem uma renovação aparente de talentos e propostas artísticas.” [Afonso Martins]







PROSA
... se você está decidido a ser pintor, tem também de estar decidido a não ter medo de bancar o idiota.
Francis Bacon
Entrevistas com
VERSO
Que da furna se desgarre a argila, que o cutelo talhe a pedra
Que o fogo não vacile em vossa forja.
T. S. Eliot
“A rocha”

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Au revoir, Levino [030108]


O titular desta coluna – até ontem – não será nem o primeiro nem o último a pegar um pau-de-arara e se mandar, malas e cuias, pro Sul Maravilha. Enfant terrible do jornalismo cultural potiguar, ainda mais no ano que findou graças ao qüiproquó com Madame Hilneth Correia, Levino parte, deixa saudades e porta deste novo titular, egresso do banco de reservas, os melhores votos de um futuro alvissareiro longe das pendengas paroquiais.

“Plus ça change, plus c’est la même chose”, na cartilha de um autor francês que aqui pouco importa o nome mas a tradução: “Isso quanto mais muda, mais fica a mesma coisa”. Só para lembrar uns muitos que de aqui também partiram em busca da terra prometida, a começar pelo mossoroense Dorian Jorge Freire: “Sou um jovem. Vacinado, reservista, datilógrafo e sem qualquer religião ou dependência política. Não possuo nada além de uma vontade obsessiva de vencer, de fazer alguma coisa, de empregar minha vida em algo útil”, escreveu Jorge Freire a Edmar Morel, jornalista da Última Hora, de Samuel Wainer.

“Tenho meu nome respeitado”, prossegue missiva e missivista. “Embora moço, sabem todos que não temo dizer a verdade, que não me vendo a qualquer interesse, que, pobre, sei ser independente à custa dos maiores sacrifícios. Já tive a felicidade de ver meus trabalhos aplaudidos e atacados violentamente”.

A carta tem mais de meio século de vida mas preserva os mesmos lugares comuns do migrante – reconhecimento, aplausos, apupos? “Infelizmente, isso não é tudo e eu quero mais. Estou resolvido a sair de Mossoró, a emigrar. São Paulo. É uma aventura, bem o sei. Mas preciso o salto. Do contrário viverei sempre aqui, aqui casarei, aqui terei uma mulher muito bondosa, filhos remelentos, um ordenado ‘compensador’ e só. Paz campesina que não me interessa. Ramerrão que me entendia. Prefiro a luta. Os embates. Por isso pretendo arribar ainda este ano. Lá por dezembro”, quase conclui Dorian – que voltaria anos depois, entrando para a história do jornalismo nacional.

Também dez anos depois da carta do mossoroense, arribava mais um jornalista, desta vez num navio cargueiro: Sanderson Negreiros. Deu com os costados na Cidade Maravilhosa, trabalhou nas revistas Manchete e Visão. Voltou.

Um dos amigos presentes na despedida do cais era Berilo Wanderley, que chegou a viver em Madri, na Espanha, e voltou: “E vendo quanto o meio marca o espírito de um homem, desde que voltei, procuro sair de Natal”. Não saiu. Vez por outra fugia dos ossos do ofício. De Berilo, Luís Carlos Guimarães ouviu o comentário na redação do jornal, anos 60: “Um dia desses não se pode entregar ao patrão”. Era um sábado, o porre foi daqueles, monumentais, a ressaca durou até a serem despedidos, na segunda-feira, por Woden Madruga. “Passada sua ira, voltamos ao trabalho, uma semana depois”, recordaria Luís Carlos, anos depois com Berilo já morto.
Dos que foram e ficaram, Homero Homem e Moacy Cirne. Dos que nunca desejaram partir, Luís da Câmara Cascudo, provinciano incurável, maior-de-todos, como um dos dedos da mão que acena saudades.

