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quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Femme fatale [191108]



[Retrato de Jeanloup Sieff]

Zanzando na net, dou com os costados em Nico, nascida Christa Päfffgen, Colônia, Alemanha, 16 de outubro de 1938.


Foi uma de minhas paixões juvenis. E, como toda paixão juvenil, obviamente não correspondida. Independente da distância e da contemporaneidade.


Aliás, volto atrás: paixão amplamente correspondida, que paixão nem sempre pressupõe resposta. E Nico correspondia, creio eu, aos sonhos, desejos, devaneios, de um porrilhão de gente espalhada pelo mundo – a começar pela sua imagem, exótica, misteriosa, de uma beleza, pra dizer o mínimo, “diferente”.


A carreira de modelo foi o início, ainda na década de 50, posando para fotos de moda e para as capas de revistas européias – Jardin des Modes, Jours de France, Elle, Der Stern – e americanas – Esquire –, mais uma dúzia de capas de LPs (entre elas, “Moon beams”, do Bill Evans Trio).


Em 1959, Federico Fellini a encontra flanando por Roma e a convida para o mais-que-perfeito retrato da vida boêmia e bon-vivant de então, supra-sumo da decadência com muita elegância: “A doce vida”.


Papel secundário, mas, num mutirão de mulheres bonitas – que incluía Anouk Aimée, Anita Ekberg, Laura Betti, Yvonne Forneaux –, nenhum papel pode ser secundário.


Na edição brasileira do livro, seu nome está lá, como Nico Otzak, e sua personagem, sem nome, descrita apenas como “Garota sofisticada da Via Veneto”.


Todo mundo conhece a história de “A doce vida”. Se não conhece, deveria conhecer. A começar pela seqüência inicial, um helicóptero carregando uma estátua de Jesus Cristo e sobrevoando os telhados de Roma e do Vaticano, e, claro, a clássica cena da Fontana di Trevi, com Marcello Mastroianni e Anita Ekberg.


Mas, já que eu não estou aqui para trair Nico com Anita, vamos voltar ao que interessa: dos braços de Fellini, Nico cai nos braços de Andy Warhol e comparece, com caras, bocas e tudo mais de direito na composição do Velvet Underground, cult entre os cults, ao lado de Lou Reed e John Cale.


Isso, em New York City – mas antes a moça já percorria a Swingin’ London (onde se relacionou com Brian Jones, dos Stones, e Jimmy Page, então nos Yardbirds) e Paris (onde teve um filho com Alain Delon, e conheceu Bob Dylan, que lhe dedicou uma música no álbum “Blonde on blonde”).


Dona de uma voz grave, quase máscula, Nico cantava em inglês com um forte sotaque alemão. Depois do Velvet, gravou uma dezena de discos, onde abusava dos teclados, mas sempre de um modo experimental. Tenho um LP duplo pra lá de precioso: “Behind the iron curtain” (com uma abertura gutural de “All saints night from a polish motorway” de arrepiar, mais as versões de “The end”, do Doors, “Femme fatale”, do Velvet e a atemporal “My funny Valentine”).


Gravado ao vivo, o duplo vinil foi comprado pelo sobrescrito na Espanha, poucos meses antes de saber a notícia: passeando de bicicleta em Ibiza, onde morava, Nico morreu. Tão perto, tão longe.

Passaram vinte anos e eu continuo vivo.






Discover Nico!


PROSA
“As batidas do coração em nossos peitos – ardentes e ávidos de nudez – não sossegavam.”
Bataille
História do olho
VERSO
“Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida.”
Hilda Hilst
“Alcoólicas”

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Coisa feia é ser lobista [131108]





Ainda mais em causa própria.

Mas, não posso evitar – existem outras pessoas envolvidas etc. Explico melhor o mistério: daqui a mais ou menos uma semana, próxima quarta, o sobrescrito lança livro.

Ufa. Trinta e seis palavras e 218 caracteres incluindo espaços nos parágrafos acima, mais o título – e foi como parir uma montanha.

Mas é verdade: não sei o que me incomoda mais, se é ir à noite de autógrafos ou ter de fazer auto-propaganda neste espaço.

Mas tem a editora, a brava Flor do Sal, de Flávia Assaf e Adriano de Sousa, e, claro, tem as telas de Isaías Ribeiro, reproduzidas entre as páginas e que servirão para descansar os olhos do leitor no mar de letras.

O nome do livro? “Cartas náuticas”. Sobre o que é? Já tenho ensaiado na ponta da língua: “mini-romance epistolar, prosa poética, ficção etc. etc.”

Vou fazer um esforço enorme para não faltar – aliás, faltou aqui o onde e o quando: na Siciliano do Midway, 19 de novembro do ano da graça de 2008, a partir da décima-nona hora (uma hora depois do Ângelus, pois).

Como não vou ter tempo de convidar um por um, os muitos amigos espalhados por cá e lá que desejarem vir, sintam-se convidados, mas nem por isso obrigados a comprar o dito cujo. Os leitores deste jornal e coluna, idem. Como não é nenhum catatau, dá pra folhear antes e ter uma idéia rápida se o negócio vale a pena ou não. Não gostando, acenem, caso eu os veja, apontem pro relógio de pulso, fazendo o sinal de “depois, depois” e peguem o beco. Juro que vou entender, com tantos lançamentos às margens deste Ryo Grande. Aproveito pra pedir perdão às árvores abatidas pra publicar mais esse objeto, quase sempre atendendo o desejo ególatra do autor e quase nunca o do leitor.

Bom, e antes que vocês desistam de vez de ir, a última confissão: é claro, claro, que ficarei feliz quão pinto em beira de cerca se não faltar ninguém e o negócio vender mais que Paulo Coelho. Então, aproveitem pra levar aquela tia esclerosada prum passeio no shopping antes que dezembro superlote tudo.

E não se fala mais nisso.

sábado, 11 de outubro de 2008

Barriga, lipoaspiração e penas de aluguel [131008]


[Susan Shimeld]



Então, o sobrescrito, colunista de quinta coluna e categoria, cometeu a maior barriga da campanha do ano da graça de dois mil e oito.

Isso foi na semana passada. Uma semana passou. Alguém se lembra? Alguém esqueceu?

Vamos aos fatos: eu disse aqui, neste mesmo bat-canal, bat-espaço, bat-coluna-e-jornal que haveria segundo turno.

Não houve.

Notícia velha, de ontem, da semana passada.

Derna então, antecipando o próximo 2 de janeiro, vivemos no melhor dos mundos, numa Graceland, numa Wonderland, num comercial da Barbie – falta só a placa de boas-vindas na entrada da cidade, BR-101, próxima ao rabo do cometa-estrela e aos Três Reis Mágicos: “Welcome to the Barbie World”.

O lugar onde as meninas têm cabelo escovado e os meninos músculos bombados.

Onde quem ainda fuma usa piteiras.

Onde quem bebe obviamente não bebe cachaça.

Onde os dentes são mais brancos, os sotaques mais pronunciados, os saltos os mais altos, as unhas mais compridas, a moda mais fashion, os vinhos mais encorpados, os champanhes mais borbulhantes. Onde os táxis são Land Rover, os pulsos pulsam Rolex, os dedos alisam a tela de iphones, comprados em Miami ou Manhattan, como exige o kit-maracatu cantado por Eliana Lima.

Lembram de “O show de Truman” (direção de Peter Weir, 1998)? O sujeito descobre que vive num reality show, tudo fake: as pessoas com quem convive são atores e atrizes, a cidade é um imenso cenário, as câmeras sempre ligadas. Truman era interpretado por Jim Carrey, aquele que fez “O Máscara”.

Mas na Wonderland nativa o show não é bem um “Domingão do Faustão”, ou um “Sex and the city”, ou um “Gossip girl”: é reality show, mesmo, abaixo da cintura, linha do Equador, meio dos Trópicos, Câncer e Capricórnio. É show de quinta, camelódromo eletrônico, vale tudo, telecatch do dinheiro. Mucha lucha.

Aí o leitor que apostou, não a cabeça, mas cem mil dinheiros ou dúzias de scotches, dirá, não sem razão: “Mas que rapaz despeitado”.

Pode ser, pode ser.

Em verdade, em verdade, vos digo, trabalhei, como profissional, na campanha de Fátima (como já trabalhei, em outras primaveras, para Lavoisier Maia, José Agripino, Geraldo Melo, Ney Lopes, Fernando Bezerra e Wilma Maia, pra citar alguns dos nativos). Não nesta coluna, mas fora dela, enfatizo. A esse trabalho dá-se o nome de marketing, não jornalismo, claro.

Mas, como cidadão, votei em Fátima e contra Micarla. Porque não acredito na capacidade da nova administração em gerenciar uma cidade que caminha, aos tropeços, rumo ao caos. A isso dá-se o nome de opinião pessoal, não jornalismo, claro.

