terça-feira, 29 de janeiro de 2008

REFLEXO II


[Um cão andaluz: Buñuel]


Recordamos um olhar talvez melhor que uma palavra, porque não há em todo o vocabulário nenhuma que saiba desnudar uma mulher.


[Italo Svevo, A consciência de Zeno, São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003]

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

REFLEXO


[Man Ray, Tears]

ENTRE A CEGUEIRA E A LUCIDEZ ME PERGUNTO SE ESSE OLHAR QUE MEUS OLHOS VÊEM É MESMO OLHAR OU SÃO APENAS SEUS OLHOS SE PERGUNTANDO O PORQUÊ DO MEU OLHAR MERGULHANDO SEM PEDIR LICENÇA NA VASTIDÃO DO SEU.

sábado, 26 de janeiro de 2008

solidão de sábado





Eu como, eu bebo, eu fumo.
Eu converso.
Eu trago, eu belisco, eu mastigo.
Eu olho ao redor.
Eu arrasto a língua nos dentes, eu estico as costas, eu estendo braço e antebraço no parapeito da janela.
Eu olho pro fundo do copo.
Eu como novamente, eu bebo novamente, eu fumo mais um cigarro.
Eu ouço.
Eu estiro os músculos do pescoço, eu sorrio, eu fico triste.
Eu lembro.
Eu peço mais uma cerveja, eu peço mais outra cerveja, eu peço ainda mais outra cerveja.
Eu olhos pras paredes.
Eu vejo as moças chegarem, eu ouço as moças falarem, eu enxergo o riso das moças no escuro.
Eu sinto um peso nos ombros.
Eu converso sobre cinema, eu converso sobre ex-amores, eu calo sobre futuros.
Eu vou-me.

II

Não pra Pasárgada.
Pro shopping.
Eu compro-me. Eu pago-me. Eu levo-me.
Eu, não: nós – Saramago, Bolaño, Austen.
Tá bom assim: alfabeto invertido.
Numa sacola de plástico.

III

O apartamento continua vazio. E eu entrei. Comigo, adentrou a solidão do sábado-noite. Instalou-se no sofá, ligou a TV, acendeu o computador, olhou a noite lá fora, fechou os olhos à noite cá dentro.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

estação



De ti, fujo, como a primavera do inclemente verão.

Descanso meus olhos do incêndio bruxo dos seus. Enrolo nuvens de farpas na junção lisa do seu colo. Anilho silêncios lá, ali, bem ali onde pulsa sublime su’alma cardiopata.

É uma luta desigual entre cílios. Eles me arrastam, me combatem, me viciam. Me ponho de lado, descortino os arcos alvos que sustentam sua voz. Uma a uma despojam-se de escamas o seu discurso. Desfolham-se de pétalas e de munição as palavras agora nuas.

Percorro os panos que tecem seu corpo e o escondem de mim e o apresentam a mim embora seja eu o que deve ser imolado. Dou de cara com os pés envolto em sandálias como as de Camila López. Os calcanhares como o de Aquiles e Gardner. Fico com o osso tremelicante de um Nabokov ancião.

Quero uma flecha, um arco! Não encontro.

É um labirinto sem ângulos a vizinhança que nossos corpos se batem. Uma estrada sinuosa nosso gaguejar de mãos e braços que avançam e recuam, mais que no espaço, no tempo.

Arena sem vencedores.

Atrás de si, correm minhas palavras.

Como cachorrinhos sôfregos.

Na outra direção, meu corpo exangue.

Passarão séculos sem que a beije, sem que me beije.

Passarão séculos sem que meus lábios umedeçam os seus, sua língua naufrague em minha.

Já passam séculos nesse breve instante em que fujo de si sem perceber que é a sua sombra que de mim desgarra.

E me expõe a um sol novamente inverno.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Os amigos do meu irmão são meus amigos também



Ser caçula é padecer no Paraíso.

A gente é mimado, adulado, passam a mão na nossa cabeça, mas ninguém nos chama pra sair.

Dois anos me separam do meu irmão mais próximo.

Na infância, pouco, ou quase nada: as camas restavam a poucos passos, as roupas mudavam apenas de cor ou desenho.

O dia em que o cordão fraternal foi rompido foi de dor: eu vinha do centro da cidade pela rua Açu e vi, na calçada oposta, meu irmão com uma nova turma – ironicamente era a turma de um bloco de carnaval chamado Jardim de Infância. Talvez tenha sido no mesmo ano em que ele chegou na hora do almoço, jogou de lado a bolsa colegial pra lá de puída, as alças escangalhadas, um quase arremedo punk e dirigiu-se vigoroso aos meus pais: Sou um pré-adolescente, disse.

