Para N.
Lá vem a noite escura beirando silenciosa as cumeeiras do céu. Os nativos se recolhem, em terços, efígies, pelo-sinais. Os aldeões se reúnem diante do aparelho votivo. A luz elétrica grassa pelas torneiras dos apartamentos. Luzes piscam, olhos piscam, a multidão bate palmas diante da façanha do goal keeper. Distante ainda a madrugada, o veneno se apronta para dela bem dispor. Mete camisa de linho, desfaz e refaz o nó da gravata cem vezes até que lhe pareça desigual. Odeia as perfeições, senão. Espana os sapatos de couro negro, amarra com cuidado esmerado o cadarço, abotoa a braguilha. Tem e mantém à mão dois isqueiros baratos. Um verdesmeraldino, o outro fúcsiaberrante. Noutra banda da City, dormita o casal jovem e trigueiro. Fizeram um amor distante, trocaram fluidos arfantes, besuntaram o corpo um do outro de um suor que mais parece d’oiro. Descansam. Os pombinhos. Arrulha daqui, arrulha dacolá, ela é a primeira a levantar-se, pisar descalça as lajotas friinhas do banheiro. Xixi: schhhhhhhhhhhhhhhhhhi. Ele continua a dormir. Uh! Que barulho foi esse? Que barulheira no céu, meninos! Que barulhão ensudercedor! São as trompas, as trombas, as pompas, as pombas, as bombas do apocalipse nau? Yes. Yes. Yes. O barzinho lá nas ribeiras da podridão começa a encher. Poderia dizer, afirmar, sem enfado ou medo: lo-cu-ple-ta-se. O barzinho. Vem entrando pela porta principal, ele, Renatinho, o mais-querido. Camisa florida, gola rulê. Sapatos mocassim, sem meias, mané-gouveia. Cintão de fivela de prata. Déin! Dente de ouro na arcada inferior. Calça de veludo cotelê. Verde-musgo. Muitos dólares no bolso. Regininha e Moniquinha, as gêmeas siamesas já ronronam por ali. Uma meteu o avental, outra esfrega benzinho a baixela de prata. Estão um pouquetito chateadas com Mr. Little Renatô. Transa de dólares que o moço não confiou. Daí o muxoxo com que recebem o belisco no seio – o de Regininha redondo e exuberante, o de Moniquinha altaneiro e igualmente exuberante. Lao Ping prepara as facas. Hoje temos polvo, repararam nas ventosas surreais do bicho? Lao Ping tem sessenta anos. Parece vinte. Um carro parou na esquina. Negro, luzidio, diria-se... como mesmo se diz? – Polido. Isso, grazie, polido. Lá dentro Flora chora. Uma dama e infeliz no casamento. Precisa dizer mais? Precisa. As luvas de Flora combinam com o colar de pérolas verdadeiras. O colar de pérolas verdadeiras combina com a tiara de brilhantes falsos. A tiara de brilhantes falsos combina com os olhos azuis-cristalinos. Seria injustiça dizer que lhe falta uma perna, ainda mais agora que prepara-se para descer, Jorge já abriu a porta e perfilou-se ao lado da macchina, mas, lhe falta uma perna, não vou dizer nem qual, se esquerda ou direita. Mas, caminha como numa passarela de nuvens, Flora. Um longo percurso até a mesa por ela diligentemente reservada um mês atrás. Lao Ping amola as facas. Renatinha chupa a gengiva. Regininha estende o cardápio. Moniquinha observa. Voltando rapidamente para a outra banda da City, vemos o veneno da madrugada acender e tragar com fôlego incrível o vigésimo cigarro do dia. O maço vazio resta no chão. Tem uma lixeira a dois passos. A calçada povoa-se de homens e mulheres dançando como numa coreografia da Broadway. Uau. Os pontos cardiais são quatro – assim, numa outra banda da City o casal de pombinhos já vestiu-se. Sonolento ele, ainda. Espertinha, ainda, ela. Não se deram as mãos quando entraram no ônibus cor-de-prata. E só sentaram-se no mesmo banco porque outro vazio não havia. Dali a pouco pedirão parada, descerão na nove com a quatro, deixarão o tac-toc dos seus saltos na calçada, passarão diante do portãozinho de ferro sempre aberto de Madame Shina, e ele baterá os punhos contra os punhos de Monsieur Dunlop com aquele gestual urbano dos jovens estúpidos. Quando entrarem no apocalipse nau vocês vão ver. Vocês não perdem por esperar.
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