Afinal, por que não deveria assumir, se de opiniões pessoais e interesses idem valeu-se a imprensa potyguar nesses meses de campanha? Aliás, esse papo, coisa, já encheu o saco, muito aquém de Marrakesh ou Teerã. Quem ainda acredita na isenção da mídia que bote a viola no saco e o rabo entre as pernas. Ou vá aos arquivos dos jornais e blogs. Quem ainda acredita que a ideologia sozinha move montanhas é porque também se ilude com a falácia que o dito empresariado poderia cruzar seus braços armados diante de um embate onde seus interesses e razões de ser corriam riscos. Voltando à imprensa, ela é tão livre e soberana quanto o são a livre iniciativa capitalista.

Se Micarla ganhou, viva Micarla! No sentido que, até onde se sabe, não houve nada que ponha em dúvida os resultados das urnas eletrônicas. Nenhuma falcatrua punível por lei. Maioria é maioria – e, convenhamos, boa parte das vozes dissonantes que se elevaram aos céus, especialmente depois do fato consumado, não têm do que reclamar. Chegaram bem atrasadinhas diante do leite que se derramava a olhos vistos. Alguns acharam que o PT era uma vaca sagrada que não podia misturar-se ao trânsito caótico do vai-e-vem político. Outros (os bacuraus remanescentes) acharam que o aluizismo ou o que sobrou dele não poderia nem deveria se imiscuir nem com o wilmismo nem com o petismo. Por fim, idem, idem, para a velha-guarda e juventude guerreira.

Os melhores analistas do mercado midiático dizem que foi a rejeição popular ao acórdão quem derrotou Fátima e a intrépida trupe.

O sobrescrito não acha. Eleitor – especialmente aquele que engrossa a massa faminta e famélica de tudo, a começar pela falta de Educação – não perde tempo mandando recadinhos aos todo-poderosos. (Mais, digo mais, para corrigir o azimute dos pretensos analistas: poderosos e todo-poderosos e quase-poderosos estavam espalhadas de lá e de cá – ou alguém acredita que a dona de uma emissora de TV populista, um presidente de Assembléia, dois senadores democratas, três deputados federais e a turma do concreto armado não têm poder?)

Não, crianças, não vamos nós também pedir abrigo na Ilha da Fantasia: a massa votou em Micarla porque no fundo, no fundo, prefere comer seu mísero pão nas arquibancadas do circo.



PROSA
“As pessoas de uma massa ou seu conjunto têm uma inteligência menor que suas partes constituintes.”
Christopher Hitchens
Cartas a um jovem contestador
VERSO
“Ah, minha cidade verde
minha úmida cidade
constantemente batida de muitos ventos”

Ferreira Gullar
“Poema sujo”

Bom dia, prefeita [061008]


[Susan Shimeld]


Independente do resultado de ontem – o qual obviamente desconheço, escrevendo esta coluna de véspera, feito peru de Natal – alguém há de saudar uma das duas candidatas, hoje, ao raiar do sol primaveril, com a saudação típica dos otimistas madrugadores: Bom dia, prefeita!

Assim, no feminino.

Porque – ao menos que o mundo tenha tomado um rumo ainda mais vertiginoso do que realmente vem tomando – ou Micarla de Sousa venceu o escrutínio de ontem, ou foi Fátima Bezerra quem contrariou as pesquisas e os muezins midiáticos deste voraz Arraial de Palumbo, a grande maioria mui bem engajada em vender gato por lebre e no exercício diário de tapar o sol com a peneira.

Independente do exotismo da segunda possibilidade apontada, há uma certeza: os outros seis candidatos, todos varões, foram solenemente ignorados pela plebe, massa eleitoreira.

Há, ainda, uma terceira possibilidade em que o sobrescrito aposta – sem querer passar-me por pitonisa de beira de calçada de restaurante self-service: segundo turno, pois.

Contrariando o Sr. Edgar Allan Poe, que recomendava em um de seus contos nunca apostar a cabeça com o diabo, eu apostaria a minha com o tinhoso – pagando, quem sabe, com uma “barriga” – que a manchete deste e de outros jornais amanhecem o dia de hoje com ao menos duas palavras em comum: “segundo” e “turno”.

O que, decerto, não invalida o augúrio matutino: seja a Sra. Fátima Bezerra, seja a Sra. Micarla de Sousa, cada qual terá alguém para pronunciar as palavrinhas mágicas tão logo se ponham em pé depois da batalha dominical. Afinal, passaram pelo coador do primeiro turno, a possibilidade de vitória se aproxima e o séquito que as acompanha há de querer injetar-lhes doses de ânimo antecipando a próxima eleição.

Ou seja, Natal terá sua segunda prefeita mulher.

Se isso faz alguma diferença, não faço a menor idéia.

*

EM TEMPO

Vamos ao lugar-comum: provavelmente até os paralelepípedos do largo do Atheneu sabem que o sobrescrito participou – profissionalmente, como redator, não como jornalista – do marketing de Fátima. Como eu meti na frase anterior um “provavelmente” não custa pingar os is.

E lembrar-vos de Cláudio Abramo: “No jornalismo, o limite entre o profissional como cidadão e como trabalhador é o mesmo que existe em qualquer outra profissão. É preciso ter opinião para poder fazer opções e olhar o mundo da maneira que escolhemos. Se nos eximimos disso, perdemos o senso crítico para julgar qualquer outra coisa. O jornalista não tem ética própria. Isso é um mito. A ética do jornalista é a ética do cidadão. O que é ruim para o cidadão é ruim para o jornalista.”



PROSA
“Com o que acontece é nós exultante.”
Julio Cortázar
A volta ao dia...

VERSO
“Agora já sabemos que a única certeza se engendra
naquilo que nos ultrapassa.”
Lezama Lima
“A partir da poesia”

quinta-feira, 31 de julho de 2008

A.M./ P.M. [310708]





Ainda trago nas costas as cicatrizes/ das asas que me foram postas.// Não há invenção mais cruel que os altares. – Ada Lima, em seu blog ant’ontem, às 2h45. P.M.


Sebastião Vicente, desde Brasília, andou comparando Ada com Marize – Castro, claro. Acha que as estréias literárias das duas poetas – à distância de duas décadas – têm a marca do berço esplêndido: ambos os livros nasceram clássicos.


Além: que Marize, ao tirar a poeira da poesia potyguar, de certo modo abriu alas para Ada, liberando-a da faxina pesada – e que, na ausência de pó nas estantes, a novata possivelmente ecoa e reprocessa a pioneira.


Não sei. Sei não.


Que “Marrons crepons marfins” é ícone e totem desde o nascimento, é fato – ainda mais passados vinte anos.


Que “Menina gauche” é obra – literalmente prima – pronta, definitiva, acabada e sem necessidade de correções ou maturações, é inquestionável.


Mas é incerto comparar uma e outra – até porque Ada Lima ainda não cumpriu o tempo regulamentar para uma entronização mais apurada, coisa que o correr do tempo já permitiu à Marize.


Existe ainda, na minha pouco humilde opinião (me antecipo às hienas e aos barões assinalados), uma diferença básica entre as duas: enquanto a poesia de Marize parte das entranhas para brilhar e explodir fora do corpo do poema num diálogo intenso com seus próprios ícones e totens (toda uma mitologia, clássica e literária), Ada Lima encerra-se em si mesma e conversa – e discute, e questiona – sua própria intimidade.


A poesia de Castro diz muito de suas leituras. A de Lima não revela nada, além dela mesma – e, mesmo assim... Enquanto a primeira usa do mito e do enigma pra se desnudar, sem pudor, a segunda aparentemente se expõe numa poesia que mais esconde, sem esclarecer totalmente (ou clarear) o enigma e mistério. O universo de Marize é exterior, amplo, e costura séculos segundo o bordado dos seus interesses e paixões: da Grécia antiga ao número 22 do Hyde Park Gate, endereço de Virginia Woolf, quase tudo em Marize é geografia e paisagem revisitadas. O mundo de Ada é interior, quase uterino. E mínimo – mas de um minimalismo espantoso, sendo capaz de desenhar, em poucos versos, um inteiro romance: Apenas deságüe em mim/ e faça surgir/ um coração/ em meu ventre.


Quando surgiu, em meados dos anos 80, também Marize foi comparada à outra poeta – Ana Cristina César. Moacir Amâncio acrescentaria ainda outros dois nomes femininos à lista: Orides Fontela e Adélia Prado.


O próprio Sebastião sabe que a década era particularmente sensível a outros espíritos que o novo século prefere ignorar – “quando todos éramos dark”, acentua o jornalista e também poeta. Mas o período subseqüente à anistia política era também pop, solar e libertário – e permaneceu assim até quando a AIDS deixou de ser uma sombra distante para se tornar uma ameaça real.

Daí vieram outras décadas, a de 90 e esta que está por encerrar-se – e Ada Lima, tão próxima e tão longe do hoje, tão próxima e tão distante de Marize, de Zila, de Diva... ou de Auta, Palmyra, Nísia...


