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terça-feira, 3 de novembro de 2009

domingo, 13 de setembro de 2009

tous les matins du monde










(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

[e. e. cummings traduzido por augusto de campos]




(i do not know what it is about you that closes
and opens; only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody, not even the rain, has such small hands


my girl's tall with hard long eyes
as she stands, with her long hard hands keeping
silence on her dress, good for sleeping
is her long hard body filled with surprise
like a white shocking wire, when she smiles
a hard long smile it sometimes makes
gaily go clean through me tickling aches,
and the weak noise of her eyes easily files
my impatience to an edge--my girl's tall
and taut, with thin legs just like a vine
that's spent all of its life on a garden-wall,
and is going to die. When we grimly go to bed
with these legs she begins to heave and twine
about me, and to kiss my face and head.

[e. e. cummings]



quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Mostre-me quem devo desejar




2. Para te mostrar onde está teu desejo, basta te proibi-lo um pouco (se é verdade que não existe desejo sem proibição). X... quer que eu esteja lá, ao seu lado, contanto que eu o deixe um pouco livre: maleável, me ausentando às vezes, mas ficando não longe; de um lado é preciso que eu esteja presente como proibição (sem o que não haveria bom desejo), mas é também preciso que eu me afaste no momento em que corresse o risco de atrapalhar o desejo formado: é preciso que eu seja a Mãe suficientemente boa (protetora e liberal), em volta da qual a criança brinca, enquanto ela cose calmamente. Essa seria a estrutura do casal "bem-sucedido"; um pouco de proibição, muito jogo; designar o desejo, e depois deixá-lo, como esses nativos amáveis, que mostram bem o caminho a você, sem no entanto se oferecerem para acompanhá-lo.

[Roland Barthes in Fragmentos de um discurso amoroso, tradução de Hortênsia dos Santos, Rio de Janeiro: F. Alves, 1990]




[espere carregar o vídeo para assistir de uma vez.]

[Buffalo 66, de Vincent Gallo, 1998]





terça-feira, 28 de julho de 2009

sábado, 11 de abril de 2009

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

segunda-feira, 28 de julho de 2008

De laranjas e morcegos [280708]


[Mel Ramos]


A culpa foi da Sukita.



E do gelo na Sukita.



Na pressa de não perder a última sessão legendada da noite, bebi rápido demais o refrigerante laranja. Umas seis pedras de gelo flutuavam no líquido cor-de-Fanta. Me lembrei das cenas finais de “Frankenstein” – o livro, não o filme. (Ah, o gelo se quebrando no pólo extremo da Terra, o monstro em fuga irada...)



Daí que fui assistir ao novo filme de Batman.



Daí que, bexiga cheia, fui assistir ao último filme de Batman.



Na verdade, a bexiga não estava tão cheia, digamos que na reserva. Mas, por esses mistérios abissais do corpo humano, a cada minuto que passava, a cada nova seqüência de músculos e testosterona na goela rouca do morcegão fantasiado, o tanque enchia-se de um líquido cor-de-Fanta-e-Sukita.



Que não era nem Fanta nem Sukita.



Entrar no cinema com uma reserva de mijo na bexiga é sacanagem. Uma maldade. Puro preconceito. Que nem entrar no cinema com aquela reserva de desconfiança – mau-humor com os elogios rasgados à atuação de Heath Ledger. O sobrescrito é avesso a muito confete e serpentina. Ainda mais que o elogiado já bateu as botas (aquelas de caubói de “Brokeback Mountain”) e daí entrou diretinho pro reino dos céus aqui na terra. Feito o corvo Brandon Lee. The Crow parte II, The Joker parte I.



Todo contido no filme de Ang Lee, Ledger solta a franga como o novo Coringa no novo filme do Batman. Metade do mérito é do maquiador, que deve ter visto alguma foto de Dercy Gonçalves na internet. Bateu a peruca de Javier Bardem. Superou também no quesito maldade.



A outra metade do mérito é a sacada de mastigar a saliva, como se quisesse molhar a cicatriz do seu riso literalmente rasgado. Como se saboreasse por antecipação o gostinho da Maldade. Com “M” maiúsculo.



Verdade seja dita: é uma interpretação de responsa. Tão boa que, metido no corpo nauseabundo do vilão, Ledger tinha mais é que morrer depois: não apenas parecia – era já um defunto vivo. O corpanzil (1,85 metro, me informa o Google), a cacunda, as roupas sujas e esfarrapadas, os cabelos ensebados – tudo que o ator incorporou pro seu personagem insinua que a qualquer momento um pedaço de dedo, braço, ombro, carne, pode se separar do corpo e ir ao chão. Assim: o retorno dos mortos-vivos num leprosário. Asilo Arkham.



Mas, voltemos pra poltrona onde me instalei e onde me mexi e remexi prum lado e pro outro, tentando esquecer que tinha bexiga – e que a danada não estava enchendo cada vez mais. Não por nada, pela caridade! O filme era bom, mas o ar condicionado, a Sukita, os cubinhos de gelo... Um aperreio.



Entre uma cruzada de pernas e outra, comecei a gostar mais de Harry Dent do que do Jokerman. E falo do personagem, não do ator (que atuou no interessante “Na companhia dos homens”, de Neil LaBute). O promotor público de Gotham City. Nosso De Sanctis. Nosso Jambo.



(Feito Macalé & Capinam, também eu nasci em Gotham City. Aos 15 anos. Caça às bruxas nos telhados, morcego na porta principal.)



Gostei mais de outras coisas, também:



– Da voz rouca do Senhor Wayne, quando travestido. Meio esquisita, verdade, mas.



– Da cara de doninha assustada da namorada do Batman. Meio feia, verdade, mas.



– Do bigodinho discreto de Gary Oldman, incorporando à perfeição o Comissário Gordon dos quadrinhos originais.



– Do meio-sorriso de Michael Caine, no auge da sua carreira, mais de cem filmes nas costas, incluindo “O cônsul honorário”, baseado em Graham Greene.



Não, não gostei de Morgan Freeman: assim, assado – Morgan Freeman demais.



(Gostei também do bizarro triângulo amoroso – e não falo de Batman-Rachel-Dent, mas de Batman-Coringa-Duas Caras.)



