quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Mahatma e o elefante sem memória [100108]




“Natal é uma mocinha do interior – hipócrita, safada, e que se prostitui à noite, barato!”

Marcelo Gandhi não tem papas na língua, percebe-se logo, quase de cara ou em ao menos cinco minutos numa conversa onde não procura agradar nem tão pouco cuspir no prato em que comeu. Gandhi nasceu em Natal, foi pra Parnamirim bem cedo, filho de militar e professora. Se lhe perguntam onde quer gravar um depoimento em vídeo sobre sua carreira artística, responde quase de supetão: “Em Parnamirim, na praça, tomando sorvete”. Pra Marcelo Gandhi parece não existir muita diferença entre a arte que produz e seu maior prazer: “Tomar sorvete é a minha cara”, explica, repete. Não à toa pichou na parede do Salão Newton Navarro da Fundação Zé Augusto: “Sorvete é bom demais”. Pichou também: “Depois da era vitoriana, o grande elefante se desmaterializa-se, a gênese do conformismo em Natal”. A redundância do pronome “se”, faz questão de explicar, é proposital. Não a mim, mas aos visitantes da sua exposição Site specific – lugar específico: a explicação redundante é também pichação na parede.

Eu escrevi pichação? Pode ser, mas também grafite ou grafito – a segunda expressão já remetendo à arqueologia. Caverna. Cela de prisão. Galeria de Arte. Ante-sala e anti-sala de uma Fundação que parece em vias de extinção.

O lugar específico de Gandhi é romper com o banal e os lugares-comuns. A exposição provocou polêmica e mal-entendidos ainda antes da abertura, na semana que passou: um funcionário da Fundação, ao dar de cara com as pichações, desenhos, carimbos nas paredes do Salão Nobre, o retrato de Navarro num canto, pensou tratar-se de obras de vândalos.

Gandhi parece se equilibrar entre o incômodo pessoal de não ser compreendido e o incômodo que provoca nos outros, inclusive nos setores culturais. Quanto a isso, está bem contente com a exposição de despedida: há dez anos procura com sua arte discutir o espaço, discutir o padrão de beleza vigente, discutir o suporte tradicional da arte (incomoda-se particularmente com as molduras limitantes) e a rigidez das instituições.

Vai para São Paulo, diz, em busca da grana. Repete a palavra grana, uma, duas, dez vezes, como um disco de Zappa enganchado na faixa “We’re only in it for the Money”. Palmas para ele, que não tem medo de ser mal entendido, que não se enquadra na tradição – mais velha que a Serra do Cabugi – de um falso romantismo que prefere enquadrar arte e artista na velha tríade – marginal+pobre+louco. Lembra que passou a vida entre Parnamirim e Natal sentindo-se fora do prumo, fora do eixo, estranho no ninho. Até na UFRN, onde formou-se em Educação Artística. Em São Paulo sentiu-se em casa, percebeu que o que fazia não era estranho, e, melhor, que podia ser pago por isso. Encontrou a sua turma, o coletivo Ação Multiplicadora: sete paulistas, um cearense, um potiguar.

Cansou. “A política no estado ocupou tudo, caderno cultural é coluna social. Mas saio de Natal sem nenhuma raiva. Adoro isso aqui. Natal é belíssima mas vou buscar em São Paulo a tampa pra cobrir minha panela”.

Eu pergunto o porquê dos carimbos dos patos que repetem-se nas quatro paredes do salão, tão minúsculos e tão sonoros. Explica que vem de Björk, a cantora islandesa, que usou a ave numa logo e que ele adora. “É também um bicho que nós comemos, e quase ignoramos”. Se Marcel Duchamp pintou o famoso Nu descendo a escada, Gandhi substitui a figura feminina (que em Duchamp mal se percebe sexo e nudez) pela imagem do pato.

Alguém pode pensar que é ironia do artista com o público – quem é o pato que cai nessa que isso é arte? Alguém pode pensar que é uma homenagem a João Gilberto. Alguém pode pensar que é pelo jeito cadenciado, malemolente da ave, ainda mais ridícula ao descer eternamente degraus sem fim acreditando ser uma mulher, nua e bela. Alguém pode nem ter visto os patinhos, cruzado o hall de entrada e comentado com indignação: “Vândalos!”


Retrato do artista segundo outros
“Marcelo Gandhi foi o primeiro potiguar a ser selecionado pelo Itaú Rumos Visuais – isso, historicamente, foi muito importante, e também permitiu que ele tivesse acesso a um grande número de profissionais das artes, inclusive curadores. Ele está abrindo a casca do ovo agora, comete alguns excessos – e deve cometê-los – graças à própria juventude.” [Flávio Freitas]


“Ao transportar o cotidiano urbano para dentro de uma galeria, ainda mais numa instituição pública, Gandhi chocou as pessoas – e se há esse choque é simplesmente porque as pessoas não querem ver o próprio cotidiano. O que falta em Natal é repertório para absorver o que é produzido de boa qualidade aqui.” [Sayonara Pinheiro]


“A entrada de Marcelo Gandhi na cena cultural potiguar, no inicio dos anos 00, personifica, pra mim, a entrada em cena de uma nova geração nas artes visuais do estado, depois de uma década de 90 um tanto estagnada nesse setor, uma década sem uma renovação aparente de talentos e propostas artísticas.” [Afonso Martins]







PROSA
... se você está decidido a ser pintor, tem também de estar decidido a não ter medo de bancar o idiota.
Francis Bacon
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Que da furna se desgarre a argila, que o cutelo talhe a pedra
Que o fogo não vacile em vossa forja.
T. S. Eliot
“A rocha”

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