Ainda bem que Ada já sabe que todo altar é invenção. E crueldade.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

O poder dos sonhos [090708]












Na noite de um dia difícil eu fui dormir sem o peso que uma decisão difícil conseguiu tirar, aos trancos, das minhas costas, mas ainda com a dor que o esforço causou. Nos músculos, na alma.



Na manhã seguinte, num repente, eu me dei conta que havia sonhado com meu pai, com quem raramente sonho desde que ele morreu alguns meses atrás.



No sonho ele estava bem, e não havia sinal ou lembrança de que estivesse morto. Estava com todos nós, com sua mulher e filhos – mas já não vivia com nós. Continuava o mesmo velhinho simpático e tranqüilo dos últimos anos e tinha arrumado um trabalho à beira-mar. Estava feliz, embora com a o olhar melancólico das pessoas que pensam demais. De quem olha ao longe e vê o que normalmente não se consegue enxergar quando se olha muito de perto.




Nós estávamos todos contentes, porque ele estava entre nós. Acompanhei-o, ao seu novo trabalho: ele me contou do que fazia, de como passava os dias, tudo muito simples e tranqüilo, como um dia fresco de verão. Céu azul, nuvens brancas, sol cálido. Me contou das pessoas que o visitavam, alguns conhecidos, outros estrangeiros. Me surpreendeu que agora falasse outras línguas, ele, que improvisava todas as línguas do mundo, com ironia e prazer numa babel própria e ruidosa.



No sonho, fiquei observando ele encerrar mais um dia de trabalho, arrumar suas coisas e partir, numa estrada de barro e poeira encarnada. Estava muito mais forte e seguro.




Ao despertar, não me recordei de imediato do sonho. Foi preciso alguns minutos para que ele ocupasse novamente um lugar na minha imaginação – e revi, e senti, o que tinha sonhado.



E percebi que toda a dor e sofrimento que a sua ausência diária me provoca não é nada diante da certeza de que ele estará sempre comigo. Sendo quem sempre foi: o melhor amigo, o melhor companheiro, meu pai.



segunda-feira, 7 de julho de 2008

Baricco na Capela Sistina, escutando Tom Waits



Meu leitor e amigo, Capri, que não é o ilhéu nem o da calça, pediu em comentário de post abaixo a publicação da tradução que fiz de crônica de Alessandro Baricco em sua coluna no italiano La Stampa, meados da década que passou. Não estava nos planos, mas como Capri não pede, eu obedeço com fervor. Com vocês Alessandro Baricco:


"A Capela Sistina, antes de vê-la, você sente. Tipo confeito de hortelã: sente no nariz, e nas orelhas. Você chega através de um corredor que gira e sobe e desce, um corredor estreito e baixo, com as paredes cor de hospital. Todos em fila, arrastando os pés. Quase não existem janelas, o ar é pouco. Inexorável odor de humanidade, herança generosa de centenas de axilas e meias internacionais em peregrinação pia ou em vagabundagem culta. A Capela Sistina, antes de vê-la, você sente: odor de academia de ginástica, de sala de aula do ensino médio no sexto horário, de ônibus no verão. Não que alguém espere coros de querubins na entrada, mas precisam te meter numa espécie de sapateira em forma de corredor?

Quando o nariz se acostuma, explodem as orelhas. Você entra, por uma portinha de nada, e antes de ver qualquer coisa, ouve o rumor uniforme e contínuo de centenas de pessoas imprensadas e acotoveladas que berram baixinho. A acústica da Capela Sistina reconstitui um bíblico e febril estrondo. Estranha impressão. Não tenho grandes experiências no setor, mas você lembra logo de lugares como campos de concentração, ou estádios chilenos, esse tipo de coisa, onde uma fatia da humanidade prepara a ante-sala para qualquer odioso horror. Quando de repente se acendem lúgubres alto-falantes e uma voz grita “Atenção!”, aquilo que você espera é que depois diga “As mulheres à esquerda, os homens à direita”, uma coisa assim. Por sorte, mais moderadamente, pede para fazer silêncio e não tirar fotografias. O barulho diminui, provisoriamente, alguns decibéis. Dando cotoveladas, conquisto um metro quadrado ligeiramente livre. Já que diante daquela confusão é necessário fazer qualquer coisa, ponho os fones de ouvido e ligo o walkman. Baglioni. Não. Annie Lenox. Não. Paolo Conte. Não. Procuro Bruckner, o doce organista que escrevia música para Deus: esqueci de trazer. Resta apenas Tom Waits. Aumento o volume. Levanto os olhos.

Enxaguaram-na, a Capela Sistina. Devolveram-nos o tecnicolor. Tiraram algumas cuecas pudicas e cobriram algumas rachaduras. Parece nova em folha. Eu lembrava o Juízo Final sufocado por uma fuligem negra como o pulmão de um fumante. Dava pra ver pouca coisa, no meio daquele pretume, e talvez o fascínio estivesse exatamente nisso: agora é pleno de meio-tons que são uma maravilha, parece um pouco Laura Ashley, mas ao menos dá pra enxergar, e descobrir um monte de coisas – é como ir ao cinema e por os óculos. O pedaço que eu mais gostava era aquele mais ou menos na metade, onde os corpos salvos e renascidos sobem aos céus e aqueles condenados são empurrados pra baixo, e todos flutuam magicamente no ar exatamente como os astronautas da Nasa, quando nos faziam vê-los na tevê, naquelas naves sem força de gravidade. Tinha sempre um que fazia o palhaço e deixava cair o sanduíche, e o sanduíche flutuava até que alguém o pegava, e todos riam, e devia ser um modo de esquecer que eram como grãos de areia jogados, girando no infinito, solitários como vira-latas. Deve ser culpa de Tom Waits: você deveria pensar em outras coisas, ali, cara a cara com Michelangelo, e com o Juízo Final.

Abaixei Tom Waits, e pensei em outras coisas. Pensei o quão insuportavelmente magnífica é aquela Capela – pensando bem, e sem precisar desviar muito os olhos das cores pastéis. Um monumento obsessivo a um totêmico e ruinoso pesadelo: o pecado. Dali, ninguém sai inocente. Centenas de metros quadrados de imagens te massacram como irresistíveis comerciais empurrando, em promoção, a mais ridícula das mercadorias: o complexo de culpa. Desviando do Juízo Final você termina topando com Adão e Eva, a maçã, a serpente, o castigo. Procure abrigo mais pra lá e você cai no Dilúvio Universal, outro castigo, espetacular, uma limpeza étnica em grande estilo. Até mesmo aquele gesto maravilhoso, Deus e o homem, os dois dedos que apenas se tocam, ícone incomparável, impresso lá em cima, no teto, e para sempre nos olhos de quem o viu, até mesmo ele tem algo de inquietante, parece já um castigo, também, um castigo preventivo – existe algo naquele Deus que nos impede de vê-lo simplesmente bom e pai: tem alguma coisa de animal preparando o bote, traz em si uma inquietude que o perturba. Não é um Deus feliz, aquele.

É um processo terrível, pensando bem: você está ali com a cara pra cima, deixando-se enfeitiçar por toda aquela beleza, além do mais lavada com Omo, e, no entanto, sem se dar conta, um cantinho da sua alma está sendo marcado por uma camada invisível de senso de culpa, que se junta àquelas outras que te espalmaram durante os anos do que se convencionou chamar educação. Tudo para construir, milímetro por milímetro, a catástrofe de uma consciência perenemente em débito, e cronicamente culpada.

Talvez foi apenas porque não tinha sol, e através dos janelões entrava o cinza de um dia de merda. Talvez foi culpa de Tom Waits. De qualquer modo, fugi da Sistina com duas idéias bem simples na cabeça. Primeira: a próxima vez que eu for, vou às oito da manhã, porque aquela multidão é um horror. Segunda: a próxima vez que eu nascer, nasço ateu, e num país onde aqueles que crêem em Deus, crêem num Deus feliz. [Alessandro Baricco]


PROSA
“Qualquer sistema legal moderno teria processado Abraão por maus-tratos contra crianças.”
Richard Dawkins
Deus, um delírio
VERSO
“Eu fiz do Céu azul minha esperança
E dos astros dourados meu tesouro...”
Auta de Souza
“Celeste”

sexta-feira, 4 de julho de 2008

O primeiro cão [010708]



[Lord Byron, Mary Chaworth e Boatswain, pintados por Ford Madox Brown]




Perto daqui Estão depositados os despojos daquele Que possuía
Beleza sem Vaidade, Força sem Insolência, Coragem sem Ferocidade, E todas as
virtudes do Homem sem seus Vícios. Este elogio, que seria uma Adulação sem
sentido Se escrito fosse sobre Cinzas humanas, É somente um justo tributo à
Memória de BOATSWAIN, um CÃO Que nasceu em Newfoundland em maio de 1803, E
morreu em Newstead, em 18 de novembro de 1808.


