ELA SABIA QUE ELE NÃO ERA CONFIÁVEL.
Podem chamar ciúme, podem ajuntar um doentio na bagagem da ênfase, podem esculhambar à vontade. Ela sabe.
Quando o conheceu, era apenas um menininho bobo, recém-descabaçado, incerto ainda em encontrar um modo claro de se comportar no mundo.
Ela não lembra quando – nem por que – mas um dia ele começou a ser importante pra ela. Tornou-se alguém em quem depositar atenção, carinho, e sexo.
Ela não costumava usava sutiã. Ele escorria suas mãos entre os botões que abriam-se como desabrochando. Com as palmas e as fissuras das palmas – a linha da vida, a linha da cabeça, a linha do coração – abocanhava o volume pleno dos seios. Só muito depois ela descobriria ser aquilo tudo incomparável.
No começo ela apenas se deixava acariciar. Uma entrega anônima. Não importava quem, importava o que faziam com ela. A maioria não sabia fazer.
Logo começou a sentir dolorosamente a ausência daquelas mãos, da boca, dele inteirinho à sua frente, para seu uso e abuso. Para que dela fizesse uso, e abuso.
Ela então percebeu que o que ele significava pra ela poderia facilmente significar pra outras, também.
Para ela não tinha aquele papo do “monstro verde do ciúme”, de tapete de unhas, de vidros triturados misturados à fome azul.
Tudo que ela fazia ou conseguia fazer era jogar-se sob o chuveiro, vestida como estava, para aplacar um calorão que viva a consumia.
Uma, duas, três, quatro, mil vezes ele a deixou. Sem explicação. Ou com uma explicação implacável.
Uma duas três quatro mil vezes ela o deixou.
Sendo ela a explicação era a mesma:
– Quero viver minha vida.
E ela realmente queria, queria também outros homens, embora quando com eles, era nele em quem pensava, era dele que sentia falta.
Então chegou o dia. Quando a palavra dele pareceu ser a última. Quando ele pouco realmente parecia importar-se.
Ela saiu sozinha. Esteve em todos os lugares que alguém como ela poderia estar. Como ele.
Ela bebeu e sorriu e trocou palavras e se fez de bonita e não se fez de rogada e jogou o longo cabelo para lá e para cá e arregaçou a boca pintada de batom e mostrou os dentes e passou a língua pelo céu da boca com força e deu de ombros. E procurou-o.
Ela passou a noite procurando-o. E na medida em que não o encontrava ficava cada vez menos risonha, menos bêbada, mais apreensiva.
Em todos os bares onde eles costumavam ir, foi.
Correu a cidade de cima abaixo, de norte a sul. De sul a norte. Das duas uma: ou ele estava em casa dormindo ou boa coisa não estava fazendo.
Quando a primeira embriaguez sumiu, ela voltou a beber, tanto até tornar-se romântica. E, sendo romântica, caiu na ingenuidade dos tolos, um poço raso e escuro onde boiavam outras mulheres como ela. Tinha um bocado de gente conhecida ali. Algumas ainda tentavam escalar a parede arredondada e lisa. Outras jaziam, de bruços, de costas. Aquela ali tinha já o corpo inchado e olheiras roxas.
Comprou uma garrafa de vinho, teve o cuidado de pegar o saca-rolha em casa, retocou o batom, deu uma ajeitada nos cabelos, voltou a arrumá-los melhor, olhou-se no espelho, reconheceu o orgulho, não viu nenhuma sombra de indecisão. Sem ela foi até a casa dele. Do outro lado da cidade.
A manhã se anunciava em nuvens frias e coloridas.
Os pardais já preparavam bico e briga.
Ela tocou a campainha.
Lá dentro da casa silenciosa a caixinha branco-gelo fez:
– Dííín, Dôôôn.
Viu o carro estacionado na garagem. Insistiu.
Quando ele saiu, ela ainda teve dúvidas. Ele sabia disfarçar.
Ele foi frio, sério, fingiu sono. Até que soube disfarçar bem.
Ela quase caiu na sua conversa encenada. Mas, não, não. Não ela: ela sabia. Ela farejou. No ar.
– Tem alguém aí?
Ele respondeu que não. Ele sabia fingir muito, muito bem.
Ela não precisou pôr-se nas pontas dos pés e tremelicar as narinas como um animalzinho assustado.
– Posso entrar?
Ele hesitou, não gaguejou, apenas balançou o corpo sutilmente para um lado e para o outro. O filho da mãe jogava muito bem.
Ela não esperou mais, afastou-o do seu caminho e foi entrando como se seus pés pisassem em brasas. Atravessou terraço, hall, sala, não percebeu nada estranho, continuou pelo corredor, as pernas cada vez mais pesadas, desejou que não tivesse fim, o corredor que parecia mesmo infinito, desejou, ardeu, rogou aos céus que nunca chegasse ao quarto iluminado.
Mas ela chegou ao quarto iluminado.
Primeiro viu os pés. Tudo dobrado, pés, pernas, coxas, bunda. Ainda teve tempo de sentir uma inveja saudável, ela tinha de reconhecer, quase dava os parabéns à moça, era preciso ser justa na vida.
De algum ponto minúsculo do estômago partiu uma fagulha que foi subindo pelas paredes das vísceras, primeiro num fogaréu intenso, depois numa erupção de lava viva. Dizer que isso lhe queimou os olhos seria redundante.
Por isso não lembra como voltou sobre os próprios passos, como se tivesse deixado pegadas visíveis sobre o piso, não lembra nem como passou por ele.
Lembra apenas da garrafa de vinho quebrada na calçada, da mancha escura derramada que bem poderia ser sangue, mas que não era sangue.
Isso antes de implorar ao safado que deixasse a moça da bunda saudável ir embora e ficasse com ela. Só com ela.
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