A verdade é que a gente vai ficando velho e vai perdendo ternura & empolgação: entra numa sala sem saber quase nada do que a maioria da plebe mais imberbe sabe – os bastidores das filmagens, antes mesmo das filmagens; os primeiros cinco minutos, antes mesmo da estréia; o nome do diretor (que eu não sabia e continuo não associando a nada e a ninguém); o nome dos atores (conheço só os com mais de trinta e dois dentes); até o nome do filme – vergonha – tive que perguntar pro fã de carteirinha Alex de Souza. Chama-se “O cavaleiro das trevas”.



(Devo ter a revista em algum lugar, bem guardadinha – mas isto aqui é outra coisa, crianças: é cinemão arrasa-quarteirão e Avid Dollars. É pipoca de ouro, diamante, platina, como uma tela de Salvador Dalí falsificada por Salvador Dalí.)



E não vai ser essa coluna que vai dizer ou desdizer se o filme é bom ou não é bom.



Daí que me resta esvaziar a bexiga nem bem o mais recente filme do Batman termina.



E, enquanto dava as clássicas balançadinhas, nem me lembrava mais como terminou.


quarta-feira, 14 de maio de 2008

Fliperama epiléptico [140508]




Assistir “Speed Racer” é jogar fliperama durante um ataque de epilepsia depois de engolir quaisquer pastilhas de efeito alucinógeno. Se a trilha tivesse uma cítara e ecos de “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” e “Their Satanic Majesties Request” (Beatles e Rolling Stones, respectivamente) ou pitadas da trilha do Pink Floyd para “La Vallée”, então, o negócio era psicodelia pura!

Mas assistir “Speed Racer” é sentir-se explicavelmente velho. E cansado. E sonolento. E acabrunhado. E deslocado. E inquieto. É se perguntar: “Que diabos eu vim fazer aqui?”

É tentar encontrar um roteiro como aqueles de antigamente, boy meets girl e pronto – foi o então jovem cineasta francês Leos Carax que assim definiu a súmula de todos os filmes: um rapaz encontra uma moça e lá se vai toda uma história.

Em “Speed Racer”, o menino encontra a menina, mas o mancebo está mais interessado em carros de corrida do que nas curvas de uma mulher. Tanto que o único beijo que rola nos 135 minutos de duração do épico feérico dos irmãos Wachowski é precedido do aviso irônico que a cena seguinte pode chocar o público, anestesiados quaisquer sentidos que não sejam a visão e a audição pelo borbulhar de luzes e o ronco dos motores – é como se aqueles minutos na parte final de “2001, uma odisséia no espaço”, de Kubrick, quando o astronauta viajante mergulha fundo no espaço, durasse todo o tempo do filme, que faz jus ao adjetivo “speed”.

É como estar numa discoteca sem As Frenéticas saracoteando as cadeiras e as cabeleiras black.

É como tomar um porre de pastilhas multicoloridas e encontrar-se, misteriosamente, num quarto de motel, em companhia de Ronaldo Nazário e três seres estranhos.

O filme se parece tanto com o desenho animado original que nos perguntamos pra quê gastar tanto dinheiro pra fazer algo em carne e osso e efeitos especiais se o resultado final é quase cópia c&c do desenho original – é como gastar mais dinheiro copiando uma bolsa Louis Vuitton do que os custos de produção do produto autêntico.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Eu vi Tropa de elite


Fui ver Tropa de elite.

Sessão promocional, R$ 7 inteira, R$ 3,5 meia.

O Cinemark botou pra trabalhar um casal de bilheteiros.

Não ligou nem o ar condicionado, coitados, um deles se abanava com um folheto de propaganda.

A fila se arrastava. Composta em sua maioria por jovens estudantes, todos de carteirinha na mão, só pioravam o tempo de espera.

Agora que eu vi o filme, entendo: estavam todos drogados, provavelmente emaconhados, playboyzinhos burgueses alimentando o tráfico à custa de seus vícios: marijuana e os blockbusters exibidos pela tal rede Cinemark.

Arrastavam seus tênis burgueses, suas sandálias havaianas burguesas, suas fardas de colegiais particulares, seus jeans de marca. Sem pressa, tá ligado?

Passei uns vinte minutos na fila.

Fui obrigado a ouvir as pérolas que os imberbes trajando farda de colégio religioso disparavam, às minhas costas, nas minhas oiças:

- Eu já tentei gostar de rock, mas. Presta atenção, presta atenção: todos caras que a gente conhece que ouve rock são todos abestalhados.

- Eu gosto de trilha sonora. Mas, pra ter – é meio ruim de ouvir, é pra ter...

Quantas crianças o morro não perdeu pro tráfico enquanto a estudantada burguesa desembolsava, preguiçosamente, três reais e cinqüenta pra assistir Tropa de elite, O homem que desafiou o cão, Jogos mortais I, II, III, IV e que tais?

Se eu já tivesse visto o filme, ah! Eu chamava na hora o capitão Nascimento. Pra dar um jeito na pivetada de bem e nos dois bilheteiros morosos. Depois, invadia aquelas salas privadas do Cinemark, onde o gerente sempre se esconde quando o cidadão tem algo a reclamar, a-ká-quarenta-e-sete numa mão, a outra fazendo aquele volteio no alto, sinal de circulando, que o Wagner Moura sabe fazer tão bem. O cabeção do gerente ia cair dentro dum saco de pipocas king size, com manteiga, sim, com manteiga! O cara ia sufocar até responder minhas perguntas:

- Por que não colocar mais gente pra trabalhar na bilheteria, especialmente em dia de promoção?

- Por que a pipoca custa tão caro?

- Por que não exibir ao menos numa das salas – uma! – um filmezinho melhor?

Tudo bem, tem Baixio das bestas...

Mas Baixio das besta eu já vi, caralho!

Porra!

Puta que pariu!

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

As bestas


Caio Blat encarna nós, moços e moças nas janelas indiscretas do mundo [foto do site do filme]

Os 9,5 leitores deste blog não devem confiar no subscrito para manter-se atualizados sobre qualquer assunto, aviso.

Quem avisa amigo é, diz o ditado. Eu, não.
Sexta passada, por exemplo, outubro já nos seus estertores, me obrigo a assistir ao Tropa de elite. Não vi nem em dvd pirata. Devo ser o último silvícola que ainda não fez contato com o tal capitão ou comandante Nascimento.

Imbuído deste sentimento de culpa cristã, vou procurar a programação dos únicos cinemas decentes de Cidade dos Reis – todos indecentes, diga-se de passagem.