Eu, calado, assustado, pensei: Que será isso? – e, seja o que for, não é ainda pra mim.

Aquele carnaval foi nossa primeira ruptura – amigável, mas ruptura, e, sendo assim, traumática. Pela primeira vez eu fiquei só, no carro, com meus pais, observando o trator, as carrocerias enfeitadas, os macacões coloridos.

Mas, bom mesmo foi quando ele fez o pré. Pra quem não sabe, fazer o pré significa cursar o pré-universitário, último ano do colégio. Os amigos iam estudar lá em casa, antes da aula que começava às 5 da tarde. Eu peruava pra lá e pra cá, enquanto não me mandavam embora. Até que um deles, que tinha a maior coleção de vinis que eu conhecia, começou a me emprestar: Jethro Tull, Crosby, Still, Nash & Young, Alan Parsons Project, Yes, Pink Floyd, Emerson, Lake & Palmer e um Andrew Lloyd Webber que nunca mais vi.

Na universidade eram dois, os amigos mais inseparáveis. Dele.

E quando meu irmão arrumou uma namorada, ficando eles órfãos, fui adotado.

Às vezes num fusquinha branco, às vezes num escort vermelho, eu adentrei cada vez mais intensamente no mundo light da tríade sex, drugs, rock’n’roll. Talvez foi a forma que ele encontrou para, nem me privar do que podia ser bom, nem ser irresponsável de me levar pela mão por territórios que eu naturalmente deveria desbravar sozinho.

Um dia a viagem acabou, desembarcamos todos, outras viagens tiveram início.
Mas quando a gente se reencontra – eu ainda sendo chamado como um caçula da turma – eu percebo que aquela estação continua viva, sem sombra de saudosismo desenfreado, apenas a certeza de que as verdadeiras amizades duram pra sempre.

É como um disco de vinil: às vezes só falta onde tocá-lo.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

aguazúl

[Guido Crepax]


De Turim me chega email da poeta Marinella Grosa. Conta que estava com um amigo arquiteto, os dois diante do computador, os dois diante do Google earth. Ela pede para ele digitar as cinco letras: n-a-t-a-l. Surge na tela casas baixas, jardins, piscinas. É a Cidade dos Reis Magos – um outro mundo, segundo Marinella, que me envia versos, que traduzirei assim que me desvencilhar do labirinto das casas baixas, dos jardins, das piscinas, aguazúl.
Cenerentola

così mi adopro
a cogliere i segnali:
gli scricchiolii del legno
nello stipite della porta.
così respiro l'aria della nebbia
come fosse rugiada.
e intendo danzare fino all'alba
(si presentasse l'occasione).
so che non c'è tempo
ma so che ho solo il tempo
per compiere
la grande trasformazione.
Marinella Grosa

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Alpendre



É uma das palavras mais bonitas da língua.

Nem vou ao Houaiss: conspurcar o que sinto, em imagens que cruzam os anos como uma nave de velas estendidas, com o que o dicionário disseca, em corte cirúrgico preciso – mas estéril, seco, impreciso.

Deve de ter seguramente raiz árabe, como tudo que inicia com “AL” – alambique, alcachofra, alcaçuz.

E é bom iludir-me que uma mínima parte de nós tem a ver com deserto, com escorpiões, camelos, oásis, tâmaras. E com mulheres de olhos negros e mãos tatuadas, tatuando na nossa pele a mágica do amor.

Mal não há, sonhar que algo em nós lutou em Alcácer-Quibi.

E, como num mapa de estrelas unidas em linhas imaginárias, nos une, liga, alinha e enlinha, a um oriente ao oriente do oriente. E que passa pelas terras áridas de Espanha, areias quentes de Portugal. E que atravessa o Atlântico no movimento elísio dos barcos, e dispara mais uma vez rumo ao coração das trevas d’África.

E eu, que de alpendres carrego comigo, na bagagem torta dos anos, apenas aqueles à beira-mar, posso sonhar com os alpendres-irmãos, no sertão, nos Sertões. Parede-meia com o infinito.

Atravessa em mim o passo curto das reses, o chocalho alquebrado badalando horas e séculos – e pancada do mar, engolindo e regurgitando a si mesmo, o oceano que ilude-se céu, mar de sargaços, mar de estrelas, astrolábios, bússolas, latadas, redes de pescar.

