quarta-feira, 16 de abril de 2008

Andar com fé a pé [070308]



Há uns 15 anos não moro em Natal. Um terço fora, do Estado e do país, e o resto do tempo entre Nísia Floresta e Parnamirim.

Há uns três, quatro meses, passo boa parte da semana na capital, e, aqui, particularmente no bairro de Petrópolis.

Petrópolis é o bairro da minha infância – o que já significa muita coisa. Mas não apenas: aqui nasci, me criei e vivi até os 17 anos. Praticamente no mesmo endereço, uma ruazinha estreita entre a Mossoró e a Mipibu.

Até os quatro anos morei numa casa vizinha à casa da minha avó. Depois, numa casa em frente, projeto do arquiteto Ubirajara Galvão.

Nos meus sonhos mais importantes, aqueles que ao despertar reconheço importância simbólica, ainda que misteriosa, é lá que vivo uma outra vida onírica, no surrealismo típico dos sonhos.

Como todos da minha geração, não tive portas nem portões fechados, nem limites claros que não deveria ultrapassar.

Quando chovia, a ordem implícita era pegar a bicicleta e tomar banho de biqueira.

Em meados dos 70, veio a febrícula do skate, então apenas uma tábua adaptada às rodas dos patins. Numa cidade quase analfabeta do piche escuro do asfalto, a solução eram as calçadas largas do bairro.

Desde os 11 anos acostumei-me a andar a pé, da Ribeira a Petrópolis, de Petrópolis à Cidade Alta. Um labirinto facilmente desvelado em rotas invisíveis: Juvino Barreto, Potengi, Rodrigues Alves, Mipibu – a rota 1; Junqueira Aires, Rio Branco, João Pessoa, Deodoro, Açu, Rodrigues Alves, Mossoró – a rota 2. Os centros da vida eram a casa e o colégio. E, por extensão, o lazer da “cidade”, o centro comercial, shopping center da época, fechando o triângulo: lá estavam as butiques de surf, os cinemas, as casas de lanche, as lojas de discos, as livrarias.

Um quarto de século depois, quando reencontro Petrópolis, agora travestida de Quinta Avenida, vejo com prazer o que ainda resiste daquela época. Nem as mudanças radicais me desanimam, apesar de visível e agressivamente suplantarem a permanência do tempo.

E volto a caminhar a pé, a remontar os fios invisíveis daquelas rotas da infância, numa saudade revigorante.

Agora, me dizem que não é mais aconselhável o pedestrianismo, mesmo que no início da noite calma. As novas lojas há muito mantêm a chave na fechadura das portas envidraçadas. Os clientes do café na calçada foram assaltados. O dono da cigarreira pensa em fechar. A farmácia já fecha apenas a noite cai. Os outros pedestres quando cruzam por mim, trocamos olhares desconfiados. A família de minha cunhada foi assaltada, faca na garganta, na Potengi, próximo à Biblioteca Câmara Cascudo, sete da noite dominical.

As opções também não são das mais confiáveis: atenção ao se aproximar do veículo, olhar se alguém espreita, não acionar o controle automático senão quando já bem próximo, entrar rapidamente, travar portas e janelas, partir imediatamente.

Revejo e reviso o título dessa crônica, citação de um Gil que não acreditava nas “fáia” da fé. Não, crianças: a possibilidade de andar com segurança não deveria desaparecer assim tão naturalmente com o crescimento das cidades, como sina da qual não se possa escapar. Tampouco é questão de fé, religião ou esperança – é questão de cidadania. E vergonha.
Item ausente em governos e administrações omissas, coniventes, cúmplices mesmo, do crime que se organiza enquanto o caos se instala.

Um comentário:

Alex de Souza disse...

Na minha época de vagamundo, Natal já era um pouco mais extensa. Lembro de uma tradição em épocas natalinas: saía de Neópolis por volta das 5h, com destino a Lagoa Seca, imediações da Sam's, até a casa de Aristeu Araújo. De lá, íamos em périplo até a casa dos amigos, desejando o malhado "feliz Natal" e tomando uma latinha - e só parávamos nas imediações do Eucaliptos, num dos Serrambis da vida.

Outro costume feio era sair da rodoviária velha, após noitada na Rua Chile, em fila longobarda, até em casa,em Neópolis. Era chão!