Tropa de elite tem horários a dar com o rodo: a partir da décima terceira hora o telespectador é mais bem servido que muita linha de ônibus. Eu disse telespectador? É como se deve chamar os freqüentadores dos cinemãos pop corn.

Mas eis que um título, pura poesia, me chama atenção no meio das palomitas: Baixio das bestas. E me desvia da mira do tal Nascimento.

O que eu sabia de Baixio das bestas pra querer ver tanto esse filme?

Pouca coisa:

Que é da turma de Pernambuco, uma espécie de linha cruzada, no celulóide, com o mangue musical de Chico Ciência e companhia.

Que é da linha toda maldade será recompensada – estupros realísticos, prostituição infantil, bas-fond sem maquiagem nem efeitos especiais.

Que os críticos do Sul Maravilha caíram de cacete, no filme e em seu diretor, Cláudio Assis – apesar de prêmios importantes em Brasília etc.

Lembrei especialmente de um artigo da Piauí, naquela seção – “esquina” – onde são desovadas as matérias que eles julgam não merecer as dezenas de páginas que outras merecem e com as quais se traveste de new journalism e que tais.

Lembrei também que deveria me preparar pra ver o filme em meio ao barulho de sacos de pipoca e embalagens plásticas de bombons e ao ruge-ruge da plebe menos interessada que eu nas margens (intelectualóides) da vida.

Fui.

Primeira surpresa, o ingresso a tão somente quatro reais. Brasileiro adora se dar bem, eu inclusive.

Segunda surpresa, o gordinho meio bicha que sentou-se quase, eu falei quase, ao meu lado, e estreou a garganta profunda com um Posso começar a comer? Seguido do fru-fru dos plásticos.

Pois, o rapaz não deu um pio durante todo o filme, o que me desconcentrou um pouco, confesso.
No mais, Baixio das bestas ficou por ali, se equilibrando sem grandes emoções nem perigo algum de despencar prum lado ou outro do muro.

É tão bem feito em seu rudismo agreste, tão realista em suas paisagens canavieiras, tão íntimo o olhar com que veste e despe personagens, tão normais as fisionomias dos atores, noves fora o cabelo cenoura do Matheus Nartche... Nachtenga... bom, vocês sabem o nome – enfim, tudo desce redondo, feito propaganda de cerveja. Só que sem o glamour da propaganda de cerveja, se é que vocês me entendem.

Baixio das bestas me lembrou Ritual dos sádicos, 1970, José Mojica, Zé do Caixão, Joe Coffin. O despertar da besta era o título original, censurado durante décadas. Isso, essa lembrança, antes de sexta-feira. Depois, visto o filme, as semelhanças continuaram através das diferenças: enquanto Ritual é a caricatura de um grupo de pervertidos nos anos 70, em Sumpaulo, Baixio é o retrato de grupo de um grupo de jovens normais nos anos 90 ou 00, na Zona Canavieira, Nordestão brazuca. Um era cinema fantástico, o outro é quase cinedocumentário, realismo, neo-realismo, velho-realismo.

Não é o grande mérito do filme, como me questionou um amigo. Mas é inegável que o retrato de Claúdio Assis para os canaviais, as vilas interioranas, os postos de beira-de-estrada e seus habitantes é um retrato sem retoques. Sem aquela pátina verniz brilhante a que nos acostumou o padrão dito global.

(Parêntesis: o blogueiro lembra-se muito bem quando, décadas atrás, nas ladeiras de Olinda, o repórter da Globo preparava-se para entrar no ar e mandar via éter o mais que famoso carnaval pernambucano e a plebe começava a berrar: O Povo não é bobo, abaixo a Rede Globo! Fecha parêntesis.)

Talvez seja isso o que realmente incomoda a uma fatia dos críticos: o descompasso com a estética edulcorada da emissora do Coronel Marinho; a contramão com que rejeita, e foge até, da estética de um Cidade de Deus, pra citar outra exemplo da exceção que influencia, pós-sucesso, a regra.

A reconstituição da casa do personagem de Caio Blat é exemplar. E só plenamente reconhecível em seus mínimos detalhes por quem vive há tempos no Nordeste. Errado, ainda, classificar os garotos como “agro-boys”. Eles fazem parte, sim, de uma elite, mas sem a distância abismal que vemos no interior de São Paulo, e mesmo no Nordeste.

Também os atores e atrizes – embora alguns, vez em quando “globais” – não têm aquele sotaque ridículo de telenovela mal acochambrada. Os diálogos soam naturais, há um excesso, sim, de palavrões, mas nada que contrarie a realidade do cotidiano.

É preciso ser muito besta pra pensar que o retrato sem retoques de Baixio seja o único de uma região com mil e uma diferenças e outras tantas semelhanças. Mas é inegável que o foco escolhido – mais para satisfazer e em função da estória em si – é apurado e fiel àquela porção e realidade que aborda.

Alguém falou (Ricardo Calil, na Folha) que a estética de Baixio é “a estética do choque e o desejo de transgressão”. Que Assis é um “dos cineastas brasileiros especializados em personagens e situações sórdidas”, embora reconheça ser “o mais talentoso”.

Sinceramente, Baixio choca porque tem uma história chocante a contar. É sórdido porque é sórdida a vida, nos grotões ou nas metrópoles. E só é transgressivo para quem se acostumou tão somente aos adultérios e assassinatos das novelas das oito. Não é um grande filme enquanto Cinema. Não tem arroubos memoráveis, não desconstrói nenhuma linguagem cinematográfica, não ousa, a não ser no tema e no tratamento cru com o qual o aborda. Não acredito que tenha – apesar do início em tons de manifesto contra o ciclo, “civilização do etanol” – a pretensão de tratado sociológico, de denúncia, de auto de inquisição. Não tem o desejo explícito nem implícito de empurrar moral alguma na goela do espectador. Não é imoral, ilegal, nem engorda.

Os bestas | Piauí, RJ; Piauí, SP

Piauí: ambígua como o título, não consegue esconder a acidez com que investe contra os mitos de ontem pra chutar os vira-latas vivos de hoje. [foto do site da revistona]

Se não me entusiasmou, Baixio das bestas ao menos me serviu pra desenterrar um texto entravado na goela desde que li a Piauí número 8, maio de 2007, e que foi a gota d’água pra eu deixar de comprar a revistinha cu’l’t (não deixei de todo, nem esse foi o único motivo, mas, diminuí o ritmo).