Foi num desses alpendres que minha mãe embalou seus filhos, xô, xô, pavão, sai de cima do telhado – e eu, antes de conhecer o cordel e Ednardo, já pressentia os mysterios da ave e do paraíso.

Foi num alpendre que meu pai apontou o horizonte pra nós, seus filhos, no abraço seguro de quem ama e protege, indicando na mão, balé ondulante, o horizonte ignoto: ondas volumosas, tortuosas, tenebrosas... Mal sabia eu que o horizonte distante era o futuro, e que no dia que chegássemos lá já não mais contaríamos com a força do seu braço, escudo das dores do mundo.

Inverteram-se os papéis, o alpendre restou vazio. É hora de espantar os pavões dos telhados, momento de acalmar as ondas.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Ladies & gentlemen: Fabrício Carpinejar


Como todos vocês sabem fiquei muito tempo numa câmara frigorífica e mais outro tanto num ermo qualquer do Afganistão - deve ser por isso que quase não sei nada sobre Carpinejar (apesar do nome de escritor). Mas o texto do cara me pareceu bom e este especialmente (cujo título é Sou a civilização antiga do meu irmão). Alguém me enviou e eu remeto procês - pra ler no original, clique aqui.

É um enigma como irmãos se distanciam quando
adultos. Não são as palavras que separam, mas o que deixamos em seu lugar. Uma
incompreensão que nunca é tirada a limpo e fica como verdade. As desavenças na
maturidade não são maiores do que as da infância. Brigávamos com igual
intensidade. O que mudou é que não moramos juntos para reatar. Se estivéssemos
dormindo no mesmo quarto, faríamos as pazes uma hora qualquer e pediríamos
desculpas. O medo de perder a companhia de brincadeira superava o orgulho.
Rodrigo, dois anos mais velho do que eu, mora em Porto Alegre. Não conheci seu
apartamento, apesar de um ano de sua mudança. Quem nos reúne é a mãe por tabela.
Vou visitá-la e ele passa por lá. É visível que não temos paciência um com o
outro. Partilhamos uma irritação ansiosa, sem capacidade para formular a frase
certa e conciliadora. A frase que poria todas as diferenças de lado. Deve
existir uma frase, mas não insistimos com os sons. Não cedemos tempo, logo
trocamos de assunto e os parentes entram na sala e dispersamos a direção da
conversa. Rodrigo tem gostos muito parecidos, é poeta, compõe e adora dançar
desgovernado, jurando que encontrou o ritmo da música. Na adolescência,
somávamos as mesadas para colecionar LPs. Eu era a esponja dele: tudo o que ele
ouvia tomava como meu. Rodava no recreio da escola como seu Lado B. Durante
tardes inteiras, explorávamos raridades nas lojas debaixo do viaduto da Borges.
Foi ele que me inspirou a ler poesia ao emprestar o livro "Uma estadia no
inferno", de Rimbaud. Na manhã seguinte à leitura, desabafei: "não entendi
nada". Ele me tranqüilizou: "É isso mesmo. Amanhã não vai também entender nada
até viver algo do livro, uma única imagem, e ele se abrirá". Foi o que
aconteceu. O guri sempre me interpretava. Participava de uma banda e me
carregava aos ensaios e apresentações noturnas. Segredava aos ouvidos que aquela
menina poderia ser interessante. Levava um puta fora. Não me permitia chorar,
recapitulava com paciência meus erros e me empurrava para que insistisse. "Ela
já sabe que é um chato, portanto seja chato, é o que tu 'faz' melhor". Filosofia
engraçada, que rendia paixões esquisitas. Às vezes, não sobrevivia. Ele batia
nos ombros e consolava: "Não há gafe que não vire uma grande história depois
para rir". Parti para vários acampamentos com seus amigos nas praias de Santa
Catarina. As primeiras noites em que dormi longe da família. Virei o caçula da
turma. Aprendi a montar barraca, a passar fome para gastar em bebida, a filar
cigarro, a pedir carona e confiar na generosidade de estranhos. Tomei porres
homéricos e ele me cuidando: - Vai passar, agüenta firme. Descobri o quanto
detesto escalar morros, que ele adorava. Três horas de caminhada para aproveitar
cinco minutos no topo e iniciar o regresso. Atuava como sindicalista dos irmãos
no momento de garantir os nossos direitos. Fazia o papel de segundo pai e se
ferrou. De interino terminou como figura masculina permanente, porque o pai
realmente saiu de casa. Abafou o divórcio com seu jeito prático de resolver os
problemas e assumir os desaforos. Fruta que amadureceu no chão, empurrado para a
responsabilidade cedo demais. Era um enigma como irmãos se distanciam até que vi
Rodrigo carregar meu filho Vicente no colo. O filhote sofria de cócegas nos
olhos. Tomaram um livro de dinossauros da estante e Rodrigo explicou a evolução.
Árvores convertidas em pedras, ossos reconstituídos de um punhado de pó. Eles se
confiavam. Confiar é melhor do que compreender. Eu me lembrei do que fui e do
que ele foi. Seu rosto de longa testa. Os exatos quatro vincos antecedendo os
cabelos. O menino sábio, colecionador de moedas e estudioso das antigas
civilizações. O menino rabugento com alguma injustiça. O menino que não aceitava
que os mais velhos zoassem de mim. O menino que andava de mãos dadas comigo para
atravessar a praia e a rua. Eu me lembrei de nosso contentamento telepático. Do
cheiro de nescau de nossa merendeira e de nossos uniformes suados. "Vamos
brincar" é a frase certa que largamos no pátio. A frase que dissiparia dúvidas e
rancores e nos encheria de fôlego e expectativa. Correr era se abraçar.
Esquecemos de brincar. Esquecemos a pressa dos apelidos. Quando ele me chamava
de Bito e eu o chamava simplesmente de Igo. Esquecemos que somos crianças
atrapalhadas. Antes o mundo era um inimigo comum e reservávamos nossas forças
secretas para nos proteger. Somos atualmente nossos inimigos, inimigos porque
crescemos carregados de razões. Cada um com suas razões. Mas, mano amado, ainda
assim não podemos parar de nos proteger.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Timeline


