“Ela tava chorando, daí eu peguei uma conchinha pra ela parar de chorar.” – E não é que “ela” parou mesmo de chorar, e toda contente veio me mostrar a concha, ainda fechada sob o calor do sol e a placidez do mar?
“Ela” é minha filha, sexto ano sobre a Terra. E quem me comunica a boa ação é Samantha, uns 11, ou 12 anos, imagino.
Samantha – quem eu nunca vi, que veio à praia com o pai, a mãe e uma bicicleta – tem o rosto de menina, o corpo de menina e as atitudes que as meninas de uma época tinham e nem sei se a maioria ainda preserva: aquela jeito calmo de quem deseja ter apenas a idade que realmente tem, e não a idade precoce que a mídia cheia de tchans e créus insiste em imiscuir na cabeça e no corpo das infantes.
Até no nome, Samantha foge do lugar comum – não lembro de nenhuma atriz ou candidata à, ou nenhum personagem de novela com este batismo, ao menos nos últimos anos. Mais me evoca “A feiticeira”, seriado anos 60 ou 70. Samantha, a feiticeira de nariz arrebitado, era casada com um publicitário americano e mãe de Tabatha.
Samantha, a menina na praia, também faz suas mágicas, mergulha e colhe estrelas, revelando os desenhos escondidos na circunferência de seus corpos: “Tem forma de flor”. E sorri, como se a frase fosse banal e não um exercício de poesia. E se deixa molhar os cabelos e escorrer o mar salgado em seu rostinho ainda infantil e inteligente.
Mergulha, colhe estrelas e conchas e adverte sobre alguns bichinhos do mar: “Não coloca na boca, não, que pode ser venenoso.” Imagino que não tenha irmãos menores, mas os deseje. Imagino que goste dos pequenos, por isso, pela solidão tranqüila em que vive, como filha única de um casal ainda jovem. Imagino que goste de ensinar aos menores o pouco que já aprendeu na sua curta e breve vida, de 11, 12 anos. Imagino que não seja uma daquelas meninas, particularmente ricas e cheias de vontades e brinquedos que não cabem mais nas estantes decoradas. Imagino que não tenha TV a cabo e, talvez, não estude em escola particular. Imagino que seja uma boa filha – e que seus pais sejam bons pais. Simplesmente.
Tudo, enfim, tão longe e tão perto do noticiário, com suas celebridades, seus escândalos, seus mistérios e segredos, suas negociatas interesseiras, seus anúncios de uma vida plena e satisfeita no novo condomínio de nome pomposo e quase sempre estrangeiro, de “localização privilegiada”, de “arquitetura diferenciada” e “acabamento de alto padrão” (e, tudo, ilustrado pela clássica foto do casal e um ou dois filhos, saboreando os momentos de lazer, na piscina vistosa, no “espaço fitness” e naquele “gourmet”, no “street ball” e no “kids club”, que nem imagino o que realmente possam ser).
Olho Samantha e seus pais afastando-se ao longe, na faixa larga de areia que a maré baixa deixou e o domingo de sol não conseguiu lotar: não acho que nenhuma agência de publicidade os contratasse para os anúncios de página inteira que prometem que “viver bem é uma arte”. Não, não. Não têm os estereótipos de quem vive “bem” ou que faça de sua vida o que se convencionou chamar “arte” – aqui, numa confusão de falsos entendimentos com “glamour”, “fashion” e outros termos da moda.
Não. É apenas um casal e sua filha, que vieram para praia, tomaram banho de sol e mar, e, ao final, pegaram a velha bicicleta e voltaram pro arroz e feijão também dominical. No meio tempo, a menina viu outra menina chorar, mergulhou, e, num passe de mágica afastou as lágrimas e iluminou o domingo. Simples assim.
Um comentário:
Simplesmente lindo, isso aqui. S.
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