sábado, 30 de agosto de 2008

Malattia




Imagino que o pontapé inicial foi durante uma chuva rápida. Rápida, mas intensa. Os pingos grossos castigando a malha da camisa, o jeans da calça, as sandálias de couro mergulhando nas poças que se formaram na rapidez do inverno.


Daí para que se manifestasse foi questão de um dia, vinte e quatro horas. E o primeiro sintoma deu-se abaixo dos olhos, numa coceira sem coçar, num cansaço sem canseira, num arrependimento sem perdão.


Veio então, clássica, a velha moleza no corpo, indefinição para um estado que é também d’alma, além da carne torturada.


Prostração. Seria um bom resumo do quadro. Clínico.


No terra-a-terra, no comum, no vulgo, vale o dito: adoece o corpo por pura insatisfação do espírito.


E, à febre, são preferenciais as horas crepusculares. Quando o dia some e a noite se instala com seus temores. Hora de se apagar, se extinguir, morrer um pouco, dose diária e homeopática – que de morrer, não se morre duma única vez.


Morre-se um pouco, a cada vez. Morre-se, também, para reencontrar uma réstia de infância atravessando a cortina e ressaltando as sombras, pátina que o tempo empresta às coisas, como empresta ao epitélio. Morre-se, também, e preferencialmente, na penumbra de um quarto solitário. Num prédio silencioso. Numa rua vazia. Num bairro movimentado. Numa cidade efervescente. Num país em chamas. Num grão de poeira à deriva.


Morre-se, às vezes, para se saber vivo.


quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Urbi et orbi



[Foto de Joca Soares]




A Cidade ainda se revela em ângulos inesperados.



Um velho edifício, a lateral carcomida de pombos, ares-condicionados, roupas a secar.



O frontão de um prédio baixo, as samambaias derramando-se em cascatas de verde-esmeralda nos entalhes barrocos.



A calçada, sem uma nesga de sombra.



A avenida vazia. Entre um sinal fechado e outro. Os pedestres aguardando não-sei-quê.



Uma manada de búfalos, um estouro de elefantes, o mascar longilíneo de um pescoço de girafa.



A cidade ao meio-dia.



Relógios parados, ponteiros quebrados, minúsculas baterias jogadas ao monturo miúdo da lojinha de beira-calçada.



Caldo-de-cana.



Quer comprar? Quer vender? Quer dinheiro fácil? Quer amor barato? Quer juros baixos, rasteiros, e vinte e quatro prestações a perder de vista, lá pro prumo do horizonte? Quer-quer?



Quer me dar? Quer comer? Quer me dar? Quer comer? Quer-quer? Me dar? E comer?



Tanto negócio e tanto negociante. Tanta nau e tanto flibusteiro. Nas ruas estreitas longe do rio.



Reais. Cruzados. Tostões. Patacas. Em reais. São cinco. Cinco, o boquete. Pra você: dois e cinqüenta. Pra inteirar a passagem pra Nova Cruz. Pra voltar pra casa, lá em Minas, Alcântara, dormi na rua, me bateram, me quebraram, fiquei sem nada. É melhor pedir do que roubar. Meus filhos. Em casa. O pão. Mode comprar. Tô roubando, não. Pra pedra. É. Predra. Fogo? Dois por três, dois por três. Verde. Bermelho. Zoster. Assoa o nariz, menino. Moço, ô moço. O senhor devia prestar mais atenção por onde anda. Sem açúcar, sim? Açúcar ou adoçante? Tá todo mundo falando. Tevê-elicedê de vinte e nove polegadas, imagem real. Deixa eu lembrar o nome da poeta, não quero enrolar a língua. Oh, oh, ó quão dessemelhante. Ele tá fodido comigo. É por isso! É por isso que eu não aceito ler livro traduzido! Pelas drogas inúteis. Vem. Vem, comigo. Olha que bunda, ali na parada. Eu sabia que tinha uma coisa diferente em ti. Atenção! Necessito comprar um carro para vender churros, estou pedindo esta ajuda, porque não tenho condições. Minha família é muito simples e por isso é que preciso trabalhar para não viver na marginalidade, crime e dos vícios, para garantir o pão de cada dia, dependo da sua valiosa ajuda. Muito obrigado, que deus lhe dê em dobro. Deus. D-e-u-s. Jesus te ama e te dê. Eu também.



A cidade se desvela. Do alto dos prédios. Rouba branca a secar. Vento forte. No quarto, a cama desfeita, a vida desfeita. Gotejando a pia do banheiro. Manchão amarelo. A vizinha entrou com o rapaz black. Antes de fechar a porta, piscou o olho e ajeitou a ponta da saia. O elevador ainda em manutenção. O rapaz conversa com o porteiro. A moça entra, arrastando o moleque pelo braço. Todos conversam com o porteiro.



A cidade no fim de tarde. O sol vai se alongando entre os prédios modernistas. Se derrama e se estende ao longo do asfalto. Acompanha a curva das esquinas, invade a faixa de pedestres, mistura-se ao semáforo dos cegos. Os não-videntes. As ciganas pedem e exibem as mãos. As ciganas são exageradamente enrugadas. As ciganas são extremamente pobres. Falta tradição nessas ciganas.



A cidade escurece.



E ilumina-se.



Em luzes e neons. Em azuis, vermelhos, amarelos, laranjas. Em branco incandescente. Em faróis que deixam um rastro comprido brilhando no ar.



Em ônibus que se abrem, engolem e regurgitam.



Pisca.



A cidade no meio da noite.