AVE DE ARRIBAÇÃO
Todas essas lembranças, espanar da poeira passada, não tem a intenção do desânimo à nova ave de arribação, asa emigrante em fuga pelos ares. Como já diagnosticava João Batista de Morais Neto em Temporada de Ingênios e outros, de 2006, o “que faz o moço do interior, de dentro da caatinga, bendizer o sol e, ao vislumbrar a rala vegetação em volta, imaginar e viver os lugares grandes e populosos, lugares diferentes que estão além de sua morada” é o desejo, ânsia cosmopolita de partir, como por sua vez cantava Ferreira Itajubá cem anos atrás, “em busca do calor do sol de um clima alheio”. Ou Othoniel Menezes, fazendo da Jamaica sua Pasárgada, para onde parte num “pau-de-arara analfabeto”. Tudo que vai, volta, resume Morais Neto: “ele ganha chão, ganha pão entra e sai, pergunta, responde, circula e volta para o seu lugar seco de pedra. É o círculo, natural. Ciclo cósmico e telúrico.”

Nem adianta desejar a Rodrigo Levino a benção do anjo torto drummondiano ou do louco torquatonetiano. Gauche ele já é. Gauche ele não é. As ilusões, provavelmente, não se perderam simplesmente por nunca terem existido. Levino é de uma geração além de Drummond e de Torquato Neto, ledora dos dois. Não cabe, tampouco, o recado piegas, lacrimogêneo, do filme Cinema Paradiso – “Nunca volte, nunca volte”, como o corvo de Poe numa adaptação para os exilados.

Rodrigo Levino – é indiscutível – foi responsável por um dos acontecimentos marcantes do ano que passou: ao denunciar o patrocínio estadual a uma festa privada provou que o patinho feio do jornalismo e das administrações governamentais, a Cultura, pode e, muitas vezes deve ser analisada por um viés político. Daí que muita gente provavelmente deve respirar aliviada com sua partida, e, por motivos opostos, outros desejem seu breve regresso. Ou seja, tem lugar garantido, aqui e alhures.

Quanto a mim, só me resta desejar que seja feliz, lá ou cá, e que cumpra o preceito de Horácio: “Mudam de céu, não de alma, os que correm além do mar.”



PROSA
A geometria tem mistérios: o mundo é redondo mas seus habitantes são chatos.
Alex Nascimento
A última estação
VERSO
Que saudade, sem fim, de outras terras me veio!
Que ânsia de me esquecer por estranhos lugares!...
Ferreira Itajubá
“Ave de arribação”

Canto do Mangue



Desde o início do ano da graça de dois mil e oito escrevo uma coluna no jota agá primeira edição.

Como o jhfirstedition não tem publicação na rede mundial de computadores, publico, a partir d’hoje, aqui, algumas coisas publicadas ali – eu deveria dizer, atendendo a pedidos. Mas ninguém me pediu. Apenas algumas pessoas reclamaram, porque não tem no mundo virtual, porque não encontram na banca mais próxima de casa, porque não querem desembolsar setenta e cinco cents. Publico assim mesmo.

Canto do Mangue para lembrar as páginas de ontem, embrulho do peixe de hoje.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Amy y los huaraches

Vi pela primeira vez Amy Winehouse. Quero dizer, assisti, for the first time, um vídeo seu. Me chamou atenção as pernas finas da moça, quero dizer, os gambitos da moça. Tão magra. Ainda mais metida numa sainha balão, o que deixava o par de gâmbias em pose explícita. Tinha um quê de Eros percorrendo aqueles ossinhos caminhantes, escalando os vinte metros esquálidos e se metendo no ar mais rarefeito que imagino ser o interior da saia-balão. Mais acima, os braços ondeavam, flanando um milhão de tatoos, pra lá, e pra cá – como na musiquinha infantil. Mais ainda pra cima – estamos já nas nuvens – uma boca indecisa em ser carnuda ou apenas bocão; olhos negros cruéis tentadores; cílios postiços que bailavam ao som de um jazz quase samba quase bluegrass quase cool quase guantanamera quase swingin’ london. Depois, uma cabeleira mais alta que um bolo de noiva, mais negra que uma cumulus nimbus escondida no quarto do casal.