Lord Byron


Me deram o primeiro cão quando eu já não precisava dele: a solidão daquele período vagamente obscuro entre a infância e a adolescência cedia espaço às primeiras certezas e afirmações – embora vagas – daquele outro período igualmente ambíguo entre a adolescência e a maturidade.

Daí que batizei-o (batizamos, eu e meu irmão) de Ozzy. Ozzy Osbourne, se é que vocês me entendem. Não? Ozzy (Osbourne) era o vocalista do Black Sabbath. “Paranoid”, “Vol. 4”, “Sabbath Bloody Sabbath”, sacam? Ainda não? Não importa, reza a lenda que Osbourne, na altura do palco feericamente iluminado, abocanhou um morcego com os dentes, em pleno vôo.

Ozzy (o cão) era um dobermann. Preto, raias marrons escuras em pontos estratégicos do seu corpo bem desenhado. Não era, absolutamente, um cão feroz. Brabo. Ou raivoso. Era o cão de um menino que deixava de ser menino – daí que os papéis se inverteram e era ele, o cão, o solitário a precisar de um amigo.

Mas como todo bom companheiro, nunca reclamou. Nunca encheu o saco, nunca latiu chamando atenção, nunca fez aquele cara de cãozinho triste e abandonado, nunca babou clamando carinho.

Foi o cão certo na hora errada. Para ele, para mim.

Quando precisou ser doado – mudança, casa, quintal, apartamento etc – eu lavei as mãos, vergonhosamente, nem ao menos fui despedir-me dele. Disseram que foi para uma fazenda, sítio, granja. Nunca me perguntei, nem a ninguém, se era bem alimentado, bem tratado, bem amado. Um dia, soube que tinha morrido. Dessa vez, nem a mim mesmo perguntei o que eu sentia.

Hoje, nessa manhã tão luminosa e pouco adapta a nostalgias, desejo que tenha ele, ali, em meio às árvores do campo, reencontrado o menino que não fui.


quarta-feira, 18 de junho de 2008

Francisco Ivan’s Day [180608]


[JJ fotografado por Man Ray]


[e invertido bestamente por midc]




O professor, doutor, Francisco Ivan, apeia de um automóvel imaginário, entra no saguão da Biblioteca Central da cinqüentenária Universidade Federal do Ryo Grande e fala com um, dois, que o saúdam.


A Biblioteca Central tem o nome de Zila Mamede – gostaria de dizer, encimando o frontispício, e que um belo busto da poeta coroa o ingresso. O nome, com certeza está lá, na fachada de linhas baixas e modernas do edifício, bem ao gosto (latino-) americano. Desconheço, invés, o busto.


Mas a noite não é da poeta paraibana afogada entre o Putigy e o Atlântico Sul. A noite é de James Joyce, o irlandês, o dublinense por excelência. O homem que escreveu o “Ulysses” e a ele associou seu nome, quase deixando o grego Homero nas sombras.


Desminto-me: a noite é de Francisco Ivan. Professor. Doutor. Poeta. E puxador do samba do irlandês maluco que é a obra máxima da literatura mundial.


Chico Ivan parece recém-egresso de uma sacristia. A camisa branca, lavada, engomada, não exibe um botão que não esteja dentro da casa correspondente. Na altura dos punhos. Vizinho ao colarinho.


É um tímido. Daqueles que, de tanto lutar com a timidez, parece manter vivo o jeito acanhado que finge ainda possuir.


Está muito cioso do papel que cumpre. De sacristão do papa da literatura acadêmica. Mas Joyce está morto, e Chico Ivan: bem vivo. Para a edição do Bloomsday 2008, foi convidado o poeta Décio Pignatari, uma espécie de bispo dos joyceanos, dos joyceófilos, dos quetais. Sua eminência concreta, o poeta, passou mal, os médicos desaconselharam a viagem ao Ryo Grande.


Chico Ivan viu-se obrigado a ocupar o posto de Pignatari na conferência. Nem por isso: enquanto a vice-reitora cumpre o papel que o cargo exige, Chico Ivan concentra-se. Percorre as palavras que daqui a pouco proferirá. Fecha os olhos, sonha com Joyce e com suas personagens. Espia, pela enésima vez, uma página de sua bíblia, a ponta do indicador relê o que lhe interessa, e retorna ao rosto, pensativo.


É quase uma pré-palestra silenciosa, plena de ritos d’alma.


Quando começa a falar, está de bom humor. Como um peixe dentro d’água. Sabe que metade da platéia, ao menos, é formada por discípulos de sua religião. Outra parte é constituída por pares que o respeitam. Quase, quase, incorpora o showman que de fato é.


Começa chutando a barraca do provincianismo, aquele, que o critica por celebrar autor estrangeiro. Chico Ivan tem sede do universal. Seu lugar é no vaticano e não na igrejinha paroquial. Embora saiba que, para fazer rir a platéia, deve abusar de expressões tipicamente nordestinas: a Igreja moderna é um “canjerê”; o barroco Bernini deveria descer dos céus e dar uma “pisa” naqueles que insistem em macular o Vaticano com telões de plasma e cadeiras de plástico; seria ótimo ler o “Ulysses” (e suas infinitas “putarias”) numa rede – mas, não dá, não dá. É uma enciclopédia que exige outras enciclopédias para a sua leitura, uma bíblia que pede missa em latim, turíbulo, incenso.


Sem traço de pudor ou sombra de vergonha, cita trechos originais do livro, o sotaque distante léguas de Dublin.


Sacro, dessacraliza a própria crença: quando agradece, agradece aos deuses, no plural.


Talvez seja um dos únicos conferencistas que ousa não citar Cascudo, no púlpito.


É então, no auditório-catedral, iluminados pela fluorescência das luzes, que percebemos: quando Chico Ivan fala de Joyce, está falando de si mesmo.


terça-feira, 17 de junho de 2008

A manhã desperta [120608]




Do janelão, assisto o dia se espreguiçar. Nuvens, muitas nuvens, mas nenhum sinal de chuva. Nem um tico de vento – também pudera: os prédios de concreto e pastilhas cerâmicas não balançam. E esses prédios e esse concreto e essas pastilhas estão cada vez mais monopolizando a paisagem.

Eu sei, porque a janela é o meu termômetro da construção civil. A cada semana perco um pouquinho mais do cinturão de morros verdejantes, que se estendia, lânguido, de uma ponta a outra a perder de vista. Um mastodonte estreitou meu ângulo de visão: é como se tivessem trocado, à minha revelia, meu televisor wide screen por um daqueles aparelhos minúsculos e portáteis (coincidentemente semelhante àquele que o porteiro do novo prédio usará em seu cubículo blindado).

Impressiona como um prédio em construção assemelha-se a um prédio em ruínas. Uma carcaça de tijolos vermelhos, ferro e concreto cinza – e um monte de buracos onde as janelas não chegaram. O que lhes empresta um ar de boca cariada. Ou banguela.

Penso em nós, humanos: a distância física entre um feto e um ancião é enorme, tão grande quanto a vida que será vivida e preenchida no percurso.

Já um prédio revela em seu nascimento a sua própria morte e ruína. Num futuro distante que inevitavelmente chegará o quanto antes.

Um prédio em construção é como um monstro revelado. Um vampiro no espelho. Uma velha senhora sem maquiagem e sem jóias (falo daquelas senhoras que não vivem sem uma e outras coisas). É como aquela mulher de Shangri-La, o lugar mítico do filme “Horizonte perdido”, que, por amor, deixa o seu Paraíso natal para aventurar-se no mundo moderno: nem bem se distanciam, o amante descobre que a jovem enamorada é na verdade uma velhinha decrépita e enrugada. Shangri-La a fazia moça, fresca e ardente.

Sem Shangri-La, a vida se apressa em decompor-se. As células degeneram, as rugas multiplicam-se, os músculos enfartam. As pastilhas começam a cair, a ferrugem começa a corroer o osso cinza do concreto.

Mas, não se preocupem, senhoras e senhores de meia-idade: os pássaros ainda cantam, aqui, ali, acolá, não em wide screen, mas em dolby surround. Cantam e festejam a manhã, que se levantou bem cedinho, bem contente e disposta a iluminar este canto do planeta, esquina do continente, trampolim da vitória.

Daqui a pouco chegarão os operários – mas aí o sol estará mais alto e o alborecer será apenas uma lembrança de sonho.

terça-feira, 3 de junho de 2008

A última loja de discos [280408]



“Prostituta não poderia se apaixonar – mas, as coisas raras eu levo pra casa.” – quem fala é Antônio Carlos, há uns 15 anos proprietário da Discomania, vizinhanças do Beco da Lama, downtown potyguar. As “coisas raras”, a que se refere, são discos, discos de vinil.

É a última loja de discos da cidade, e, paradoxalmente, conseguiu sobreviveu até mesmo à Velvet, que comercializava quase que exclusivamente CDs e tinha um público bem mais jovial e antenado com os últimos lançamentos. Antônio Carlos também os vende, os disquinhos pequenos, em embalagem acrílica. Embora, discretamente os desdenhe, sutilmente os despreze. O compact-disc não é um inimigo a ser combatido – são os long-plays que precisam ser defendidos.

