segunda-feira, 14 de abril de 2008

Arthur [140408]



Basta poucos minutos na companhia de Arthur Moreira Lima para espontaneamente chamá-lo de Arthur – embora o tratamento íntimo provoque em nós, paupérrimos mortais, um quê de constrangimento: afinal, o homem é uma lenda viva e um monstro sagrado e consagrado ao piano, num país de poucas lendas vivas e poucos monstros sagrados e consagrados, ainda mais num instrumento que, paradoxalmente, pode ser mais fácil carregar do que tocar. E, ao tocá-lo, soar mal que o contrário – o que faz lembrar a máxima de Oscar Wilde: “Por favor, não atirem no pianista. Ele está fazendo o melhor que pode.”

Arthur – com o perdão do Moreira e do Lima – faz o melhor que pode. Convidado por Diógenes da Cunha Lima, o pianista chega, acompanhado por Chico Cortez, num restaurante à beira-mar. Está em Natal para acertar detalhes e datas do seu projeto “Um piano pela estrada”, que tem, quase como um subtítulo, a explicação objetiva: “Um projeto de inclusão social e musical”.

Não é conversa fora. Arthur entendeu a exata e poética dimensão do que fazia, há alguns anos, quando – em pleno sertão mineiro, depois do concerto que normalmente realiza em cima de um caminhão Scania de 14 metros de comprimento – o prefeito de Januária lhe disse sobre o projeto: “Eu sabia que era importante, só não sabia que era bonito.”

Mas essa história ele conta depois. Antes, pra quebrar o gelo ele dispara: “Vim aqui anônimo, como olheiro do Fluminense.” E sorri. E quando sorri, se transforma. Tem um rosto marcado, um olhar triste e pensativo, e o corpo encurvado como se procurasse eternamente as teclas bicolores sob o nariz adunco.

Sua paixão declarada a três por quatro pelo Fluminense faz pensar que seria mais feliz se o teclado do piano fosse tricolor, como o seu time. Por isso fala sempre no Flu, por que, quando cita uma escalação famosa, ou quando cita outro torcedor apaixonado como ele, sorri. E quando sorri, o rosto continua marcado, o nariz continua adunco, mas rosto e nariz são um só riso e os olhos um par de brilhos.

Quando sorri, deixa de ser Arthur Moreira Lima, para ser, simplesmente, Arthur.

Um cara curioso, com um sotaque discretamente carioca, que puxa do bolso uma cadernetinha para anotar algo que seu interlocutor falou – e, adivinhem qual escudo se vê impresso em três cores no couro da agenda?

A mesa se anima. Se solta, relaxa: além dos já citados, estão ali o poeta Paulo de Tarso Correia de Melo e o cronista social Paulo Macedo, que chegou por último, e logo sacou do bolso, não uma caderneta tricolor, mas um poema contra Lula, supostamente de Affonso Romano de Sant’anna, diz. Arthur ouve, discreto: não se sabe se é contra ou a favor do poema contra. Macedo pede desculpas, não pode ficar para o almoço, a coluna deve sair no dia seguinte. Arthur pede água com gás e guaraná zero, o garçom oferece diet, ele dá de ombros. Diógenes conta eventos históricos, descreve como o primeiro prato consumido no Brasil recém-descoberto foi o próprio descobridor luso, assado. Surpreende-se com o conhecimento do pianista sobre História – ele explica seu interesse, que vem de família. A República, com erre maiúsculo, lhe é particularmente interessante. Em plena ditadura militar, Arthur um dia vai conversar com um militar: propõe um “mapeamento musical” do país. O oficial salta da cadeira: “Mapeamento é um termo de milico!” Arthur sorri, naquela ocasião sorriu, sorri agora, também. Foi aluno do Colégio Militar, no Rio, estudou piano na União Soviética, onde morou por oito anos. Diverte-se ao recordar um encontro de artistas em Brasília: Marco Maciel chega e interrompe as reivindicações ao puxar Arthur num canto para falar sobre o Fluminense.

