terça-feira, 3 de junho de 2008

A última loja de discos [280408]



“Prostituta não poderia se apaixonar – mas, as coisas raras eu levo pra casa.” – quem fala é Antônio Carlos, há uns 15 anos proprietário da Discomania, vizinhanças do Beco da Lama, downtown potyguar. As “coisas raras”, a que se refere, são discos, discos de vinil.

É a última loja de discos da cidade, e, paradoxalmente, conseguiu sobreviveu até mesmo à Velvet, que comercializava quase que exclusivamente CDs e tinha um público bem mais jovial e antenado com os últimos lançamentos. Antônio Carlos também os vende, os disquinhos pequenos, em embalagem acrílica. Embora, discretamente os desdenhe, sutilmente os despreze. O compact-disc não é um inimigo a ser combatido – são os long-plays que precisam ser defendidos.

Seu discurso a favor do vinil e da própria atividade tem um viés político, quase de guerrilha, permeando um raciocínio objetivo: “Nosso negócio tem duas características – uma, comercial; a segunda, de prestação de serviços. Resistir à ofensiva do mercado fonográfico que impôs o CD e resgatar a boa música são os nossos objetivos.”

E o que Antônio Carlos entende por boa música? Principalmente a discografia das décadas de 70 e 60, incluindo aí a MPB, embora os discos da época não alcancem boa cotação – “o que eleva o preço de um LP antigo é a tiragem original: como nos anos 70 e 80 as tiragens acompanhavam a demanda alta, é fácil encontrar a discografia dessa época em qualquer sebo”, explica.

Diante da pergunta qual o disco mais caro que tem na loja, se atrapalha um pouco, até confessar que o bolachão não está exatamente na loja, mas em casa – é quando faz o paralelo com as putas apaixonadas, que beijam na boca e tudo mais: teoricamente o disco está à venda, mas o mantém na segurança do lar, para não cair em tentação. Não cita nomes, talvez com medo que o sobrescrito lance mão de uma oferta, mas revela um que, nunca, jamais, em tempo algum, venderia: o primeiro de Frank Zappa. Em resumo, em casa guarda cerca de 2,5 mil discos, dos quais mais da metade – 1,5 mil – é “inegociável”.

Desconversa, desconversa, e mostra alguns, disponíveis ao escambo por reais: o único disco da banda pernambucana Ave Sangria (R$ 100) e o “Sertania”, de Ernst Widmer e Elomar (R$ 150). Já passaram pelas suas mãos o primeiro de Roberto Carlos (R$ 2 mil), um Renato & seus Blue Caps (R$ 500) e o único LP do grupo carioca Módulo Mil (R$ 400). E, claro, o top dos tops das raridades: o “Paêbirú” de Lula Côrtes e Zé Ramalho – vendeu por R$ 600, ano passado, mas hoje é cotado em cerca de R$ 2 mil e há quem afirme ter sido vendido pelo dobro do preço. No Brasil ou no exterior.

Bruno, 17 anos, morador das Quintas, pega mais leve e é um exemplo mais próximo do dia-a-dia da Discomania: depois de horas fuçando nas prateleiras – o maior prazer para quem curte long-plays – leva pra casa o “Houses of the holy”, do Led Zeppelin. Por R$ 25. Diz que trocou um CD player por um toca-discos com um amigo. Tem MP3 mas segue, vez ou outra, comprando vinis – embora se considere, ele mesmo, uma rara exceção entre os amigos.

Antônio Carlos balança a cabeça: o dado contraria sua tese, a de que jovens como Bruno cada vez mais curtem as bolachas pretas, especialmente aquelas de grupos de rock progressivo e hard rock, de uma época em que não eram nem nascidos. Mas reconhece que há uma tendência geral à elitização e à maturidade, com significativa parte do público-consumidor formado por colecionadores.

As vendas também podem acompanhar a alta-estação, inclusive aquela tipicamente turística: “Há alguns anos, uma turma de japoneses fez um arrastão de [discos de] Bossa Nova na cidade: enchiam caixas e mais caixas, que eram despachadas de navio.”

Os altos e baixos do negócio não o desanimam – tem dois empregos públicos que garantem as vacas magras, e a Discomania, no final das contas, não lhe traz prejuízo, aliás, é um complemento na renda. Tampouco a internet o seduz. Chegou a vender alguns discos no mercado virtual, mas o que lhe interessa mesmo é a loja física, onde pode “bater papo, trocar idéias e negociar vinis”.

É realmente a última loja de discos em Natal, resquício indireto de uma época onde existiam lojas que vendiam unicamente discos. “Hoje você encontra uma seção de discos dentro de uma grande loja ou supermercado, mas não uma loja exclusiva.” É o próprio Antônio Carlos quem cita outros colecionadores, alguns que ainda vendem discos, mais nenhum com negócio físico: César “Pace”, “Black” Moraes, Régis “Hendrix”, Nilson “Eloy”. Os apelidos dispensam explicação. E Tony “Zappa”, adivinhem quem é? O próprio Antônio Carlos – que não vê a hora de aposentar-se para dedicar-se em tempo integral à loja.

Ivete, a esposa e sócia, diariamente na loja, ao ouvir – talvez pela centésima vez – o projeto, levanta uma sobrancelha, baixa os olhos, em silêncio. Uma sombra de dúvida parece passar pela sua cabeça.

Mas logo se vai. Já entendeu que o que move o marido não é apenas um negócio: é antes de tudo uma paixão.


PROSA
“Este não é um emprego para os selvagemente ambiciosos.”
Nick Hornby
Alta fidelidade
VERSO
“Apaches, punks, existencialistas, hippies, beatniks de todos os tempos
Uni-vos!”
Caetano Veloso
“Ele me deu um beijo na boca”

2 comentários:

Capitão-Mor disse...

Que excelente descoberta eu fiz por aqui! Só conhecia a Velvet, mas tb teve uns tempos em que esteve fechada.
Abraço

Anônimo disse...

e a julgar pelo fotograma o local é bem arrumadinho