A primeira vez que eu li John Fante.
A primeira vez que eu vi O piano.
A primeira vez que eu li Paul Bowles.
A primeira vez que eu vi Era uma vez na América.
A primeira vez que eu li Julio Cortázar.
A primeira vez que eu vi Os vivos e os mortos.
A primeira vez que eu li Jorge Mautner.
A primeira vez que eu vi Cria cuervos.
A primeira vez que eu li Raduan Nassar.
A primeira vez que eu vi Limite.

A primeira vez que eu ouvi The Köln Concert.

A segunda vez que eu vi O piano.
A segunda vez que eu li Paul Bowles.
A segunda vez que eu vi Era uma vez na América.
A segunda vez que eu li Julio Cortázar.
A segunda vez que eu li Raduan Nassar.

A segunda vez que eu ouvi The Köln Concert.

A terceira vez que eu vi Era uma vez na América.
A terceira vez que eu li Julio Cortázar.

A terceira vez que eu ouvi The Köln Concert.

A oitava vez que eu vi Era uma vez na América.
A oitava vez que eu li Julio Cortázar.

A oitava vez que eu ouvi The Köln Concert.

A décima-terceira vez que eu vi Era uma vez na América.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

2008 começa assim




Andei sumido destas paragens.

Propositadamente.

Sem forças, cansado.

Esta Cidade dos Reis é prazer, menina dos olhos, ninfa, sereia, musa, mito.

Não dava pra misturar alhos com trabalhos, bugalhos com lazer, amor e dor.

Uma puta não beija cliente na boca. Só seu amor, amorzinho.

Ligo um rádio na minha cabeça, no meu caixote, como diz minha filha aos seis anos, sem cansaço. Itamar canta, Estou doente do peito, doente do coração, a minha cama já virou leito, disseram que eu perdi a razão.

Acendo um cigarro, o estômago faz ssschhhhhh, como o sol de bruços n’água.

Sintonizo o pretobrás: Estou maluco da idéia, guiando o carro na contramão. Saí do palco fui pra platéia.

No porão. Um pedaço de mim ficou lá, emparedado como o gato de Poe.

Debaixo do assoalho, debaixo das tábuas do assoalho, como o coração prestes a denunciar o vazio, o som, a fúria.

Andei circulando pelo Hospital. O Reino. Confundo os títulos de Duras, O homem sentado no corredor, A doença da morte.

Não é uma coisa nem outra. Me enfastio dessa intelectualidade, dessa poesia, desse romantismo sabor limão e frutas do bosque.

Não existe corredor sombrio, fantasmas despregando-se como papel nas paredes. Existe luz e fluorescência, débito mensal à companhia de força e luz.

Não existe doença que leve à morte. Ela esteve sempre ali, ao nosso lado, brincando entorno de nós, fitas e laços coloridos nas mãos, os braços batendo asas de borboleta.

Não sou eu naquele leito de hospital.

Sou eu.