Não a ouvi chorar o marido encarcerado, como nas notícias jornaleiras.


A câmera se deteve em seus dedos enrolando as pontas da cabeleira negra. Os fios tensionados. Se moveu um pouco para a esquerda, encontrou o volume macio de um seio, brincando de esconder no decote geométrico.


As batatas das pernas são dois musclinhos chochos. Tem uma energia enorme acumulada ali, potência nuclear. Amy Winehouse é o Papa-léguas em letargia alcoólica. Não vai dali praqui em cima do palco.


Não a vi chorar e desfazer a maquiagem, como nas fotos paparazzi.


Eu estava no café, em Spring Street. Ouvi quando perguntou ao moço:


– deseja alguma coisa?


Ele pediu café com creme. Não levantou os olhos, nem eu os meus. Eu estava lendo um livro de John Fante, eu tinha vinte e uma merreca de um ano incompleto no qual eu aprendia a beber e a fazer sexo com meninas virgens. Depois, eu soube do entrevero entre os dois: que ele não gostou do café – sabia a cinzas e trapos fervidos. Que a raiva o fez observar de longe a maciez firme dos ombros, o leve traço de músculo nos braços, a espessura dos cabelos negros e luzidios, o brilho dos dentes, o nariz maia, o batom vermelho, os olhos oblíquos, os seios firmes, o caminhar dançante.


Então ele notou, o que ninguém mais viu, os velhos do Café em Spring Street bebendo cerveja e passando o dia, o que eu também vi:


Os huaraches.


Alguns dias depois ele voltou. Ela escarneceu dele. Depois, pediu desculpas. Fizeram as pazes. Ela pediu que ele voltasse, à noite. Ele não resistiu, e disse, saboreando o frescor do prato frio:


– esses huaraches você tem de usá-los, Camilla? Tem de enfatizar o fato de que sempre foi e sempre será uma latina suja e sebenta?


No palco, Amy Winehouse lembrou a cena, os olhos soltos entre a platéia. E correu para o bar, gemendo:


– oh, oh, oh.

















quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Fidel



[Poema visual do livro No aver paura, Lulù, de P J Gutiérrez, Edizioni Estemporanee, Roma: 2006]



Mamãe eu quero ir pra Cuba, mas perdi o timing.

E eu já sabia que isso ia acontecer, eu esperava por isso feito um tolo kamikaze da desesperança.

Sem o comandante-em-chefe, Cuba vai perder aquela aura de museu vivo, suspenso no tempo. Aquela decadência, malemolência de carrões antigos em meio a prédios em ruínas e mulatas de coxas fartas e vestidinho de algodão barato.

Mamãe, o que eu não daria para encoxar uma mulata no pé do tanque de lavar!

De fumar charutos e cuspir no chão.

De ouvir jazz entre negros e entre negros de óculos escuros como os óculos de Cartola.

Mamãe, Cuba era uma Lapa agigantada, uma Ribeira hiperbólica, uma Olinda esfuziante.

E agora? Que será de nós?

Michael Moore já foi lá.

Antonio Banderas e David Beckham já preparam seus passaportes, Cuba fica na metade da rota USA-Cidade dos Reis.

Ry Cooder está em prantos. Cry me a river, Ry!

E Pedro Juan Gutiérrez? Desconfio que a primeira de muitas brochadas de Dom Pedrão aconteceu por estes dias. Vejo-o no Malecón, as ondas em fúria lavando pedras e putas e varões com suas vergas doiradas. Vejo-o no Malecón, afagando os cabelos que não tem, o olho oblíquo desesperado.

