quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Peleja | II


Os fios compridos estendiam-se desde o alto. Como se uma navalha tivesse retalhado o sol em tiras d’oiro postas a quarar.

De longos cabelos loiros e pele escura, a moça destacava-se na fila que serpenteava a lateral do Templo.

Alongando dezenas de sombras nas pedras polidas do calçamento, como uma medusa de mil rostos, a fila era uma cicatriz escura na manhã ardente.

Um zunzum percorria toda sua extensão e estacava num engasgo à metade do caminho. Bem no ponto onde a moça de longos cabelos loiros e pele escura se postava e cruzava os braços sob o seio.

Os braços cruzados sob o seio. Como se arrulhasse um bebê de dias.

Além dos longos cabelos d’oiro, além da pele escura, a moça trazia no colo a marca de um encantamento anterior, e um sinal quase invisível nos olhos escuros (como a sombra de uma pedra marcando a superfície fina de um lago segundos antes da queda).

Segundos antes.

Do mergulho.

Eu a tomei pelas mãos ou foi ela quem me estendeu as unhas escuras – e a fila que serpenteava a lateral do Templo deixou de alongar ao menos uma das sombras sobre as pedras polidas.

Deslizamos, eu e sua sombra, sobre o chão arisco. Nuvens vermelhas se formaram às nossas costas. As árvores deitaram seus ramos diante da nossa passagem, para abrir-se num clarão que emoldurou o lago quieto.

Brinquei na escuridão dos seus olhos. Ela aceitou minhas carícias.

Tinha uma boca macia. Uma língua quente. Mãos fortes.

Eu podia sentir a palma de sua mão contra os músculos das costas. (Vez por outra ela a contraía – e cravava uma unha e outra na minha pele.)

Foi então que sacou do arco e da flecha. Foi então que vi o sinal mover-se e abrir-se numa contração que lhe provocou espasmos fortes no peito.

Eu quase podia sentir a dor que sentia. Tão físico era – esse sofrimento –, tão incorporado estava – ao silêncio –, como um ramo de árvore contra o horizonte azul. Como um pássaro em seu ninho.

O sinal tinha se transformado num pequeno bebê. De arco e flecha nas mãos.

A primeira flecha atravessou o céu numa curva que acompanhou o desenho dos olhos da fila. E foi cravar-se no coração do primeiro sacerdote. Seguiram-se outras mil, que escureceram o céu e desamarraram as linhas – as mesmas que, invisíveis, costuravam a cicatriz sobre a dureza das rochas.

Todas partiram do arco da dama: ao fim e cansada, ela abriu as vestes. E ela deu o seio ao bebê.

As rochas apoiaram seu sono, num chiaroscuro morno.

Com o leite ainda sujando a boca miúda, ele se levantou sobre as próprias pernas, os pés tão redondos e rechonchudos e ainda sem o arco plantar.

Tinha olhos brilhantes, limpou os lábios com o dorso da mão e sacou do próprio arco e da primeira flecha.

Eu senti quando a ponta afiada rompeu a primeira camada de músculos e pôs-se a beber, sofregamente, meu coração.


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