A crônica (quase policial) da Piauí começa com ares de jornalismo-verdade:
“Na madrugada da última terça-feira do mês passado, Raquel Cristina, de 18 anos, foi morta a tiros quando voltava para casa com um amigo. Ela morava em Afogados da Ingazeira, no interior de Pernambuco. A polícia suspeitava de que a jovem tivesse sido assassinada pelo namorado ciumento, que matou também o amigo que a acompanhava. Pelas contas do Fórum de Mulheres de Pernambuco, Raquel foi a 96a mulher assassinada no Estado nos quatro primeiros meses de 2007. Como explicar que a violência contra mulheres bata recordes em Pernambuco? Como dar forma artística ao horror de sociedades patriarcais e machistas?”

Eu me apresso em retrucar: e que diacho Baixio tem a ver com isso? O articulista da Piauí apressa-se em responder: “Baixio das bestas lida com as duas questões. O filme, que se passa na Zona da Mata pernambucana, mostra o horror com agrado e crueza.”

Não me passou pela cabeça que o diretor pernambucano desejasse “lidar com as duas questões” – nem comentar a violência contra as mulheres, em PE ou alhures, nem tampouco enfatizar o machismo das sociedades patriarcais (tem um “nordestinas” enfaticamente implícito no termo adotado, como se a turma do café fosse mais civilizada). Tampouco vi agrado nenhum em sua representação do “horror”.

O preconceito da revista sul-maravilhosa contra os nordestinos é descarado. A começar do nome adotado, em tom pretensamente engraçadinho e inócuo. Depois de contar o enredo, o autor (anônimo) do artigo continua:
“O filme é tão repulsivo, tão estúpido, tão abjeto, que dá até vontade de interpelar quem o concebeu, o auteur pernambucano Cláudio Assis, diretor de Amarelo manga.”

Notem o uso irônico do francês, desejando um contraste gritante com a origem nordestina do diretor. Mais pra frente o texto ainda refere-se ao filme de Assis como “sua oeuvre”.

A revista, e seu representante, são desde o inicio mal-intencionados: “Marcou-se um almoço na Casa da Suíça, restaurante antigo e simpático no decadente bairro da Glória, no Rio.” Tipo: vamos levar o nordestino, “auteur”, ao Primeiro Mundo. Ora, sem essa aranha: os repórteres andam vendo muito filminhos tipo Pretty woman, e queriam, mesmo, dar uma lição nos paraíbas, levar a classe baixa ao paraíso para que se apercebam do devido lugar. Os adjetivos pululam, como sapinhos na lagoa, nem um deles à toa: “antigo”, “simpático”, “decadente”.

Texto original, sem subtítulos: “Assis chegou um pouco atrasado. Com 46 anos, vestia o uniforme dos adolescentes filhinhos-de-papai: jeans, camiseta estampada fora da calça e boné enterrado na testa. Demonstrou também os modos (estudadamente) mal-educados de um púbere mimado, pois almoçou sem tirar o boné e pontuou todas as frases com palavrões. Pediu um steak tartare, que nunca havia provado.”

Querem os subtítulos? “Nordestino mal-educado pobre desejoso de ser quem não é não apenas em relação à idade mas também à classe social comporta-se naturalmente mal cagando já na entrada enquanto dos pretos espera-se ao menos que aguardem a saída para justificar suas origens territoriais”.

Aliás, que merda é steak tartare? Eu nunca provei. Abaixo-assinado aí nos comentários pra quem também não provou.

Ah, mas a revista não dá ponto sem nó – a explicação do prato vem sutilmente no parágrafo seguinte, acompanhada da bandeira hasteada do preconceito:
“Como era de se prever (em se tratando de um pernambucano macho paca) adorou o prato de carne crua.”

A explicação, para os desvarios do ingnorante cineasta, é lógica – além de nordestino, tem idéias esquerdistas: “Como também era de se imaginar, Assis se disse um artista de esquerda. Na juventude, chegou a freqüentar uma organização comunista. ‘Saí do partido porque não queriam que eu fumasse maconha, bebesse e falasse palavrão’, afirmou. ‘Ora, eu sou um homem do povo, bebo e falo palavrões.’”

Destaco, ainda, outros fragmentos do texto do legítimo auteur piauiense dos baixios do Leblon e Gávea:
“Foi com amolação que ouviu o argumento de que Baixio das bestas se compraz em mostrar a nudez da garota Auxiliadora, interpretada pela atriz Mariah Teixeira (que é maior de idade, mas parece uma adolescente). O cineasta não se agüentou, e interrompeu: ‘Mas eu quis mostrar o que é a exploração!’ Mas, então, por que a câmera se deleita em exibi-la, durante um tempão, tomando banho de rio, só de calcinha? ‘Porque eu precisava mostrá-la no espaço dela’, respondeu. Ficou definitivamente agastado quando lhe foi dito que a cena é uma exploração, é manipulativa, baixa e resvala na pornografia de inspiração pedófila. ‘A pedofilia está em você’, atacou. Assim, não há debate intelectual que vá adiante. Briga de homem cheira a sangue.

Não, meninos, não. Haverá quem se excite com a adulta com ares púberes. Eu, inclusive. Não por parecer uma menina, mas por ser uma mulher nua, e a nudez é excitante, inútil dizer que não é. E não é a mesma editora Abril, que comercializa e distribui a Piauí, a redentora de centenas de mães brasileiras cujas filhinhas expõem suas vergonhas na cara de milhares de leitores e assinantes ao custo de dez, doze reais, preço de capa?

Mas a tal da cena, na opinião do subscrito, é totalmente inserida no roteiro: ela acontece quando a menina começa a despertar, ainda mais conscientemente, sua própria sexualidade, antes um mero objeto do prazer voyeurístico da macharia. E antecipa a ruptura que acontecerá na seqüência, quando ela se livra do avô sacana, pra cair na vida de puta de beira de estrada – uma independência obviamente discutível, mas natural. Ou alguém acredita que mulher bulida, em Nazaré das Farinhas, Sorocaba ou Copacabana pode ainda encontrar um príncipe encantado?

Ainda: debate intelectual? O dândi sulista, jornalista refinado, contra o brucutu pau-de-arara, caga-lona? (A propósito e em tempo: no sítio da Piauí a matéria vem assinada, ao contrário da edição impressa, por Mario Sergio Conti).

