segunda-feira, 7 de julho de 2008

Baricco na Capela Sistina, escutando Tom Waits



Meu leitor e amigo, Capri, que não é o ilhéu nem o da calça, pediu em comentário de post abaixo a publicação da tradução que fiz de crônica de Alessandro Baricco em sua coluna no italiano La Stampa, meados da década que passou. Não estava nos planos, mas como Capri não pede, eu obedeço com fervor. Com vocês Alessandro Baricco:


"A Capela Sistina, antes de vê-la, você sente. Tipo confeito de hortelã: sente no nariz, e nas orelhas. Você chega através de um corredor que gira e sobe e desce, um corredor estreito e baixo, com as paredes cor de hospital. Todos em fila, arrastando os pés. Quase não existem janelas, o ar é pouco. Inexorável odor de humanidade, herança generosa de centenas de axilas e meias internacionais em peregrinação pia ou em vagabundagem culta. A Capela Sistina, antes de vê-la, você sente: odor de academia de ginástica, de sala de aula do ensino médio no sexto horário, de ônibus no verão. Não que alguém espere coros de querubins na entrada, mas precisam te meter numa espécie de sapateira em forma de corredor?

Quando o nariz se acostuma, explodem as orelhas. Você entra, por uma portinha de nada, e antes de ver qualquer coisa, ouve o rumor uniforme e contínuo de centenas de pessoas imprensadas e acotoveladas que berram baixinho. A acústica da Capela Sistina reconstitui um bíblico e febril estrondo. Estranha impressão. Não tenho grandes experiências no setor, mas você lembra logo de lugares como campos de concentração, ou estádios chilenos, esse tipo de coisa, onde uma fatia da humanidade prepara a ante-sala para qualquer odioso horror. Quando de repente se acendem lúgubres alto-falantes e uma voz grita “Atenção!”, aquilo que você espera é que depois diga “As mulheres à esquerda, os homens à direita”, uma coisa assim. Por sorte, mais moderadamente, pede para fazer silêncio e não tirar fotografias. O barulho diminui, provisoriamente, alguns decibéis. Dando cotoveladas, conquisto um metro quadrado ligeiramente livre. Já que diante daquela confusão é necessário fazer qualquer coisa, ponho os fones de ouvido e ligo o walkman. Baglioni. Não. Annie Lenox. Não. Paolo Conte. Não. Procuro Bruckner, o doce organista que escrevia música para Deus: esqueci de trazer. Resta apenas Tom Waits. Aumento o volume. Levanto os olhos.

Enxaguaram-na, a Capela Sistina. Devolveram-nos o tecnicolor. Tiraram algumas cuecas pudicas e cobriram algumas rachaduras. Parece nova em folha. Eu lembrava o Juízo Final sufocado por uma fuligem negra como o pulmão de um fumante. Dava pra ver pouca coisa, no meio daquele pretume, e talvez o fascínio estivesse exatamente nisso: agora é pleno de meio-tons que são uma maravilha, parece um pouco Laura Ashley, mas ao menos dá pra enxergar, e descobrir um monte de coisas – é como ir ao cinema e por os óculos. O pedaço que eu mais gostava era aquele mais ou menos na metade, onde os corpos salvos e renascidos sobem aos céus e aqueles condenados são empurrados pra baixo, e todos flutuam magicamente no ar exatamente como os astronautas da Nasa, quando nos faziam vê-los na tevê, naquelas naves sem força de gravidade. Tinha sempre um que fazia o palhaço e deixava cair o sanduíche, e o sanduíche flutuava até que alguém o pegava, e todos riam, e devia ser um modo de esquecer que eram como grãos de areia jogados, girando no infinito, solitários como vira-latas. Deve ser culpa de Tom Waits: você deveria pensar em outras coisas, ali, cara a cara com Michelangelo, e com o Juízo Final.

Abaixei Tom Waits, e pensei em outras coisas. Pensei o quão insuportavelmente magnífica é aquela Capela – pensando bem, e sem precisar desviar muito os olhos das cores pastéis. Um monumento obsessivo a um totêmico e ruinoso pesadelo: o pecado. Dali, ninguém sai inocente. Centenas de metros quadrados de imagens te massacram como irresistíveis comerciais empurrando, em promoção, a mais ridícula das mercadorias: o complexo de culpa. Desviando do Juízo Final você termina topando com Adão e Eva, a maçã, a serpente, o castigo. Procure abrigo mais pra lá e você cai no Dilúvio Universal, outro castigo, espetacular, uma limpeza étnica em grande estilo. Até mesmo aquele gesto maravilhoso, Deus e o homem, os dois dedos que apenas se tocam, ícone incomparável, impresso lá em cima, no teto, e para sempre nos olhos de quem o viu, até mesmo ele tem algo de inquietante, parece já um castigo, também, um castigo preventivo – existe algo naquele Deus que nos impede de vê-lo simplesmente bom e pai: tem alguma coisa de animal preparando o bote, traz em si uma inquietude que o perturba. Não é um Deus feliz, aquele.

É um processo terrível, pensando bem: você está ali com a cara pra cima, deixando-se enfeitiçar por toda aquela beleza, além do mais lavada com Omo, e, no entanto, sem se dar conta, um cantinho da sua alma está sendo marcado por uma camada invisível de senso de culpa, que se junta àquelas outras que te espalmaram durante os anos do que se convencionou chamar educação. Tudo para construir, milímetro por milímetro, a catástrofe de uma consciência perenemente em débito, e cronicamente culpada.

Talvez foi apenas porque não tinha sol, e através dos janelões entrava o cinza de um dia de merda. Talvez foi culpa de Tom Waits. De qualquer modo, fugi da Sistina com duas idéias bem simples na cabeça. Primeira: a próxima vez que eu for, vou às oito da manhã, porque aquela multidão é um horror. Segunda: a próxima vez que eu nascer, nasço ateu, e num país onde aqueles que crêem em Deus, crêem num Deus feliz. [Alessandro Baricco]


PROSA
“Qualquer sistema legal moderno teria processado Abraão por maus-tratos contra crianças.”
Richard Dawkins
Deus, um delírio
VERSO
“Eu fiz do Céu azul minha esperança
E dos astros dourados meu tesouro...”
Auta de Souza
“Celeste”

Um comentário:

Anônimo disse...

IOS NO TIENE FELICIDAD , LA ES.EL HOMBRE ES ACTO Y SEMEJANCIA DE DIOS . POR LO QUE POTENCIALMENTE TIENE EN SU ESTRUCTURA TODA LA ECENCIA DE DIOS .ES SOLO EVOLUCION APRENDIZAGE ,COMO LA MAGIA DEL MAGO LARRAIN .(JUEVES EN FM TIEMPO A LAS OCHO) EL ES PADRE TAMBIEN. Y PORQUE NO . SABES SI A ESO LE LLAMAN ATEO YO SOY ATEA