As folhas de tabaco recém-consumidas, enroladas, gastas, apagadas, mortas, no canto de sua boca frankensteiniana. Uma puta aproxima-se. O travecão chega junto. Impossível dizer qual dos dois mais hermoso. Más hermoso. Dias atrás o traveco tinha ameaçado a puta com uma gilete enferrujada. Agora, unem-se em defesa de Dom Pedrito, querem afagá-lo, beijá-lo, chupá-lo, mimá-lo.

Necas.

Pedro Juan enluarado. Conversa com o fantasma de Rodrigo de Jerez, o espanhol que fumou o primeiro puro em Gibara, ali pelos idos de 1492. Quando o Mundo era realmente Novo e Christophorus Colonus fazia a corte à Isabel de Castela.

Taca uma punhalada nela, cara, Taca uma punhalada nela, cara – repete o capítulo homônimo, páginas 186-190 da tradução brasileira da trilogia suja ou do rei de havana, não lembro qual dos dois. Alguém há de estar lendo essas páginas, neste exato instante, alguém há de.

Pedro Juan despede-se de Rodrigo, de Jerez. Olha pro alto, como se a qualquer momento Fidel pudesse aparecer em um dos terraços abertos sobre a ilha no topo do mundo. E recitasse seus versos, os versos de Gutiérrez, lágrima no olho gasto, corazón denunciador:

Yo estoy construido con los colmillos

de la serpiente

y el aullido del lobo

y el brillo del pez

y la astucia del tigre

y la potencia del toro

Yo soy un relincho salvaje

de los dioses

y un corazón de cordero

de donde mana sangre roja y caliente

Yo soy ese hombre que atraviesa

la ciudad para mirarte a los ojos

y oler tu piel y respirar profundamente

y meterse dentro de ti

hasta tocar tus huesos

y decirte

esto es todo lo que puedo hacer

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Interlúdio


[Ulysse's Gaze, 1995]


Explicação desnecessária: meu pai morreu na quarta-feira de cinzas.

Não encontro outro modo para dizer o que não gostaria de dizer, ou o que nunca gostaria de dizer, embora impossível de nunca ser dito. Claro.

Escrevi as duas última cronaxias, na terça, e na quarta.

Não publiquei.

Me sinto em dívida comigo mesmo ou com os meus leitores? – Sim, eles existem, embora alguns façam questão de fingir que não me lêem. E eu, tô reclamando o quê, se às vezes finjo que eles não existem?

Enfim. Talvez seja eu mesmo, cobrando a mim mesmo uma crônica bonita sobre o meu pai. “Que é que cê quer?” – pergunto a mim mesmo. “Já escrevi, neste mesmo blog, e quando ele era vivo”. Não respondo. Não respondo a mim mesmo. Prefiro ignorar gente revoltada. Ih! Energia ruim, pédepatomangalô3x. Próxima vez que cruzar com esse cara, desvio da calçada, atravesso a rua, enviesado, nem olho pra trás – ou olho, com aquele ar espantado dos caretas diante dos loucos-varridos.

Eu, ou ele, sei lá eu – ou ele. Enfim, assumamos: eu, sem nada pra fazer neste sábado noite, night fever night fever, cantem comigo, já entrei e saí de uma infinidade de sítios, blóguis, portais. Tédio só. Ou Tóddyo – como dizia João Batista de Morais Neto, o Juan de la calle. De notícias nos sítios, blóguis, portais – o João da Rua entrou aí atrapalhando o tráfico – vi uma. Meia: Tropa de elite ganhou Berlim. Urso de ouro.

Ufa.

(Não, não é ufa de até quem enfim. Nem de ufanismo. É: que merda.)

Então: que merda.

Tropa de elite é um dos piores filmes que vi nos últimos anos.

A turma de Berlim deve estar numas de pior.

Conselho bom pros moços e moças e membros da giuria: vão ouvir Low. Ou Berlin.

Quanto mais, prefiro Theo Angelopoulos a Costa-Gravas. Agora, ainda mais.