“O cineasta, que tomou duas taças de vinho, parecia feliz da vida com o que tinha a dizer, no filme e no almoço.” Opa. Recado a quem ouse denunciar os males do país: nada de vinho, nada de sorriso na cara, nada que contrarie o discurso engajado.

Piauí ainda tem tempo de denunciar o macho pernambucano, que teve a ousadia de vencer no estrangeiro conquistando prêmios para o tal Cinema Nacional (que recusa-se a sair do eixo Rio-Sp), acusando-o de refocilar-se (tragam-me o Houaiss, please) “no sadismo misógino”, sintonizado que está “com o imaginário perverso dos tempos que correm”.

E conclui, com a pretensa chave-de-ouro do jornalismo-verdade, este, sim, legitimamente engajée: “Pobre Raquel Cristina, que vivia na realidade.”

Raquel Cristina é a coitada lá de cima, que entrou no texto de gaiata, na tentativa nobre do articulista anônimo de mostrar a Cláudio Assis como se faz jornalismo-denúncia.

A propósito: o país já acabou com as saúvas?


Revista Piauí. Editora Alvinegra. Rua do Russel 270 4º andar Rio de Janeiro. Avenida 9 de julho 5966 cj 21 São Paulo. www.revistapiaui.com.br
Baixio das bestas. Filmado em Pernambuco.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O filho de Godard e Pasolini


Seria mais ou menos como o cruzamento genético de uma melancia com uma uva, mas o resultado foi excepcional: Bernardo Bertolucci, nesses dias e noites venezianas, afirmou ter ao menos dois “pais putativos” – Pier Paolo Pasolini e Jean-Luc Godard.

Bertolucci recebeu anteontem o Leone d’oro speciale da 75ª mostra internacional de cinema. “Melhor que receber o Leão pela carreira”, disse ao jornal italiano La Repubblica, insinuando que aquele outro Leão (concedido a Nikita Mikhálkov) poderia ser o atestado de uma aposentadoria da qual ele faz questão de manter-se ainda longe. As filmagens de seu novo filme começam tão logo sejam concluídos acordos de produção. O diretor da mostra, Marco Muelle, já avisou a Bertolucci do interesse de produtores chineses em financiar a obra, que deverá ter o título, talvez provisório, de Condizione umanà al 60%.

O diretor italiano é habitué da laguna – a primeira vez que participou do festival tinha apenas 21 anos e um só filme: La commare secca (1962). Quarenta e cinco anos depois, Veneza apresentou ao público duas obras suas, restauradas: o documentário La via del petrolio e o longa, de 70, Strategia del ragno (este, inspirado num conto de Borges).

“Estreei no cinema como assistente de direção de Accattone, o primeiro filme de Pasolini”, lembrou, recordando um dos “pais”.

Sobre Godard, rememorou um episódio, quando foi presidente do júri em Veneza 83: “No começo, um pouco embriagados, eu e os outros diretores do júri (Bob Rafelson, Agnes Varda) decidimos conferir-lhe sete prêmios... depois, aceitamos alguns conselhos mais racionais e lhe demos ‘apenas’ três ou quatro!”

O pai “verdadeiro” de Bertolucci também foi uma grande inspiração para o diretor: Attilio Bertolucci era poeta, professor de história da arte e crítico cinematográfico. A mãe, Ninetta Giovanardi, era professora de letras, filha de um italiano emigrado na Austrália por motivos políticos e de uma irlandesa.

Não deve ter sido um acaso que o cãozinho que o menino Bernardo teve na infância chamava-se Flush – homônimo do cão da poeta Elizabeth Barret Browning, retratado, biografado e ironizado por Virginia Woolf em Flush: memórias de um cão (1933). Este Flush original nasceu e viveu na Inglaterra, morou alguns meses em Pisa, e veio a falecer em Florença.

Já Bertolucci nasceu em Parma, e aos 11 anos muda-se com a família para Roma, quinto andar de um prédio na Via Giacinto Carini, número 45, Monteverde Vecchio, bairro de casas elegantes. No primeiro andar morava um rapaz um tanto esquisito, vestido às vezes como um proletário, como um “ragazzo di vita”: era Pier Paolo.

Morei próximo a Monteverde, em Via di Donna Olimpia, número 30, justamente nas “casas populares” onde Pasolini ambientou seus Meninos da vida (no Brasil publicado apenas pelo Círculo do Livro). As tais casas populares na verdade são conjuntos de prédios cedidos pelo governo italiano às famílias de baixa renda. Foram construídas durante o fascismo, e eram referidas ironicamente pelos próprios moradores como “arranha-céus”.

Bastava subir uma ladeira e sair do proletariado para o mundo pequeno burguês. Ou, para Pasolini, descer uma ladeira e sair do mundo pequeno burguês para o proletariado. Os contrastes, enfatize-se, não são nem eram os extremos brasileiros, entre alta favela e baixa elite branca, topologicamente às avessas.

A primeira vez que viu Pasolini, Bertolucci fechou-lhe a porta. “Numa tarde de domingo, às três, batem à porta, vou abrir e vejo um jovem vestido de azul, terno de festa e um grande tufo de cabelos negros. Me perguntou se podia ver meu pai. Eu pensei que fosse um ladrão. [...] Meu pai estava dormindo e eu deixei Pier Paolo fora de casa. Sem uma palavra. Evidentemente eu sentia qualquer coisa de muito forte nele, qualquer coisa excepcional.” [in Stefano Socci, Bernardo Bertolucci, Milano: Editrice Il Castoro, 1995]

Attilio Bertolucci ajudaria o poeta friulano a publicar Ragazzi di vita, seu primeiro romance.

O poeta friulano convidaria o jovem parmigiano a ser seu assistente no primeiro filme.

O produtor Tonino Cervi convidaria o primogênito de Attilio para dirigir a seqüência de Accattone, La commare secca.

“A minha maior preocupação era fazer um filme diferente de Accattone, que parecesse mais comigo. De conseguir que fossem meus, os rostos, as paisagens, e um dialeto que no princípio não eram.”

Com o filme de estréia, Bertolucci considera-se mais francês que italiano. Godard e Truffaut eram suas referências na época, justamente pelos questionamentos sobre o que era o processo de fazer filmes – “finalmente o cinema tinha chegado ao ponto de olhar-se no espelho”.