Um frio em cada esquina.



Um soluçar de motor em combustão rompendo o silêncio.



Um coaxar de passos, tacos longínquos, rastro comprido ecoando no ar.



Batom.



A Cidade ainda se revela em ângulos inesperados recortados pelos primeiros raios da manhã.



A Cidade.



quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Peleja | II


Os fios compridos estendiam-se desde o alto. Como se uma navalha tivesse retalhado o sol em tiras d’oiro postas a quarar.

De longos cabelos loiros e pele escura, a moça destacava-se na fila que serpenteava a lateral do Templo.

Alongando dezenas de sombras nas pedras polidas do calçamento, como uma medusa de mil rostos, a fila era uma cicatriz escura na manhã ardente.

Um zunzum percorria toda sua extensão e estacava num engasgo à metade do caminho. Bem no ponto onde a moça de longos cabelos loiros e pele escura se postava e cruzava os braços sob o seio.

Os braços cruzados sob o seio. Como se arrulhasse um bebê de dias.

Além dos longos cabelos d’oiro, além da pele escura, a moça trazia no colo a marca de um encantamento anterior, e um sinal quase invisível nos olhos escuros (como a sombra de uma pedra marcando a superfície fina de um lago segundos antes da queda).

Segundos antes.

Do mergulho.

Eu a tomei pelas mãos ou foi ela quem me estendeu as unhas escuras – e a fila que serpenteava a lateral do Templo deixou de alongar ao menos uma das sombras sobre as pedras polidas.

Deslizamos, eu e sua sombra, sobre o chão arisco. Nuvens vermelhas se formaram às nossas costas. As árvores deitaram seus ramos diante da nossa passagem, para abrir-se num clarão que emoldurou o lago quieto.

Brinquei na escuridão dos seus olhos. Ela aceitou minhas carícias.

Tinha uma boca macia. Uma língua quente. Mãos fortes.

Eu podia sentir a palma de sua mão contra os músculos das costas. (Vez por outra ela a contraía – e cravava uma unha e outra na minha pele.)

Foi então que sacou do arco e da flecha. Foi então que vi o sinal mover-se e abrir-se numa contração que lhe provocou espasmos fortes no peito.

Eu quase podia sentir a dor que sentia. Tão físico era – esse sofrimento –, tão incorporado estava – ao silêncio –, como um ramo de árvore contra o horizonte azul. Como um pássaro em seu ninho.

O sinal tinha se transformado num pequeno bebê. De arco e flecha nas mãos.

A primeira flecha atravessou o céu numa curva que acompanhou o desenho dos olhos da fila. E foi cravar-se no coração do primeiro sacerdote. Seguiram-se outras mil, que escureceram o céu e desamarraram as linhas – as mesmas que, invisíveis, costuravam a cicatriz sobre a dureza das rochas.

Todas partiram do arco da dama: ao fim e cansada, ela abriu as vestes. E ela deu o seio ao bebê.

As rochas apoiaram seu sono, num chiaroscuro morno.

Com o leite ainda sujando a boca miúda, ele se levantou sobre as próprias pernas, os pés tão redondos e rechonchudos e ainda sem o arco plantar.

Tinha olhos brilhantes, limpou os lábios com o dorso da mão e sacou do próprio arco e da primeira flecha.

Eu senti quando a ponta afiada rompeu a primeira camada de músculos e pôs-se a beber, sofregamente, meu coração.


terça-feira, 19 de agosto de 2008

sábado, 16 de agosto de 2008

Diário



I
O dia vestiu-se de silêncio nas primeiras horas da manhã.

II
À noite, quebraram-se pedras. Restou intacto o encanto.
Asas frágeis, pó.

III
Quando se reencontraram, vinte anos tinham passado.
Num piscar de olhos, num roçar de dedos, num mergulho mútuo.
Um, no outro.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Cena de cinema | Soapbox Opera




Interna. Luz fluorescente. Verde pálida.

Um bando – a maioria homens, algumas mulheres –, todos nus, num banheiro. A água do chuveiro corre, franca, e desemboca no ralo. Estão todos de frente, uns pros outros. E de costas para as paredes azulejadas. Sobre o chão de ladrilhos, soltando espuma em profusão, um sabonete. Ninguém o toca, nenhum do bando se inclina para apanhá-lo. Não porque não o desejem. Apenas porque temem ser enrabados pelos demais caso arrisquem a manobra.

A água do chuveiro continua a correr, franca, como uma coluna líquida e quase palpável. Até sumir pelo ralo.



segunda-feira, 11 de agosto de 2008

ε X I T ε X Ô D O




Ficou seu retrato em três por quatro e um bilhetinho escrito em caligrafia seis por duas – seis linhas em duas colunas.

Ficou uma mancha, nódoa no lençol que não era cambraia nem bordados havia.

Ficou a sombra do seu corpo no espelho embaçado. Que me reflete aos pés da cama, os cabelos desgrenhados, um cigarro amarfanhado entre os dedos e entredentes.

Ficou a janela aberta, arreganhada para um quarto crescente triste. O céu congelado. Nuvens baixas, icebergs.

Ficaram uns restos de cabelos nas escovas e na pia do banheiro. Uns comprimidos contra cólicas. Um sabonete sem espumas.

Ficaram uns papéis voando pela sala, rodopiando espirais e pós, e um imenso cão de São Bernardo (que na verdade nunca tivemos).

No porta-retratos, eu e ela, como viemos ao Paraíso.

Antes de sermos expulsos, uma espada flamejante nos apontado a saída.