Tropa de elite – bah!

Filminho pra passar na Globo, depois do Jornal da Noite, depois do Jô, depois do Sérgio Grossman. Na hora do Caldeirão do Hulk. Na hora do Xou da Xuxa. Ou do Show da Sasha. Só falta o diretor aparecer no Faustão. Vai ser a glória.

Neste momento eu deveria desovar uma crítica inteligentemente bem escrita, articulada, explicando meus porquês do filme ser uma merda.

Faz de conta que eu escrevi, que vocês leram, e entenderam, uma parte ficou contra, outra a favor. Então, a turma do contra pr’esse lado, a outra pro lado de lá. Vocês podem fazer um cabo-de-guerra. ou jogar Vai-Vem.






Manhã de sol com tódio.

[João da Rua. Temporada de ingênios. Natal: Nossa Editora/Timbredições. 1ª edição em junho de 1986. João Batista de Morais Neto. Temporada de ingênios e outros. Natal: Sebo Vermelho. 2ª edição, 2006.]

sábado, 16 de fevereiro de 2008

cronaxia de carnaval : quarta


Cinzas.










cronaxia de carnaval : superterça

ANTES DAS 06:30
Quebra da maldição dos antepassados:

Traga sua meia.

Variação:

Quebra da maldição dos ancestrais – trazer, qualquer modo, a meia, enrolada sobre si mesma, em nó górdio e espiritual.

Em casa normalmente ele é uma moça, diz o senhor de óculos e bigode branco – e continua, Mas, sob o efeito das drogas – micropausa pulsante – é um assassino em potencial.

A madrasta exibe um olho roxo, e, à sua esquerda, em primeiro plano, um retalho da carteira de trabalho do rapaz com um 3x4 onde não se enxerga qualquer traço do rosto maldito.

POR VOLTA DAS 08:00
Já comprou seu scái-vápi-master? Livre-se daqueles produtos químicos, que irritam a pele, irritam seus filhos e irritam sua mulher – livre-se de você mesmo! O scái-vápi-master usa água a 145 graus Celsius. Eu falei 145 graus Celsius.

POR VOLTA DO MEIO-DO-DIA
1ª parada cardíaca.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

remeço




e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem: não sou eu, claro, óbvio uivando pra lua – é um dos Brothers Fields Forever, Harold, Haroldo, apontando seu telescópio pra Galáxia, tempestade de estrelas e nebulosas.

Estive ausente, me ausentei.

Fui ali, na esquina, comprar cigarros, tomar uma laranjada, apanhar tomates.

Fui ali, no ângulo largo da noite, me despedir. Me perder. Me reencontrar.

Fui ali, os passos incertos, o corpo ébrio, a boca seca.

Fui ali.

Parece que voltei.

Ainda estou lá.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

cronaxia de carnaval : segunda

“Acho que nem os franceses entenderam esse filme.”

“Nunca mais vejo um filme francês.”

“Muito ruim, muito ruim, mesmo.”

[Público de A professora de piano, de Michael Haneke, austríaco, filmado em Viena, lançado em 2001, exibido sete anos depois, hoje, no Midway Mall, em Cidade dos Reis - lá pras tantas a protagonista diz algo assim: "O amor é feito de coisas banais"]