É de Bertolucci – junto com Dario Argento e Sergio Leone – o roteiro de Era uma vez no Oeste (68).

É de Bertolucci um dos grandes escândalos do cinema – O último tango em Paris – quase sempre infelizmente lembrado apenas pelo episódio da manteiga do que por uma infinidade de méritos outros, à escolha dos fãs e críticos. Eu citaria a música de Gato Barbieri, as imagens de Francis Bacon, o próprio apartamento onde se enclausuram Brando e Maria Schneider.

Tango foi censurado. Durante quase quinze anos foi proibida sua exibição em grande parte do mundo. Impossível não encontrar um paralelo com as infinitas perseguições à obra de um dos seus pais, Pasolini.

Na Espanha, as donas de casa cruzavam a fronteira do regime de Franco para assistir O último tango, esperando aprender alguma lição sexual.

Bertolucci volta à carga “escandalosa” com La luna (79), onde uma mãe americana tenta salvar o filho adolescente da droga, aceitando suas insinuações incestuosas. O roteiro tem a colaboração de Clare Peploe, então companheira do diretor. A mesma Peploe de Antonioni.

Se Michelangelo é sempre lembrado pelo seu discurso da incomunicabilidade, quase nunca comenta-se sobre o mesmo enfoque na obra de Bertolucci – talvez por ter uma temática mais ampla em sua também ampla filmografia. A impossibilidade das relações, presente nO último tango, permanece como pano de fundo de O céu que nos protege (ou O chá no deserto), inspirado no romance de Paul Bowles. É quase o mesmo casal, transferido da claustrofobia do apartamento parisiense para a claustrofobia do deserto marroquino. Dos anos setenta para os anos quarenta. Dos anos setenta para os anos noventa.

“Não é um filme sobre a impossibilidade do amor, mas sobre a impossibilidade de ser feliz no amor”, comentou. E:

“Os casais modernos são uma espécie em perigo. São tão constantemente atacados pelo mundo exterior que criam um tipo de fusão, uma simbiose. E tudo isso os leva logicamente a uma crise.”

Não posso falar sobre o último filme de Bertolucci, que não vi, mas sobre o último que vi: L’asssedio, quase dez anos atrás. Bertolucci retorna às relações tempestuosas entre um homem e uma mulher; e a Roma, uma Roma turística e ao mesmo tempo intimamente pessoal: os protagonistas, um músico inglês e uma estudante africana, convivem num apartamento vizinho às escadarias de Trinità dei Monti. Embora aparentemente “menor”, sem a grandiloqüência das paisagens as quais estávamos nos acostumando (O último imperador, O pequeno Buda), é um filme impressionante.

Toda a antipatia do inglês vai se diluindo pouco a pouco. E nós, que começamos odiando intensamente o personagem, terminamos por amá-lo. Intensamente.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

uma carta de 66 para 07, de Glauber para Jomard, do Rio para Recife (e um morto, de Portugal para o Brasil)

“o que vai por aí neste distante Pernambuco do Recife? como agüentas a província brutalizada, a lama do subdesenvolvimento, o feijão, o angu, as velhas lotações, as estradas sujas, as ruas esburacadas, as moças sonhadoramente ansiosas na longínqua maquillage, a brutalidade adolescente dos rapazes, os velhos latifundiários, o arrivismo, os jovens poetas sinceramente dispostos a tudo salvar?”

[Glauber Rocha. Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997]



Glauber, é claro, é Glauber Rocha. Jomard é Jomard Muniz de Brito – aquele mesmo para quem o baiano escreveu o prefácio de Do modernismo à bossa-nova, naquele distante meia-meia da missiva; aquele mesmo que um certo dia na Província dos Reis alcunhou-a (talvez com conseqüências funestas pra quem tomou ao pé da letra a licença poética) de “Londres Nordestina”.

O pernambucano, em entrevista a Carlos Adriano para a revista eletrônica Trópico, explicou a sua desconstrução geográfica, em prol de um Brasil não mais dividido entre Província e Metrópole: “João Pessoa de repente Rio de Janeiro. Olinda barbaramente Paulicéia. Natal absurdamente Londres desnorteada. Campina Grande desgovernada por Bráulio Tavares.”

Bela intenção, Jomard.

Mas, que a carta de Glauber preserva uma realidade imutável, não se pode contestar. Se fores nordestino da gema, experimentas colocar o nome do teu estado e da tua cidade no lugar do “Pernambuco do Recife”, e verás que cai como uma luva, mantendo a coerência do texto.

E Glauber?

Glauber morreu. Praticamente no exílio. Quem chegou ao Brasil na noite de 21 de agosto de 1981 foi um corpo doente, diagnosticado com pericardite viral. Durou pouco na Terra do Sol e da Embrafilme. Na madrugada do 22, há vinte e seis anos, Deus e o Diabo foram vistos na Clínica Bambina, RJ: estavam juntos, de mãos dadas, acendendo uma vela para o mais importante cineasta brasileiro.




O santo guerreiro, em detalhe de quadro de Flávio Freitas. Não, ao menos aqui não existe dragão da maldade.





"Tropical Analysis: The Films of Joaquim Pedro de Andrade"


Aliás,
Glauber foi velado no Parque Laje, cenário, entre outros, do seu Terra em transe e de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade...
... que, aliás...
... estará com uma retrospectiva no 45th New York Film Festival, de 29 de setembro a 9 de outubro, numa das mostras paralelas – as outras são "Views from the Avant-Garde", filmes e vídeos experimentais, e "Chinese Modern: A Tribute to Cathay Studios", sobre filmes produzidos nos famosos (sic) estúdios de Hong Kong.

O Brazyl sempre em companhia exótica.

O 45th New York Film Festival tem ainda Dylan em dose dupla: I’m Not There (“a rumination on the life of Bob Dylan”) e The Other Side of the Mirror: Bob Dylan Live at the Newport Folk Festival, 1963-1965.



segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Uma ferida não cicatrizada


Sábado, apenas soube da vitória de Deserto feliz e do seu diretor, o pernambucano Paulo Caldas, em Gramado, e-meei Augusto Lula – quem, sinceramente, é difícil descrever.

Diretor de cinema? Diretor de vídeo? Poeta visual? Visionário e sonhador de um “Rio Grande sem Sorte” (como gosta de repetir, citando Bosco Lopes) com um tiquinho mais de “sorte”, espécie na produção de um cinema que espelhe nossas contradições?

