sexta-feira, 18 de abril de 2008

um monte de ruínas [080408]





Estava eu dia desses charlando com Don Giovanni de Lolita y Rêgo. Papos idiossincráticos. De beira de calçada. Noite alta, ou baixa, céu risonho, ou amuado – sem estrelas nem cometas, que os últimos dias são invernais, com vê minúsculo. O sobrescrito e o dito cujo são chegados numa beira de calçada. Um meio-fio. De preferência aqueles de paralelepípedos.

Os temas são quase sempre os mesmos: o Ryo Grande, a Natalzinha, o Putigy. E os varões e donzelas que enfeitam a paisagem. Sociais, políticos, econômicos.

A idéia era encontrar uma idéia para um projeto de livro. A minha palavra tangendo as 1.000 do tira-fotos. E vice-versa.

Conversa vai, chope vem, sugeri um livro sobre como os natalenses moravam, abordando os que ainda moram, como num passado mais ou menos recente: em amplas casas, com jardim, quintal e retratos nas paredes e sobre os móveis da sala.

Enumerei umas tantas – que seus proprietários me perdoem a intromissão e a exposição nesta coluna, mas, enfim, são apenas palavras, e, nem ao menos, tão descritivas.

A casa de Dona Sílvia Ramalho, por exemplo. Viúva de Osório, nora de Manoel Dantas, sua casa é uma maravilha, de uma época que já foi. Não existe fausto, nem pompa ou circunstância exageradas. Nem, tampouco, declínio, queda ou decadência. Tudo permanece, como se os anos 60 e 70, especialmente, continuassem a existir no equilíbrio, na discrição, na arrumação sóbria dos móveis e dos sopra-móveis. Como se os arquitetos-decoradores que enxovalharam as neogaiolas da neo-elite no último decênio nunca tivessem existido.

Outra: a casa da viúva Machado. Dói em mim sabê-la desconhecida. Não sei quanto daria para passeá-la – que de vinténs e tostões só os tenho furados – mas, de bom grado, aceitaria um convite para o chá das cinco. Prometo até calçar sapatos, como gente de bem. E alçar o mindinho quando levar a xícara de porcelana inglesa aos lábios contritos. Ou não alçá-lo, que sei eu de regras da nobre etiqueta?

Voltando às que conheço, a casa de Odilon Garcia: uma beleza, com ares de mansarda americana e ecos distantes da Segunda Guerra. Ainda tive o privilégio de lá adentrar e ser recebido pela figura ímpar do amigo do meu pai – ainda que a visita fosse à sua filha e minha professora de semiótica, Maria Lúcia. Em várias ocasiões, antes das refeições, tive o prazer de ouvi-lo botar o toca-discos pra funcionar: de algum canto da casa evoluíam no ar clássicos extraídos dos sulcos negros de antigos long-plays, bem conservados e cuidados, como todo o mais – a arquitetura original intacta, imune às sanhas do novo, as plantas verdejantes, o pátio sombreado com cadeiras à espera da visita e do bem-acolher. Emprestou-me, um dia, o velho Odilon, um livro de crônicas de Antônio Maria, também estas retrato de uma época, de um Brasil saudoso de meio-século atrás. Noutro, estendeu o braço e me passou uísque e gelo. Não é exagero dizer que ainda lembro com alegria o gesto, transubstanciando no frio do copo de boca larga, e no tilintar das pedras descortinando maltes e o prazer da companhia. Do compartilhar fraterno, ali, perto e ao mesmo tempo tão longe da cidade assanhada em ser metrópole, ingênua no seu desmantelo à guisa de progresso.

Quantas mais existem destas velhas casas? Quantas e por quanto tempo ainda sobreviverão? Aos velhos não lhes resta nada a não ser ceder espaço aos vivos e aos que estão por nascer, que o mundo parece cada dia mais apertado. Um dia, esses retratos antigos, vivos, em terceira dimensão, palpáveis e sentidos, fecharão para sempre suas portas. A penumbra encerrada não resistirá muito: ninguém as mais quer, enquanto morada. Alegam segurança, tamanho, gastos. Contas são feitas, cálculos ignoram e desprezam o romantismo datado, arquitetos e engenheiros fazem plantas, empurra daqui, tira dacolá, cabem aqui tantos apartamentos de tantas suítes e não menos vagas nas garagens.

Num piscar de olhos as velhas construções tomam o mesmo rumo de seus donos, transformam-se em entulho. Um olhar distraído e nem escombros reencontramos mais. Dali a poucos dias, o stand feérico é construído. Blindex, gesso, granito, aço escovado, a receita da modernidade.

Vai ser assim com outra das casas da nossa lista: a última – suponho – da família Lamartine em Natal, esquina da Trairi com a Rodrigues Alves (a informação é da abelhinha Eliana Lima). É uma casa moderna – os acadêmicos de arquitetura saberão descrevê-la melhor – daquele modernismo da década de 70 em Natal, provavelmente reflexos de décadas anteriores no mundo, especialmente nos Estados Unidos da América. Tem ares de Frank Loyd Wright, ou Le Corbusier, ou Mies van der Rohe, imagino, e posso estar enganado, não importa: para mim, é uma presença que permanece constante desde que eu era menino. Outro dia passei lá. Passo quase diariamente lá, o velho saudosista e bobo em que estou me transformando. Olhei as árvores enormes, que rimam com a casa como versos fluidos numa poesia silenciosa, e que parecem plantadas pelo mesmo arquiteto-construtor.

Me peguei com o desejo ridículo de que ao menos elas fossem conservadas. Besteira: se apagariam diante do monstro de concreto, ávido em arranhar céus, nuvens, estrelas. Em nos engolir.

PROSA
“Demais, não faltarão jornalistas de oposição para afirmar, por dever de ofício, que vamos em regresso e que, daqui a 50 anos, Natal será um monte de ruínas.”
Manoel Dantas
Natal daqui a 50 anos

VERSO
“Vamos, irmãos, eu que estou reparando, de retrato, esse quadro que se alonga ao longo da parede.”
João Lins Caldas
A casa nos conta a sua história

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