segunda-feira, 16 de março de 2009

Endereços


[Publicado na página-coluna de Cultura neste 160309, segunda, JH 1a edição e, por extensão no http://www.embrulhandopeixe.blogspot.com/]





Houve um tempo em que morei numa fazenda.


Houve um tempo em que morei à beira-mar.


Houve um tempo em que morei vizinho a uma fábrica abandonada.


Houve um tempo em que morei bem próximo a uma estação de trem.


Na fazenda havia cães, gatos, vacas, cavalos.


À beira-mar havia peixes. Conchas. Estrelas-do-mar.


Na fábrica não havia nada, abandonada e fechada que estava.


Na estação chegavam trens, e dela partiam trens.


Os trilhos se cruzavam aqui e ali e quanto mais próximos do prédio principal estavam, mais se multiplicavam. Quanto mais se afastavam, mais diminuíam em número e ilusão geométrica, até que só restavam dois.


O pátio da fábrica restava vazio a qualquer hora do dia. Das enormes portas esperávamos que uma multidão, uma turma, alguém, entrasse ou saísse. Mas ninguém entrava. Ou saía.


Além dos peixes e das conchas e das estrelas-do-mar, na praia havia gente, crianças brincando. Quando a maré era alta, as pessoas se concentravam, os pés batidos pelas ondas. Quando baixa a maré, a gente se dispersava na faixa larga de areia úmida, como formigas e migalhas num tapete líquido.


Muitos caminhos levavam à fazenda. Algumas veredas. Terra batida e pó de estrada. Vez ou outra o silêncio era quebrado pelo motor de um caminhão, a boléia sacudindo rumores metálicos.


Um dia, a gata mais peluda correu atrás de um rato grande: era um timbu.


Um dia veio dar à praia uma lata de detefon, com escritas japonesas.


Um dia, na fábrica abandonada, nada aconteceu, como em qualquer dia.


Um dia eu me despedi de alguém na estação de trens e foi uma dor tão grande e insuportável que me acompanhou até a última estação, duas horas depois. Tão grande e insuportável que nem sei dizer.


Houve um tempo em que morei numa casa com jardim nos fundos.


Houve um tempo em que morei numa casa com jardim no alto.


Houve um tempo em que morei numa casa com jardim por todos os lados. E um quintal nos fundos.


Houve um tempo em que morei numa casa sem jardim algum.


No jardim dos fundos, na parede do canto, estavam duas velhas bicicletas, do tempo da guerra. Uma, modelo masculino. A outra, modelo feminino.


Ainda me lembro do meu cão de raça, preto e pelo curto, saltando os dois níveis do jardim, na casa com jardim por todos os lados.


Não me lembro de nada que possa ser associado a plantas, animais, ou bicicletas, na casa sem jardim algum. Minto: havia uma praça em frente, e ainda posso vê-la buscando o equilíbrio sobre as duas rodinhas, os dentes da frente perdidos. Mas posso estar inventando, esta memória que é ficção.


Houve um tempo em que morei numa casa com mais cinco pessoas. Até que elas foram sumindo, uma a uma. Até restarem somente duas.


Houve um tempo em que morei numa casa com mais duas pessoas. Uma delas se dividiu numa terceira e então éramos quatro.


Houve um tempo em que morei numa casa com mais uma pessoa. A outra, que não era eu, se dividiu numa segunda pessoinha e então éramos três.


Houve também um tempo em que morei num apartamento com mais quatro pessoas. Eu era a quinta, o último a chegar, o visitante. O meu quarto era pequeno e na parede colei um pôster de Roberto Benigni abraçando e beijando furiosamente Nicoletta Braschi.


Houve um tempo em que comíamos numa mesa com as extremidades abobadadas.


Houve um tempo em que comíamos numa mesa reta.


Houve um tempo em que comíamos numa minúscula mesa próxima à janela.


Houve um tempo em que comíamos numa mesa de vidro, sempre marcada de pó.


Quando uma das vacas pariu lhe deram à filha o nome de Caçula.


Quando eu ficava a sós, na casa do alto, próxima ao céu, eu gostava de cuidar das plantas nos vasos. Eu me preocupava se sentiam frio. Mais que o calor, era o frio que me angustiava os olhos, refletindo folhas, raízes, adubo.


Quando eu voltei para uma das casas, muitos anos depois, não encontrei mais meu quarto de dormir.


Quando entramos no apartamento abandonado, encontramos um mural retratando a Praça Vermelha de Moscou numa das paredes. Permanecemos juntos, por algum tempo, olhando o mural. Depois, o cobrimos de tinta branca, e ele desapareceu.


Houve um tempo também que eu já não sabia onde morava. Nem com quem morava. Até que me descobri só. Eu poderia acrescentar um “tristemente só”, mas não estaria contando tudo. Eu poderia acrescentar um “felizmente só”, mas estaria mentindo também.



7 comentários:

Mme. S. disse...

lindo demais esse texto. e essas voltas e voltas do tempo e a descoberta da solidão, solitude, sem tristeza ou alegria, me deixam assim, assim, sei lá. concordando acho, principalmente. boa semana, querido.

Anônimo disse...

Um de seus melhores texto, Mário.

Anônimo disse...

encontrei seu blog ao acaso. gostei do texto.
moramos aqui, ali, acolá. mudamos de paisagem, amores, trabalho. na estação de trem, encontros e partidas, alguma doloridas, outras de alívio.
quando li o seu texto, lembrei de um "outro" que nos acompanha, mas jamais se funde, e sempre deixa um espaço enorme de solidão...

midc disse...

volte sempre, maria - os acasos são importantes.

Anônimo disse...

obrigada.muita inspiração pra ti e textos assim para todos nós.voltarei.

Anônimo disse...

sempre bom ler você. lá e aqui.

Anônimo disse...

Imposssível nao registrar a cronica do JH de hoje. Excelente. Depois de "Eu me remexo muito...", é a campeã. Só não esquecer que vc pode ser interpretado como o cara que paga 200 para as coleguinhas nao embolsarem 20. Valeu.