Todas as descrições poderiam ser corretas.

O que é certo é que vejo em Augusto – apesar de alguns entreveros que já tivemos – alguém verdadeiramente capacitado para realizar um filme “de verdade” na Província dos Reis, seja pela sua visão de mundo, de cinema, de cultura local, seja pela sua grande experiência no vídeo comercial, seu ganha-pão diário.

As perguntas foram apenas duas: qual o significado de um estado nordestino, fora do eixo Sul Maravilha, vencer em Gramado; e, quando a sigla RN embarcará para o RS, com uma película própria na bagagem.

Augusto Lula:

“São perguntas difíceis. Primeiro, os festivais estão em decadência – no Brasil são mais de 200. Gramado envelheceu e agora tenta premiar produções mais autorais – e que, todos sabem, não terão grande público – para tentar ser o que nunca foi: cult.

“O dia que o Rio Grande sem Sorte pintar em Gramado terá sido tarde demais, ‘como se chegasse atrasado andasse mais adiante’ (Leminski).

"Os vídeos que a gente fazia naquele tempo, fim dos 80, começo dos 90, hoje ninguém conhece. Hoje, os Cineastas de Natal nem conhecem a palavra videomaker.

“Sobre fazer Cinema ‘de Verdade’, penso que o RNsS não alcançou as condições econômico-culturais para realizar uma arte que é conseqüência direta da revolução industrial. A impossibilidade de realizar de maneira mais banal uma arte do século retrasado é a ferida não cicatrizada da nossa geração.”

domingo, 19 de agosto de 2007

Tradutor italiano de Bergman mora em Natal



“Sempre tive uma grande admiração, e ainda tenho, pela sociedade sueca, pelo ‘welfare’ [state], pela social-democracia de Olaf Palme.”

Começa assim, em tom de resgate da memória perdida, a explicação de Alberto Criscuolo, passaporte italiano, cidadão do mundo, para o como veio a ser o tradutor do roteiro de O sétimo selo, a obra-chave de Ingmar Bergman.

Morando em Natal há quase dez anos, interrompidos aqui e ali por curtas temporadas em Roma, onde ainda mantém um apartamento, Criscuolo começou a aprender sueco trabalhando na fábrica da Alfa Romeo. “Três meses de trabalho duro, mas com um salário muito próximo aos dos dirigentes – o que já demonstra uma profunda justiça social.”

Alguns colegas do jovem operário italiano eram refugiados políticos, alguns da Eritréia, outros do Peru. Talvez tenha começado ali, na fria Escandinávia, junto a outros exilados oriundos de climas quentes, seu fascínio pelo sol. E sua admiração por uma sociedade mais justa e igualitária:

“Era um tratamento de primeira classe concedido a nós trabalhadores que não mais encontrei em nenhum lugar do mundo, seja pelo salário, seja pelo respeito à pessoa humana.”

Em 1988 ganhou uma bolsa de estudos para a Universidade de Estocolmo e ali concluiu o doutorado. Foram oito meses, que ele define como “um período dourado”. Ao lado dos estudos, os esportes invernais e as festas universitárias ajudavam a construir uma atmosfera de alegria constante. Mesmo assim, o italiano reconhece que o sangue latino encontra ainda algumas barreiras no norte do mundo – “fica difícil, para nós, latinos, inserir-se e compartilhar completamente dos hábitos dos suecos.”

A obra de Bergman já lhe era conhecida, desde os tempos da Universidade de Roma, na Faculdade de Línguas e Literatura Estrangeira. “Fiquei logo fascinado”, lembra, especialmente pelo Det sjunde inseglet, título original de O sétimo selo. Depois do doutorado, volta a Roma, e em 1991 retorna a Estocolmo com uma idéia fixa: traduzir o roteiro. Para a sua surpresa só encontra edições em língua inglesa. Vai à Biblioteca da Universidade, vai à Biblioteca Real, nada. “Eu era prisioneiro do desejo absoluto de possuir o livro, de tê-lo vizinho, de reler algumas partes, de reproduzir na primeira pessoa os vários diálogos do filme”, escreveu no posfácio da edição italiana (Milano: Iperborea, 1994).

Encontra uma cópia do original datilografado na cinemateca do Filminstitutet. Não era permitido reproduzir nem tirar o documento da sala de leitura. Sentindo-se “um contrabandista”, copia trechos do roteiro em pequenos pedaços de papel, sem ser visto. Volta ao instituto, pede uma cópia. Sugerem que procure a editora de Bergman, a Norstedts Förlag, que consulta o diretor: “Bergman aceitou”, resume, ainda contente com o acontecido há mais de quinze anos.

Durante a tradução, Criscuolo procura respeitar as peculiaridades do texto original, que define como “muito próximo à poesia”. O roteiro apresenta diferenças evidentes em relação ao filme: “É mais rico das indicações que Bergman faz aos atores e se percebem os cortes que ele fez na versão cinematográfica.”

O tradutor não teve nenhum contato direto com o autor: “Tinha um caráter muito reservado e não quis forçar um encontro. Vivia só, numa ilha muito bela e selvagem, Fårö”.

Em 1994 sai a primeira edição de Il settimo sigillo, o 41º de uma coleção dedicada a autores nórdicos. “Até hoje é o livro mais vendido pela editora, já está na sétima edição”.

Um ano depois Alberto Criscuolo parte para o Brasil, um mês em Salvador, carnaval. “Voltei para a Itália com o ‘mal del Brasile’”, conta, numa referência cruzada à Síndrome de Stendhal, que acometia os viajantes estrangeiros diante das obras de arte italianas.

Viaja pela Amazônia, sempre só. Durante seis meses vive em Belém do Pará. Conhece todas as grandes metrópoles brasileiras. “Quando um amigo de Natal me convidou – ou fui eu quem o obrigou a convidar-me – vim conhecer a cidade.”

As lembranças de então chocam-se com a sua atual visão da cidade: “Natal em 98 era uma pequena jóia – mar, sol, as pessoas simples e hospitaleiras. Em menos de dez anos, sem um plano regulador, com arranha-céus que lembram a periferia de Roma, com um investimento pesado num turismo miserável, uma cidade sóbria e alegre, como Natal, mudou, com a chegada de grandes quantidades de dinheiro estrangeiro, lavagem de dinheiro sujo, especulações em cimento e carne humana...”