Seu discurso a favor do vinil e da própria atividade tem um viés político, quase de guerrilha, permeando um raciocínio objetivo: “Nosso negócio tem duas características – uma, comercial; a segunda, de prestação de serviços. Resistir à ofensiva do mercado fonográfico que impôs o CD e resgatar a boa música são os nossos objetivos.”

E o que Antônio Carlos entende por boa música? Principalmente a discografia das décadas de 70 e 60, incluindo aí a MPB, embora os discos da época não alcancem boa cotação – “o que eleva o preço de um LP antigo é a tiragem original: como nos anos 70 e 80 as tiragens acompanhavam a demanda alta, é fácil encontrar a discografia dessa época em qualquer sebo”, explica.

Diante da pergunta qual o disco mais caro que tem na loja, se atrapalha um pouco, até confessar que o bolachão não está exatamente na loja, mas em casa – é quando faz o paralelo com as putas apaixonadas, que beijam na boca e tudo mais: teoricamente o disco está à venda, mas o mantém na segurança do lar, para não cair em tentação. Não cita nomes, talvez com medo que o sobrescrito lance mão de uma oferta, mas revela um que, nunca, jamais, em tempo algum, venderia: o primeiro de Frank Zappa. Em resumo, em casa guarda cerca de 2,5 mil discos, dos quais mais da metade – 1,5 mil – é “inegociável”.

Desconversa, desconversa, e mostra alguns, disponíveis ao escambo por reais: o único disco da banda pernambucana Ave Sangria (R$ 100) e o “Sertania”, de Ernst Widmer e Elomar (R$ 150). Já passaram pelas suas mãos o primeiro de Roberto Carlos (R$ 2 mil), um Renato & seus Blue Caps (R$ 500) e o único LP do grupo carioca Módulo Mil (R$ 400). E, claro, o top dos tops das raridades: o “Paêbirú” de Lula Côrtes e Zé Ramalho – vendeu por R$ 600, ano passado, mas hoje é cotado em cerca de R$ 2 mil e há quem afirme ter sido vendido pelo dobro do preço. No Brasil ou no exterior.

Bruno, 17 anos, morador das Quintas, pega mais leve e é um exemplo mais próximo do dia-a-dia da Discomania: depois de horas fuçando nas prateleiras – o maior prazer para quem curte long-plays – leva pra casa o “Houses of the holy”, do Led Zeppelin. Por R$ 25. Diz que trocou um CD player por um toca-discos com um amigo. Tem MP3 mas segue, vez ou outra, comprando vinis – embora se considere, ele mesmo, uma rara exceção entre os amigos.

Antônio Carlos balança a cabeça: o dado contraria sua tese, a de que jovens como Bruno cada vez mais curtem as bolachas pretas, especialmente aquelas de grupos de rock progressivo e hard rock, de uma época em que não eram nem nascidos. Mas reconhece que há uma tendência geral à elitização e à maturidade, com significativa parte do público-consumidor formado por colecionadores.

As vendas também podem acompanhar a alta-estação, inclusive aquela tipicamente turística: “Há alguns anos, uma turma de japoneses fez um arrastão de [discos de] Bossa Nova na cidade: enchiam caixas e mais caixas, que eram despachadas de navio.”

Os altos e baixos do negócio não o desanimam – tem dois empregos públicos que garantem as vacas magras, e a Discomania, no final das contas, não lhe traz prejuízo, aliás, é um complemento na renda. Tampouco a internet o seduz. Chegou a vender alguns discos no mercado virtual, mas o que lhe interessa mesmo é a loja física, onde pode “bater papo, trocar idéias e negociar vinis”.

É realmente a última loja de discos em Natal, resquício indireto de uma época onde existiam lojas que vendiam unicamente discos. “Hoje você encontra uma seção de discos dentro de uma grande loja ou supermercado, mas não uma loja exclusiva.” É o próprio Antônio Carlos quem cita outros colecionadores, alguns que ainda vendem discos, mais nenhum com negócio físico: César “Pace”, “Black” Moraes, Régis “Hendrix”, Nilson “Eloy”. Os apelidos dispensam explicação. E Tony “Zappa”, adivinhem quem é? O próprio Antônio Carlos – que não vê a hora de aposentar-se para dedicar-se em tempo integral à loja.

Ivete, a esposa e sócia, diariamente na loja, ao ouvir – talvez pela centésima vez – o projeto, levanta uma sobrancelha, baixa os olhos, em silêncio. Uma sombra de dúvida parece passar pela sua cabeça.

Mas logo se vai. Já entendeu que o que move o marido não é apenas um negócio: é antes de tudo uma paixão.


PROSA
“Este não é um emprego para os selvagemente ambiciosos.”
Nick Hornby
Alta fidelidade
VERSO
“Apaches, punks, existencialistas, hippies, beatniks de todos os tempos
Uni-vos!”
Caetano Veloso
“Ele me deu um beijo na boca”

sexta-feira, 30 de maio de 2008

O homem chora [280508]

[Foto de Man Ray, claro]


Graças aos meus pais, que nunca me admoestaram o dito “Homem que é homem não chora”, me senti, se não induzido, ao menos liberado para o pranto sem culpas.

E tome choro. Ora, feito qualquer bípede pós-Cró-Magnon, já nasci aos berros, e a porrada do pediatra foi a primeira que a vida me aplicaria, primeiro nas nádegas, depois na cara, no peito, no fígado – que a rapadura pode ser doce, crianças, mas igualmente quebra os dentes, os mesmos com os quais construímos sorrisos, entre uma lágrima e outras.

Mas, fora aquele tirado a fórceps, o choro pode ser do tipo “romântico-emocional”, matéria que dizem ser da alçada das meninas, derna o tempo em que escondiam cartas de amor entre os seios em flor desabrochando.

Pois, confesso que chorei – e como chorei, à semelhança do canto de Cauby. Ainda lembro quando fui ao Rio Grande – o cinema fechado pra futura demolição – assistir “Uma janela para o céu”. O filme é de 1975, imagino que tenha passado por aqui no mesmo ano ou no seguinte: contava eu, então, com uma década de vida. A historinha, para quem não conhece ou não lembra, era uma mina de lágrimas: moça esportista dos chamados esportes de inverno sofre acidente em cima dos esquis e permanece paralítica do pescoço pra baixo. Mas o ápice, mesmo, de dar nó em pingo d’água e na garganta do caba mais macho do Alto Oeste, era a cena em que, no processo de reabilitação, a heroína mostrava ao namorado os lentos progressos dos seus nervos: com as mãos contraídas ela consegue extrair de uma tigela uma única batata-frita, espalhando as demais pelo chão. O rapaz, incorporando o supra-sumo da frieza masculina fica decepcionado e dá o pira, o fora, como se dizia uma época. A moça, claro, chora – e eu na platéia, claro, idem. Embora assustado com a idéia de que, no acender das luzes, os outros meninos me vissem a debulhar lágrimas, como uma mocinha.

Vem daí a expressão engolir o choro – tão indigesta quanto engolir sapos.

Pra completar, era um tempo em que o cinema não se obrigava ao inamovível “happy end” de hoje – e com as luzes prestes a iluminar a sala, o filme findava com a moça, na cabeceira de um campo de pouso, assistindo o avião com o novo namorado (que incorporava os machos sensíveis) despencar céu abaixo. [vendo o link acima me flagrei bolando as trocas: a tal cena, como a descrevi, não existe.]

Doutra feita, fui às Lojas Brasileiras, no tempo em que alguns ainda a chamavam de “Quatro e Quatrocentos”. Comprei com o dinheiro da mesada dois bichinhos de borracha: um burrinho cinzento e um diabinho vermelho – ligados a um tubo que insuflava ar em seu interior, eles saltavam pra lá e pra cá.

Nem bem cheguei em casa, meus irmãos, todos maiores que eu, tiraram um sarro pela segunda escolha: onde já se viu trazer o tinhoso pra dentro de um lar católico?

Com o rosto manchado em lágrimas de raiva incontida (desculpem o lugar-comum e piegas), escondi burro e diabo debaixo da cama. E prometi a mim mesmo que os protegeria de toda agressão humana e fraterna. Não do choro, mas do ranger de dentes.

Menina na praia [270508]

[foto de Joca]


“Ela tava chorando, daí eu peguei uma conchinha pra ela parar de chorar.” – E não é que “ela” parou mesmo de chorar, e toda contente veio me mostrar a concha, ainda fechada sob o calor do sol e a placidez do mar?

“Ela” é minha filha, sexto ano sobre a Terra. E quem me comunica a boa ação é Samantha, uns 11, ou 12 anos, imagino.

Samantha – quem eu nunca vi, que veio à praia com o pai, a mãe e uma bicicleta – tem o rosto de menina, o corpo de menina e as atitudes que as meninas de uma época tinham e nem sei se a maioria ainda preserva: aquela jeito calmo de quem deseja ter apenas a idade que realmente tem, e não a idade precoce que a mídia cheia de tchans e créus insiste em imiscuir na cabeça e no corpo das infantes.