domingo, 3 de fevereiro de 2008

cronaxia de carnaval : domingo

Manhã #
Limpeza


Entre a manhã e a tarde #
Almoço

Tarde #
Nádegas

Entre a tarde e a noite #
Jantar

Noite #
Cinema

sábado, 2 de fevereiro de 2008

cronaxia de carnaval : sábado

Eu acordo estendido na cama, em diagonal, a voz da minha filha me pergunta, que horas você vai se levantar, papai, eu me levanto não sei que horas, mas não durou muito tempo entre a sua pergunta e o xixi no vaso, e a água no rosto, e o capuccino e a TV ligada nos desenhos animados, e as conversas, e as discussões, e a minha partida, fuga do caos, carnevale, rota do sol, oitenta quilômetros por hora, em meia hora desemboco na Afonso Pena, viro à esquerda na Mipibu, o Oceano me espera, não o Atlântico, transbordando sobre o trapézio de Atlas, mas a academia de ginástica, de pesos, de máquinas de esculpir músculos sob a pele em tensão permanente, confesso agora que me rendi ao culto ao semideus Saúde, só me falta parar de fumar, não, meu deus, salvai-me desta blasfêmia, tenho ainda tantos camelos a tragar, por enquanto séries de doze a cumprir, doze levantamentos de halteres dos menores mais um de lambuja que o professor me envia a título de bolacha Maria, puta que pariu, a bolacha Maria é indigesta e eu tenho dificuldade de me concentrar nos números e na contagem dos números, mas sou aplicado, meus bíceps incham, meus tríceps se enrijecem, a batata da perna resta ainda chocha, no final foram algumas máquinas a me controlar corpo e mente, uma moça, gerente de um restaurante das vizinhanças me admoesta, cuidado, ele, o professor, vai fazer sua cabeça, você não vai conseguir se livrar desses exercícios, vai enlouquecer feito ele, enquanto isso eu suo, nem em bicas, nem em cântaros, nem porra nenhuma, é só um suor e não me paga ao menos o pão, brioche aziaga que masco como folha de coca a me livrar do mal da altura, faço um alongamento fast de olho no relógio, entro no banho, lavo a cabeça com shampoo chic, sabonete fake chic, algo como flor de maçã e erva cidreira, me enxugo, me penteio, meto uma camisa vermelha e vou ao hospital, assunto do qual me abstenho de falar aqui por demais íntimo, saio uns quarenta, quarenta e cinco, cinqüenta minutos depois, almoço com minha mãe, panquecas, banana, rocambole de sobremesa, estou meio puto e sem vontade de falar, fumo um, dois cigarros, leio um, dois jornais, não tem pó de café na casa da minha mãe, então, nada de café, só sofá, TV Globo, soneca, até as quatro, dezesseis horas sem a.m., p.m., de novo hospital, meio lerdo, meio tonto, outros quarenta, cinqüenta minutos, vou ao cinema, shopping, hospital dos solitários, admirar a manada, sorte, tem o gângster em meia hora, compro pipocas, uma coca cola pequena, me empoleiro entre os solitários e os casais solitários, sou um espectador privilegiado na New Jersey de fim dos anos sessenta, setenta, ufa, mergulho em águas profundas, saio do cinema doido pra matar alguém, encarar alguém, topar uma briga com alguém, em vez, saio ao estacionamento, pego o maço de camels no interior do carro, reentro até a livraria, flano entre as prateleiras, entre piza e castro opto pelas mil e uma noites na busca do original, nada de farsa, tragédia, ainda passo nas americanas, estranhamente quero um Diego Nogueira, um samba, será influência do carnaval.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

biguebangue


[Manara, detalhe, trabalhado por midc]

Eu agora olho praquela região acima do peito, acima dos seios, acima do seu batimento cardíaco e onde seu respiro é mais suave. Parece uma planície imensa, lisa e aveludada, de uma cor que remete a campos férteis de trigo e a pomares de jambos. Eu agora deslizo meu olhar indiscreto e ingênuo para a vasta paisagem que descortino, como um menino na sombra de uma calçada vestida da fúcsia intensa das flores, na frescura da manhã, no arremedo da fome que acaricia minh’outra fome alimentada de incógnitas. Eu agora olho pros lábios frutificando versos, cintilando prosas, domesticando minhas oiças, bulindo a menina dos meus olhos, estrela que caiu sob o sol do meio-do-dia. Eu agora tento descobrir o que o vestido esconde. Eu sei o que o vestido esconde: sol varando nuvens, explosão, bigue bangue.