[Um cão andaluz: Buñuel]
Recordamos um olhar talvez melhor que uma palavra, porque não há em todo o vocabulário nenhuma que saiba desnudar uma mulher.
[Italo Svevo, A consciência de Zeno, São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003]
É um enigma como irmãos se distanciam quando
adultos. Não são as palavras que separam, mas o que deixamos em seu lugar. Uma
incompreensão que nunca é tirada a limpo e fica como verdade. As desavenças na
maturidade não são maiores do que as da infância. Brigávamos com igual
intensidade. O que mudou é que não moramos juntos para reatar. Se estivéssemos
dormindo no mesmo quarto, faríamos as pazes uma hora qualquer e pediríamos
desculpas. O medo de perder a companhia de brincadeira superava o orgulho.
Rodrigo, dois anos mais velho do que eu, mora em Porto Alegre. Não conheci seu
apartamento, apesar de um ano de sua mudança. Quem nos reúne é a mãe por tabela.
Vou visitá-la e ele passa por lá. É visível que não temos paciência um com o
outro. Partilhamos uma irritação ansiosa, sem capacidade para formular a frase
certa e conciliadora. A frase que poria todas as diferenças de lado. Deve
existir uma frase, mas não insistimos com os sons. Não cedemos tempo, logo
trocamos de assunto e os parentes entram na sala e dispersamos a direção da
conversa. Rodrigo tem gostos muito parecidos, é poeta, compõe e adora dançar
desgovernado, jurando que encontrou o ritmo da música. Na adolescência,
somávamos as mesadas para colecionar LPs. Eu era a esponja dele: tudo o que ele
ouvia tomava como meu. Rodava no recreio da escola como seu Lado B. Durante
tardes inteiras, explorávamos raridades nas lojas debaixo do viaduto da Borges.
Foi ele que me inspirou a ler poesia ao emprestar o livro "Uma estadia no
inferno", de Rimbaud. Na manhã seguinte à leitura, desabafei: "não entendi
nada". Ele me tranqüilizou: "É isso mesmo. Amanhã não vai também entender nada
até viver algo do livro, uma única imagem, e ele se abrirá". Foi o que
aconteceu. O guri sempre me interpretava. Participava de uma banda e me
carregava aos ensaios e apresentações noturnas. Segredava aos ouvidos que aquela
menina poderia ser interessante. Levava um puta fora. Não me permitia chorar,
recapitulava com paciência meus erros e me empurrava para que insistisse. "Ela
já sabe que é um chato, portanto seja chato, é o que tu 'faz' melhor". Filosofia
engraçada, que rendia paixões esquisitas. Às vezes, não sobrevivia. Ele batia
nos ombros e consolava: "Não há gafe que não vire uma grande história depois
para rir". Parti para vários acampamentos com seus amigos nas praias de Santa
Catarina. As primeiras noites em que dormi longe da família. Virei o caçula da
turma. Aprendi a montar barraca, a passar fome para gastar em bebida, a filar
cigarro, a pedir carona e confiar na generosidade de estranhos. Tomei porres
homéricos e ele me cuidando: - Vai passar, agüenta firme. Descobri o quanto
detesto escalar morros, que ele adorava. Três horas de caminhada para aproveitar
cinco minutos no topo e iniciar o regresso. Atuava como sindicalista dos irmãos
no momento de garantir os nossos direitos. Fazia o papel de segundo pai e se
ferrou. De interino terminou como figura masculina permanente, porque o pai
realmente saiu de casa. Abafou o divórcio com seu jeito prático de resolver os
problemas e assumir os desaforos. Fruta que amadureceu no chão, empurrado para a
responsabilidade cedo demais. Era um enigma como irmãos se distanciam até que vi
Rodrigo carregar meu filho Vicente no colo. O filhote sofria de cócegas nos
olhos. Tomaram um livro de dinossauros da estante e Rodrigo explicou a evolução.
Árvores convertidas em pedras, ossos reconstituídos de um punhado de pó. Eles se
confiavam. Confiar é melhor do que compreender. Eu me lembrei do que fui e do
que ele foi. Seu rosto de longa testa. Os exatos quatro vincos antecedendo os
cabelos. O menino sábio, colecionador de moedas e estudioso das antigas
civilizações. O menino rabugento com alguma injustiça. O menino que não aceitava
que os mais velhos zoassem de mim. O menino que andava de mãos dadas comigo para
atravessar a praia e a rua. Eu me lembrei de nosso contentamento telepático. Do
cheiro de nescau de nossa merendeira e de nossos uniformes suados. "Vamos
brincar" é a frase certa que largamos no pátio. A frase que dissiparia dúvidas e
rancores e nos encheria de fôlego e expectativa. Correr era se abraçar.
Esquecemos de brincar. Esquecemos a pressa dos apelidos. Quando ele me chamava
de Bito e eu o chamava simplesmente de Igo. Esquecemos que somos crianças
atrapalhadas. Antes o mundo era um inimigo comum e reservávamos nossas forças
secretas para nos proteger. Somos atualmente nossos inimigos, inimigos porque
crescemos carregados de razões. Cada um com suas razões. Mas, mano amado, ainda
assim não podemos parar de nos proteger.