Até no nome, Samantha foge do lugar comum – não lembro de nenhuma atriz ou candidata à, ou nenhum personagem de novela com este batismo, ao menos nos últimos anos. Mais me evoca “A feiticeira”, seriado anos 60 ou 70. Samantha, a feiticeira de nariz arrebitado, era casada com um publicitário americano e mãe de Tabatha.

Samantha, a menina na praia, também faz suas mágicas, mergulha e colhe estrelas, revelando os desenhos escondidos na circunferência de seus corpos: “Tem forma de flor”. E sorri, como se a frase fosse banal e não um exercício de poesia. E se deixa molhar os cabelos e escorrer o mar salgado em seu rostinho ainda infantil e inteligente.

Mergulha, colhe estrelas e conchas e adverte sobre alguns bichinhos do mar: “Não coloca na boca, não, que pode ser venenoso.” Imagino que não tenha irmãos menores, mas os deseje. Imagino que goste dos pequenos, por isso, pela solidão tranqüila em que vive, como filha única de um casal ainda jovem. Imagino que goste de ensinar aos menores o pouco que já aprendeu na sua curta e breve vida, de 11, 12 anos. Imagino que não seja uma daquelas meninas, particularmente ricas e cheias de vontades e brinquedos que não cabem mais nas estantes decoradas. Imagino que não tenha TV a cabo e, talvez, não estude em escola particular. Imagino que seja uma boa filha – e que seus pais sejam bons pais. Simplesmente.

Tudo, enfim, tão longe e tão perto do noticiário, com suas celebridades, seus escândalos, seus mistérios e segredos, suas negociatas interesseiras, seus anúncios de uma vida plena e satisfeita no novo condomínio de nome pomposo e quase sempre estrangeiro, de “localização privilegiada”, de “arquitetura diferenciada” e “acabamento de alto padrão” (e, tudo, ilustrado pela clássica foto do casal e um ou dois filhos, saboreando os momentos de lazer, na piscina vistosa, no “espaço fitness” e naquele “gourmet”, no “street ball” e no “kids club”, que nem imagino o que realmente possam ser).

Olho Samantha e seus pais afastando-se ao longe, na faixa larga de areia que a maré baixa deixou e o domingo de sol não conseguiu lotar: não acho que nenhuma agência de publicidade os contratasse para os anúncios de página inteira que prometem que “viver bem é uma arte”. Não, não. Não têm os estereótipos de quem vive “bem” ou que faça de sua vida o que se convencionou chamar “arte” – aqui, numa confusão de falsos entendimentos com “glamour”, “fashion” e outros termos da moda.

Não. É apenas um casal e sua filha, que vieram para praia, tomaram banho de sol e mar, e, ao final, pegaram a velha bicicleta e voltaram pro arroz e feijão também dominical. No meio tempo, a menina viu outra menina chorar, mergulhou, e, num passe de mágica afastou as lágrimas e iluminou o domingo. Simples assim.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Haja cultura pra cuspir na cultura [130508]


[detalhe distorcido de foto original de giovanni sérgio]


Fala-se muito na Capital do Ryo Grande. Um disse-me-disse dos demônios.

Às vezes acho que a imprensa só existe pra repercutir e ecoar essas fofocas – e se retroalimentar nelas, num processo autofágico onde nada se perde, tudo se recicla, de um extremo a outro do tubo digestivo.

A essa altura da coluna, terceiro parágrafo se iniciando, as almas sebosas e pias – e aquelas que comungam em ambos adjetivos – devem estar aguardando, ansiosas, que eu desça o cacete no Colunismo Social (Capitalize Each Word, que é de bom tom).

Não, neguinhos e neguinhas: vou descer o malho, mesmo, na Cultura, com cê maiúsculo, minúsculo, bold, itálico, o escambau.

Pense numa turma perigosa. Panelinhas, arrumadinhos, turminhas, qui-qui-quis, quó-quó-quós, blá-blá-blás. E tudo edulcorado com o supra-sumo da boçalidade literária. Escrevas errado e serás criticado. Escrevas certo e idem. A conjugação também se aplica para outras atividades [sic] culturais: pintar, atuar, cantar, filmar – e por aí vai.

Ouse criticar um deus, semideus ou entidade menor dita cultural, artística, intelectual, que verás o furdúncio e rebuliço que se propaga feito fogo em pasto seco, esturricado: as vacas sagradas põem-se a mugir e baloiçar os guizos e amolar os chifres pra dar uma carreira no profanador de templos. Ou, se reúne uma reca de marmanjos ou moçoilas pra aplicar uma lição, sova, castigo, no indigitado.

A turma só se entende com tapinhas nas costas e bater de vidros de geléia recheados da velha cerveja doirada, precinho camarada pra quem tem, via de regra, os bolsos vazios.

Lembra aquele papo do sujeito que gasta 200 pro outro não ganhar 20. Dizem que a frase é de Cassiano Arruda Câmara. Ligo pro jornalista: “Não fui o autor, mas o divulgador durante muito tempo, desde os anos 70. Provavelmente foi ouvida em Nova Cruz, coisas da sabedoria popular. Mas continua valendo”, encerra célere o colunista, comentando ainda que esta “minha área”, a Cultural, “é muito árida”, além de diluída no entretenimento e no lazer.

Pois, gosto muito da releitura poética da frase, feita por Adriano de Sousa em “O alvissareiro”: “uma aldeia onde gasta-se 200/ pro galado da oca ao lado não ganhar 20”. As cerejinhas são os termos “aldeia”, “oca”, e o fenomenal “galado” – expressão que é a cara da Província.

Como a Cultura Potyguar é terra desolada, desamparada, paupérrima, favelizada, sempre com o pires nas mãos mendicantes, falar de 200, 20 ou dois mil-réis é besteira: aqui, intelectual não gasta nada pro outro intelectual continuar na penúria. Não gasta porque não tem. Mas faz um estrago danado. Sobem nas tamancas, empinam-se no salto alto, alçam voz e verbo, dedo em riste.

Esporte de intelectual é puxar tapetes. Ou esteiras, ou capachos, ou panos de chão. De preferência, claro, com o inimigo em riba.

E como têm inimigos os intelectuais que sobrevivem às margens do Ryo Grande! Nas Academias, nas Sociedades, nas Associações, nas Fundações, nas Universidades, nos Grêmios, nas guildas, nas calçadas, nas mesas. Lembra aquele poema do Drummond, às avessas: “João odiava Teresa que odiava Raimundo/ que odiava Maria que odiava Joaquim que odiava Lili/ que não odiava ninguém.”

O poema chama-se “Quadrilha”. Pois, pois, de associações com intuito mafioso o Erre-Ene é pródigo.

Quanto à Lili, coitada, que no poema original casava-se com J. Pinto Fernandes, “que não tinha entrado na história”, ih! Esse é o pior de todos!

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Ela é carioca [050508]




Hoje bateu uma vontade de me jogar na arena.

E esperar a chegada soturna das hienas.

Então, vamo’nessa: Roberta Sá é carioca. Da gema do ovo.

Até que me provem o contrário.

Pois, até que me provem o contrário, a tentativa de conterraneizá-la é só um e não passa de mais um ataque histérico dos nativos do Ryo Grande, traumatizados ainda com o fato colonial (remonta aos idos de quatro séculos atrás) de que nem tão grande assim era o nosso ryo (embora tenhamos a maior das aldeias, derna de sempre, ou, a “Metrópole Indígena”, nas palavras articuladas de Polycarpo Feitosa, ou Antônio José de Melo e Souza, nosso último governante letrado).

E haja necessidade de auto-afirmação (ponto de exclamação ou reticências, à escolha do freguês).

E haja exibir nas fuças dos outros a certidão de nascimento de quem nos ufanamos.

Desejo bem ambíguo, aliás, para quem – e tomo emprestado de novo as letras cursivas do Dr. Antônio – “com uma excessiva desconfiança de si próprio, que parece ser também um dos elementos do seu caráter, o potiguar é propenso a considerar irresistivelmente o estrangeiro, o desconhecido, como superior, como capaz, e respeita-o pelo menos enquanto não convencer-se de que o tal estrangeiro é igual ou inferior a si mesmo”.

Talvez seja isso que tanto nos envaidece e nos anima como pintinhos na beira da cerca: Robertinha Sá une o útil ao agradável, Tomé com Bebé, é “de fora”, mas também “é daqui”. Um must, enfim, para a patuléia que se acha o ó do borogodó, o centro do mundo, as pregas que não cabem no meio, oco do mundo.

Uma maravilha, claro, os discos da moça, as músicas da moça, o suingue da moça. Menos por sua certidão de batismo e mais por ela mesma – embora muitos “críticos” às margens do Putigy adorem exercitar e ecoar o que “os outros”, no gramado alheio, dizem dela: porque “os daqui” tudo que fazem é citar que a menina foi citada pelos “outros”, sem nenhum juízo crítico e opinião pessoal.