A imagem de uma cidade inteira jogando xadrez com a morte me vem em mente, enquanto Alberto continua sua reflexão sobre a perda dupla recente. “Bergman e Antonioni são os dois últimos diretores que deixam o século passado finalmente às nossas costas. Bergman nos deixa uma grande mensagem, primeiro artística, depois humana, em qualquer modo atemporal.”

O tradutor não vê muitas semelhanças entre o conterrâneo e o sueco, senão “o desejo em comum de representar a vida, enfatizando a incomunicabilidade do homem”. Enquanto Antonioni tem uma obra “mais cinematográfica”, o olhar de Bergman (“e seu coração”, acrescenta) é sempre teatral:

“É o testemunho da melhor tradição nórdica, de Ibsen, de Strindberg. Talvez o cineasta mais próximo dessa perspectiva bergmaniana seja Buñuel (basta recordar O anjo exterminador e Simão do deserto, por exemplo).”

Para Alberto Criscuolo, Blow-up é o melhor filme de Antonioni. Entre seus bergmans preferidos cita Morangos silvestres (57), O olho do demônio (60) e O rosto (58). Além, é claro, de O sétimo selo.


Em tempo: o tal “amigo de Natal”, a que se refere Alberto, é o subscrito – que, absolutamente, não se sentiu coagido a convidá-lo. Conheci Alberto, realmente, em Roma. Era fascinado pelo Brasil e me olhava com um sentimento duplo de admiração e confusão: que fazia eu ali, longe do Brasil com que ele tanto sonhava? É claro que, como nos filmes franceses, cherchez la femme – a de Alberto era uma morena, quase índia, estudante de odontologia em Belém.

Da minha parte, a primeira vez em que fui à sua casa, além de me surpreender com o gigantesco apartamento, um pequeno detalhe me chamou ainda mais a atenção: um pequeno volume de Il settimo sigilo – e a revelação de ser ele o tradutor. Era a cópia que ainda hoje tenho comigo.

Quando voltei para Natal, no final da década de 90, ele me liga um dia: estava no Brasil, a chuva diária sobre a capital paraense, o calor amazônico, os mosquitos, tudo o incomodava – é óbvio que a história de amor tinha acabado. Eu o convidei para conhecer Natal, como sempre fiz com meus amigos “estrangeiros”. Ele veio. Ficou. Vagabundou um pouco. Teve uma jangada de pesca. Trabalhou com hotéis. Foi guia para os turistas conterrâneos. Hoje comanda o Projeto Poseidon, que, além de oferecer passeios em barco a vela, incentiva a prática da natação em mar aberto. Já tem programado para o novembro próximo uma competição de 2.000 metros em Ponta Negra. “Não será apenas um evento esportivo, mas também social”, explica Alberto, que tem um desafio ainda maior a conquistar e muito mais extenso do que dois quilômetros de oceano ou um roteiro de Bergman: abrir uma escola de vela para meninos e meninas carentes.




Se Bergman está colocado à esquerda e Antonioni à direita, quem, na sua prateleira, seria o todo poderoso do cinema? Cartas eletrônicas para a redação virtual de cidadedosreis. (A presença dos diretores e filmes na foto não quer, absolutamente, induzir os leitores a nada – foram apenas escolhidos rapidamente para um retrato na parede deste sítio.)

sábado, 18 de agosto de 2007

Em Gramado


Pernambuco leva melhor diretor (júri oficial) e melhor filme (júri popular): Paulo Caldas e o seu Deserto feliz.

Quando o Ryo Grande estará presente na competição é a pergunta do final de noite.

Na Ilha de Fårö


Enterro de Bergman, hoje.

Poucas pessoas, entre elas Liv Ullmann, que chegou a viver com o diretor na ilha e foi sua atriz em sete filmes, e Bibi Andersson, 16 filmes (entre eles os comerciais para o sabonete Bris).

Como o funeral foi para poucos, você pode ver as duas atrizes em Persona, 41 anos atrás, a cara de uma, a cara da outra.

Corra pra locadora.

Amanhã, dê um pulo aqui, pra ler mais sobre Bergman.

Em Uppsala





Por favor, Manuela, quando perguntarem por mim,
diga que eu estou morando em Uppsala,
sou acendedor de velas na catedral gótica
e que meu novo nome é Erik.
Se o telefone insistir,
não tenha dúvidas, explique
que a minha mais recente invenção
foi feita no Zâmbia e que estou satisfeito
porque as moças românticas dos tongas
recitam nas praças meus poemas
quase sem sotaque.
Diga-lhes que toda busca é inútil
como uma paisagem sem cor,
e que esquecer é uma bela
apresentação do silêncio,
suas vestes e nossa morada última.
Manuela, você perdeu meu endereço
entre os recortes do jornal de ontem
convenientemente incinerados.
Talvez, eu já me chame Petrovi’c
e ganhe dólares ambiciosamente verdes
em Dublovinik, ou seja renascido
Zurbarán fazendo das aspas de touro
curvos trabalhos ornamentais
em lugar da Estremadura
certamente, Manuela, eu não nasci para ficar aqui,
Mas para ser mudança
até a derradeira mineralização,
avise, Manuela, que eu mesmo me busquei
muitas vezes nos cristais da manhã, nos espelhos baços,
na memória consangüínea,
e continuarei buscando.
Quase, certa vez, me descobri,
sob o pseudônimo aspirado de Hatzel,
o que usava cimitarras pra comer.
Hatzel, Hatzel , claro!,
ou Manuela! Manuela, bata
o meu requerimento de ausência.

Diógenes da Cunha Lima (Nova Cruz, 1937). Requerimento de ausência, in Memória das águas. Rio de Janeiro: Lidador, 2005


[“Você com Diógenes não está sozinho. (...) Você nunca está sozinho. Diógenes é um grupo
Luís da Câmara Cascudo]


Em Stockholm


Não me sai da memória que estou no torrão que viu nascer Greta Garbo, que, certamente, neste momento, ainda se encontra aqui de passeio. E em cada esquina eu pressinto que a famosa estrela me vai aparecer. E realmente, mais de uma vez estaquei para ver passar, indiferentes, várias Greta Garbo sósias, e ainda mais cheias de mistério.

Jayme Adour da Câmara, Oropa, França e Bahia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933