Sorri quando fala da sua amizade com Millôr Fernandes, sorri quando cita, exaustivamente, histórias e frases de Don Rossé Cavaca, pseudônimo de José Martins de Araújo Júnior (1924-1965), jornalista, publicitário e humorista, autor de – olha só – “Um riso em decúbito”.

Todos gostam quando diz uma frase do Cavaca – tanto, que ele é obrigado a repetir e eu, a transcrever: “Já está na hora de a geração mais jovem aprender com a geração madura que pirâmide já foi bossa nova em matéria de sepultura.”

É a chave para entender o cara que se despede de nós quase tão íntimo e sem o glamour empoado das celebridades (ninguém pareceu reconhecê-lo no restaurante lotado). Por pouco não dou um tapinha nas costas ou encosto o punho fechado contra o ombro, esquecendo que é o mesmo Arthur – agora com o Moreira e o Lima – que já se apresentou com Filarmônicas e Sinfônicas de Leningrado, Moscou, Varsóvia, Berlim, Viena, Praga, Londres, Paris, sob a direção de nomes pra lá de esquisitos (pesco todos do seu sítio na internet): Kurt Sanderling, KiriIl Kondrashin, Mariss Jansons, Jesus Lopez-Cobos, Rudolf Barshai, Serge Baudo, Sir Charles Groves, Vladimir Fedosseyev.

Melhor apertar a mão e dar tchau.

E esperar que a governadora cumpra o prometido e o mais popular dos eruditos volte ao Ryo Grande. Quem sabe um vereador ache que ele está à altura de nossa Claudinha Leitte e faça-o cidadão natalense. O nosso Arthur.

8 comentários:

Moacy Cirne disse...

Tenho vários discos do Arthur (olha lá a intimidade, rapaz...), tricolor apaixonado como eu. Aliás, esta semana irei duas vezes ao Maraca: na quinta e no domingo. Para mim, o Rio sem o Maraca não é o Rio. Ah, sim: mais uma boa postagem na sua Cidade dos Reys. Abraços.

Mme. S. disse...

concordo com o Moacy. esse "Arthur" que você nos apresenta é fascinante mesmo. bela crônica.
abraço, S.

Anônimo disse...

o único defeito do cara é ser fluminense. mas ninguém é perfeito...

Moacy Cirne disse...

Único defeito, cara Lissa? Ao contrário. Talvez seja a sua principal qualidade. Mas esclareço: ser flamenguista, botafoguense, vascaíno, tricolor, abecedista ou americano não significa que a pessoa tenha este ou aquele "defeito" em particular. Para os que vivenciam o futebol (como é o meu caso, freqüentador assíduo do Maracanã), trata-se de uma questão existencial. Um abraço.

Anônimo disse...

estava brincando, moacy...
mas você há de convir: como flamenguista e antiga freqüentadora assídua do maracanã (agora fica um pouco longe pra ir) eu achar que ser tricolor é uma qualidade seria um pouco demais...
abraços rubro-negros.

Moacy Cirne disse...

Pois é, cara Lissa, a vida é assim mesmo: para mim, ser tricolor é uma qualidade. Mas respeito todas as paixões clubísticas, sem exceção.
Abraços tricolores (e que o Mário Ivo - qual será o seu clube? - nos desculpe por transformar a Cidade dos Reys num Fla x Flu de opiniões).

Anônimo disse...

pois é, moacy. futebol -pra quem gosta, nosso caso - é apaixonante mesmo.
mas acho que mário ivo não liga, não. ele me parece um democrata (e que fique bem claro: não me refiro àquele partido sem futuro...).

midc disse...

eu to achando ótimo! ter o espaço transformado em arena com dois contendores de peso como moacy e lissa anima qualquer maracanã, quanto mais um campinho de várzea como este.
preciso rever meu desinteresse ao ludopédio.
mas, só p constar, quando eu era menino me declarava america (em ntl) e flamengo (no rio) - o q me faz lembrar aquela perguntinha doppio senso e infame,"que-time-é-teu-lá-no-rio" (sorry, é meu lado frasqueira se manifestando...)