E tomem repetir o que ouso questionar: Roberta Sá é de Natal – mas, Roberta Sá é mesmo de Natal?

Não acredito, crianças. A Roberta Sá de quem vocês tanto falam e hosanam nas alturas nasceu artisticamente na Guanabara, e cumpriu, meio ao acaso, sem intenção premeditada, mas por antecipação, o dito de Antonio Carlos Jobim para a macro-geografia nacional: a melhor saída para o músico brasileiro é o aeroporto.

Galeão, no Rio; Augusto Severo, na Província dos Reis.

Pois, esta semana Roberta Sá vem à Natal – dá uma de Bob Dylan e vem à Natal por 50 contos o ingresso individual. Quem tiver a carteirinha de estudante ou provar que é velhinho, paga a metade. Tal como Mr. Zimmerman em Sampa, o preço alto não deve assustar o público, entusiasmado em e por ser conterrâneo da moça: a Agenda Propaganda programou dois horários, às sete e às nove da noite da próxima quarta, 7 de maio. No Teatro Alberto Maranhão.
Quem não “qui$eR” ir ao show de Robertinha, pode ir ao Praia Shopping e assistir, de grátis, Dodora Cardoso e o show “Cofrinho de Amor” – oh-oh... sendo assim, datemi un martello por favor, como diria Rita Pavone: é melhor quebrar os cofrinhos pra inteirar os cincoenta mil réis!

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Caetano e as melancias [250408]



Incrível. No duplo sentido da palavra, enquanto substantivo e adjetivo, um pouco menos como interjeição, já que esta ganha normalmente ares de pura e simples exclamação quase abstrata, quase banal.

Incrível, por que inacreditável, por que fantástico, extraordinário, extravagante, ridículo: leio num portal de notícias uma pequena manchete acompanhada de foto e tudo – “Depois do jantar, Caetano passa no mercado”. Clico em cima, a foto se alarga, vê-se o entorno do músico, em primeiro plano um caixa vazio de supermercado, mais adiante uma gôndola baixa com frutas – laranjas, laranjas, maçãs, vermelhas e verdes, e outras que não identifico –, e por trás dela um Caetano alheio ao fotógrafo, digo, paparazzi, rosto tranqüilo, de flâneur urbano, de flâneur de supermercado. Falta só o vento, a praia, o calçadão para compor com seus versos: “Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento...” Invés, ou quase isso, a didascália informa: “Tranqüilo, Caetano caminha perto das melancias”.

Sim, pois, tinha me esquecido, por sobre a gôndola, quatro ou cinco fatias de suculenta melancia exibiam seu verde-vermelho – e pareciam emoldurar o passo, que imagino gingado e malandro, de Caetano.

Mas, voltemos a legenda, não sem antes rever a manchete – “Depois do jantar, Caetano passa no mercado”. Manchete. “Tranqüilo, Caetano caminha perto das melancias”. Legenda. Apesar de incrivelmente besta, a primeira é superada, em muito, pela segunda. Se não há notícia alguma no fato de um dos mais famosos músicos do Brazil jantar e depois ir ao supermercado (a menos que ele tenha matado Paula Lavigne durante a ceia), menos ainda há na sua passagem fugaz, ladeando exuberantes melancias, ou abóboras ou mexericas ou melões-de-são-caetano que sejam.

No entanto, está lá. Na página do UOL (slogan “o melhor conteúdo da internet”), sob a categoria “Celebridades”.

Ou seja, tudo aquilo que nos ensinaram no supermercado do saber que é a universidade (e na quitanda que é a faculdade de jornalismo), está furado, errado, torto e equivocado. Não é mais necessário que o carteiro morda o cão – tá de bom tamanho que entregue a correspondência, de preferência a uma celebridade qualquer da vez e da hora, do quarto de hora que são os famosos 15 minutos de Warhol. E ao cachorro nem precisa o esforço de ladrar ou morder: basta que submeta-se ao flash do fotógrafo, barriguinha pra cima no colo da dona ou do dono, que aproveita pra exibir o último sofá combinando com o quadro decorativo na parede nas páginas multicoloridas das revistas.

Mas, desculpem-me: não me sai da cabeça a legenda. Preciso repeti-la aqui, uma e mais outras vezes, para digeri-la melhor, para entender como caminha a humanidade. “Tranqüilo, Caetano caminha perto das melancias”.

“Tranqüilo, Caetano caminha perto das melancias”.

“Tranqüilo, Caetano caminha perto das melancias”.

Pronto, descobri! A humanidade caminha perto das melancias.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Andar com fé a pé [070308]



Há uns 15 anos não moro em Natal. Um terço fora, do Estado e do país, e o resto do tempo entre Nísia Floresta e Parnamirim.

Há uns três, quatro meses, passo boa parte da semana na capital, e, aqui, particularmente no bairro de Petrópolis.

Petrópolis é o bairro da minha infância – o que já significa muita coisa. Mas não apenas: aqui nasci, me criei e vivi até os 17 anos. Praticamente no mesmo endereço, uma ruazinha estreita entre a Mossoró e a Mipibu.

Até os quatro anos morei numa casa vizinha à casa da minha avó. Depois, numa casa em frente, projeto do arquiteto Ubirajara Galvão.

Nos meus sonhos mais importantes, aqueles que ao despertar reconheço importância simbólica, ainda que misteriosa, é lá que vivo uma outra vida onírica, no surrealismo típico dos sonhos.

Como todos da minha geração, não tive portas nem portões fechados, nem limites claros que não deveria ultrapassar.

Quando chovia, a ordem implícita era pegar a bicicleta e tomar banho de biqueira.

Em meados dos 70, veio a febrícula do skate, então apenas uma tábua adaptada às rodas dos patins. Numa cidade quase analfabeta do piche escuro do asfalto, a solução eram as calçadas largas do bairro.

Desde os 11 anos acostumei-me a andar a pé, da Ribeira a Petrópolis, de Petrópolis à Cidade Alta. Um labirinto facilmente desvelado em rotas invisíveis: Juvino Barreto, Potengi, Rodrigues Alves, Mipibu – a rota 1; Junqueira Aires, Rio Branco, João Pessoa, Deodoro, Açu, Rodrigues Alves, Mossoró – a rota 2. Os centros da vida eram a casa e o colégio. E, por extensão, o lazer da “cidade”, o centro comercial, shopping center da época, fechando o triângulo: lá estavam as butiques de surf, os cinemas, as casas de lanche, as lojas de discos, as livrarias.

Um quarto de século depois, quando reencontro Petrópolis, agora travestida de Quinta Avenida, vejo com prazer o que ainda resiste daquela época. Nem as mudanças radicais me desanimam, apesar de visível e agressivamente suplantarem a permanência do tempo.

E volto a caminhar a pé, a remontar os fios invisíveis daquelas rotas da infância, numa saudade revigorante.

Agora, me dizem que não é mais aconselhável o pedestrianismo, mesmo que no início da noite calma. As novas lojas há muito mantêm a chave na fechadura das portas envidraçadas. Os clientes do café na calçada foram assaltados. O dono da cigarreira pensa em fechar. A farmácia já fecha apenas a noite cai. Os outros pedestres quando cruzam por mim, trocamos olhares desconfiados. A família de minha cunhada foi assaltada, faca na garganta, na Potengi, próximo à Biblioteca Câmara Cascudo, sete da noite dominical.

As opções também não são das mais confiáveis: atenção ao se aproximar do veículo, olhar se alguém espreita, não acionar o controle automático senão quando já bem próximo, entrar rapidamente, travar portas e janelas, partir imediatamente.

Revejo e reviso o título dessa crônica, citação de um Gil que não acreditava nas “fáia” da fé. Não, crianças: a possibilidade de andar com segurança não deveria desaparecer assim tão naturalmente com o crescimento das cidades, como sina da qual não se possa escapar. Tampouco é questão de fé, religião ou esperança – é questão de cidadania. E vergonha.
Item ausente em governos e administrações omissas, coniventes, cúmplices mesmo, do crime que se organiza enquanto o caos se instala.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Arthur [140408]



Basta poucos minutos na companhia de Arthur Moreira Lima para espontaneamente chamá-lo de Arthur – embora o tratamento íntimo provoque em nós, paupérrimos mortais, um quê de constrangimento: afinal, o homem é uma lenda viva e um monstro sagrado e consagrado ao piano, num país de poucas lendas vivas e poucos monstros sagrados e consagrados, ainda mais num instrumento que, paradoxalmente, pode ser mais fácil carregar do que tocar. E, ao tocá-lo, soar mal que o contrário – o que faz lembrar a máxima de Oscar Wilde: “Por favor, não atirem no pianista. Ele está fazendo o melhor que pode.”

