domingo, 20 de abril de 2008

O abismo de todos nós


Não é exagero citar o velho chavão do abismo social no caso da menina Isabella Nardoni. A mídia, e quem comumente dela faz uso, tem maior respeito pela dita “classe média” – outro chavão que ainda resiste – em detrimento daquelas “inferiores”, C, D, ou Z.

Basta ver os programas que pululam nas nossas TVs locais e em todas TVs locais Brasil afora: a câmera não pede licença para – tal como um dedo índice acusatório – escancarar o rosto do meliante para o telespectador em casa. Como não pede licença para passear no corpo seminu do bandido – reparem: a cena é quase sempre a mesma, um indivíduo pardo, a barba e bigode mal-feitos, o cabelo desgrenhado ou rapado zero, o calção puído e gasto de tanto lavar, e as chinelas de dedo, igualmente gastas, consumidas, desbotadas.

Se é do sexo feminino, a marginal é violentamente explorada pelas lentes para exibir as mesmas estereotipias: a cor parda, o cabelo basto e desarrumado, o corpo apertado num collant de cores vivas. Entre o collant e o shortinho curto, uma barriga proeminente: as mulheres das classes mais baixas (abaixo da “média”) têm o corpo desfigurado e maltratado e muito de gordura localizada. É um estereótipo que as câmeras fazem questão de delimitar, como fronteira social entre os incluídos – nós, que compramos jornais e temos TV a cabo – e eles, os excluídos – carne de canhão para notícias de um mundo, submundo, além das nossas seguranças e inseguranças.

Além do aspecto visual, o verbal é igualmente importante: os repórteres dos plantões de polícia televisivos não têm papas nem freios na língua. Disparam sem temor a pergunta que traz embutida uma resposta prévia e acusatória: “Por que você matou?” Na bucha, à queima-roupa. Os acusados cumprem bem o seu papel, o papel que determinamos para eles: dão respostas evasivas, pontuadas pelo mau uso da gramática, por vezes sorriem um sorriso amarelo e sem graça o que nos provoca revolta e a certeza do cinismo.

Noves fora o caos psicológico que é a morte de uma criança (cinco anos!) – além do mais nas circunstâncias terríveis do caso Nardoni – o que assusta a todos, câmeras e policiais, para citar dois profissionais que têm se mostrado atônitos e por isso mais respeitosos com os acusados, o que assusta a todos, insisto, incluídos aí os telespectadores comuns, classe “média”, é que, neste caso, não existe nenhum invasor externo a ultrapassar a fronteira do condomínio classe média. (E se existisse cumpriria as regras do estereótipo: marginal, pardo, peito nu, calção e chinelos.) O que assusta é que o inimigo, desta vez, contrariando a lógica da divisão social, está ao nosso lado. Veste as roupas da classe média, o corte de cabelo da classe média, é filho, neto, irmão, amigo e – o mais terrível – pai e algoz dessa mesma classe média.

Alguém que não usa o elevador de serviço, enfim.

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