Arthur – com o perdão do Moreira e do Lima – faz o melhor que pode. Convidado por Diógenes da Cunha Lima, o pianista chega, acompanhado por Chico Cortez, num restaurante à beira-mar. Está em Natal para acertar detalhes e datas do seu projeto “Um piano pela estrada”, que tem, quase como um subtítulo, a explicação objetiva: “Um projeto de inclusão social e musical”.

Não é conversa fora. Arthur entendeu a exata e poética dimensão do que fazia, há alguns anos, quando – em pleno sertão mineiro, depois do concerto que normalmente realiza em cima de um caminhão Scania de 14 metros de comprimento – o prefeito de Januária lhe disse sobre o projeto: “Eu sabia que era importante, só não sabia que era bonito.”

Mas essa história ele conta depois. Antes, pra quebrar o gelo ele dispara: “Vim aqui anônimo, como olheiro do Fluminense.” E sorri. E quando sorri, se transforma. Tem um rosto marcado, um olhar triste e pensativo, e o corpo encurvado como se procurasse eternamente as teclas bicolores sob o nariz adunco.

Sua paixão declarada a três por quatro pelo Fluminense faz pensar que seria mais feliz se o teclado do piano fosse tricolor, como o seu time. Por isso fala sempre no Flu, por que, quando cita uma escalação famosa, ou quando cita outro torcedor apaixonado como ele, sorri. E quando sorri, o rosto continua marcado, o nariz continua adunco, mas rosto e nariz são um só riso e os olhos um par de brilhos.

Quando sorri, deixa de ser Arthur Moreira Lima, para ser, simplesmente, Arthur.

Um cara curioso, com um sotaque discretamente carioca, que puxa do bolso uma cadernetinha para anotar algo que seu interlocutor falou – e, adivinhem qual escudo se vê impresso em três cores no couro da agenda?

A mesa se anima. Se solta, relaxa: além dos já citados, estão ali o poeta Paulo de Tarso Correia de Melo e o cronista social Paulo Macedo, que chegou por último, e logo sacou do bolso, não uma caderneta tricolor, mas um poema contra Lula, supostamente de Affonso Romano de Sant’anna, diz. Arthur ouve, discreto: não se sabe se é contra ou a favor do poema contra. Macedo pede desculpas, não pode ficar para o almoço, a coluna deve sair no dia seguinte. Arthur pede água com gás e guaraná zero, o garçom oferece diet, ele dá de ombros. Diógenes conta eventos históricos, descreve como o primeiro prato consumido no Brasil recém-descoberto foi o próprio descobridor luso, assado. Surpreende-se com o conhecimento do pianista sobre História – ele explica seu interesse, que vem de família. A República, com erre maiúsculo, lhe é particularmente interessante. Em plena ditadura militar, Arthur um dia vai conversar com um militar: propõe um “mapeamento musical” do país. O oficial salta da cadeira: “Mapeamento é um termo de milico!” Arthur sorri, naquela ocasião sorriu, sorri agora, também. Foi aluno do Colégio Militar, no Rio, estudou piano na União Soviética, onde morou por oito anos. Diverte-se ao recordar um encontro de artistas em Brasília: Marco Maciel chega e interrompe as reivindicações ao puxar Arthur num canto para falar sobre o Fluminense.

Sorri quando fala da sua amizade com Millôr Fernandes, sorri quando cita, exaustivamente, histórias e frases de Don Rossé Cavaca, pseudônimo de José Martins de Araújo Júnior (1924-1965), jornalista, publicitário e humorista, autor de – olha só – “Um riso em decúbito”.

Todos gostam quando diz uma frase do Cavaca – tanto, que ele é obrigado a repetir e eu, a transcrever: “Já está na hora de a geração mais jovem aprender com a geração madura que pirâmide já foi bossa nova em matéria de sepultura.”

É a chave para entender o cara que se despede de nós quase tão íntimo e sem o glamour empoado das celebridades (ninguém pareceu reconhecê-lo no restaurante lotado). Por pouco não dou um tapinha nas costas ou encosto o punho fechado contra o ombro, esquecendo que é o mesmo Arthur – agora com o Moreira e o Lima – que já se apresentou com Filarmônicas e Sinfônicas de Leningrado, Moscou, Varsóvia, Berlim, Viena, Praga, Londres, Paris, sob a direção de nomes pra lá de esquisitos (pesco todos do seu sítio na internet): Kurt Sanderling, KiriIl Kondrashin, Mariss Jansons, Jesus Lopez-Cobos, Rudolf Barshai, Serge Baudo, Sir Charles Groves, Vladimir Fedosseyev.

Melhor apertar a mão e dar tchau.

E esperar que a governadora cumpra o prometido e o mais popular dos eruditos volte ao Ryo Grande. Quem sabe um vereador ache que ele está à altura de nossa Claudinha Leitte e faça-o cidadão natalense. O nosso Arthur.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Da inutilidade do primeiro dia útil [070408]


[Crepax]


As segundas-feiras são terríveis, já o sabiam Garfield e Bob Geldof. Ainda mais debaixo de chuva. E nós, debaixo do cobertor.

As goteiras se multiplicam nos ouvidos. São como nina-nana, acalanto, dose cavalar de preguiça na veia.

Com o que chamam “rabo-do-olho”, espiamos o tempo lá fora: bruto, bruto, bruto. Um cinza só. Nada de cores vibrantes, alegres, pueris. Nada de tons fashion que fazem a felicidade dos rapazes e moças das semanas da moda. Em Paris, Milano e na Capital do Ryo Grande.
Mas, o tempo não está para frescuras. Melhor: está. E debaixo do lençol fica bem melhor, agarrados ao travesseiro que restamos, os pés encolhidos, as mãos escondidas debaixo do peito, onde um coração pulsante se recusa à posição que nos fez famosos entre os primatas.

Eretos não ficaremos jamais, enquanto o sol não der as caras e afugentar cumulus, nimbus, cirros e stratus e outras palavrinhas difíceis que traduzem o lugar-comum das nuvenzinhas cor de chumbo.

É verdade que o frio provoca outros efeitos nos corpos ditos cavernosos – mas isso é outro papo e o horário é impróprio a menores.

E nem sempre acordamos acompanhados, enfatize-se. Quase sempre a cara-metade, contrariando nossas pulsões e instintos animalescos, já se levantou. Os pivetes (ou o pivete, ou a pirralha – marque a opção que melhor se enquadra à sua prole) têm de ir à escola. Para desasnarem e nos deixarem um pouquinho em paz. Sem escola, nenhum pai agüentaria muito os filhos. Mas este também é outro papo, e impróprio às cabeças bem pensantes e sentimentais, todas água-com-açúcar.

Então, voltemos ao leito, de onde nunca saímos e de onde só sairemos quando o tempo melhorar.

De preferência, na terça.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

O caçador da menina que roubava pipas do livreiro de Cabul [010408]


Parece que foi ontem, e foi ontem mesmo, eu contava a aventura de assistir, no escurinho do cinemão, a transposição para as telas de um best-seller: “O caçador de pipas”. Sala cheia, sentou-se ao meu lado a figura rechonchuda de um Botero tropical. Famélica ou gulosa, tinha lido, era o que parecia, o livro inspirador de cabo a rabo. E logo durante os minutos iniciais atendeu prontamente o celular...

A conversa durou todo o tempo dos títulos de abertura. Assim, fiquei sabendo de toda a sua agenda para a manhã seguinte.

Fiquei calado: eu estava ali não pra ver o filme, mas para uma interessante experiência sociológica, uma descida aos infernos dos ditos gostos populares.

Assim, que por obra e graça da minha vizinha soube exatamente onde o diretor (do filme) tinha deturpado o autor (do livro) – com a vantagem da descrição das cenas como deveriam realmente ter acontecido. Por exemplo, quando o bocó mete a barba postiça e vai em busca do sobrinho no Afeganistão, saibam vocês que assistiram o filme mas não leram o livro, que o automóvel que o conduz está e-r-r-a-d-o: era um jeep, senhor diretor! Lástima.

Resumo da ópera: se você leu o original, não vai gostar de “O caçador de pipas – o filme”. Se você não leu, esqueça.

O mais engraçado é que, filmado na China, a reconstituição de Cabul parece – ao menos para nós que nunca estivemos lá – das mais fidedignas. O filme se esmera, também, na língua falada: boa parte em dari, dialeto da maioria afegã. Ao contrário do cinemão, onde já nos habituamos até com astecas, incas e brasileiros falando inglês.

Mas tem algo errado no filme, que se arrasta como se tivesse paradoxalmente pressa em transpor cada capítulo literário – ou o resumo dele – para as telas, para evitar justamente comentários como os da gordinha ao meu lado.

Os efeitos especiais e sonoros – nas cenas onde as pipas ondeiam e volteiam nos céus “de Cabul” – também incomodam. Não combinam com a reconstrução de rostos supostamente afegãos e prédios idem. É como querer dar um toque “Matrix” a “Lawrence da Arábia”.

Pra comer com pipocão kingão saizão, enfim.