Eu juro que esperava mais.
Um vento, vendaval, um terremoto, um maremoto, uma revolução.
Telefones congestionados, trânsito caótico, os pais buscando desesperados os filhos mais cedo nas escolas, a cúpula do governo reunida em palácio, a PM e o exército acionados, assessores se descabelando, garçons servindo, pressurosos, jarras e mais jarras de maracujina.
Eu esperava ver o povo polindo as lâminas de centenas de guilhotinas nos quatro cantos da cidade, e, no interior, retirando do punho das redes as cordas para enforcar os poderosos de sempre, os suspeitos de sempre, como em Casablanca – e junto com eles a corrupção, velha senhora pairando sob os céus luminosos do Ryo Grande, com seus dias contados.
Eu juro. Eu esperava mais. Blecaute. TVs fora do ar. Barricadas nas portas dos jornais. Celulares fervendo. Carros freando bruscamente nas portas das livrarias e nas cigarreiras. E homens de preto, óculos escuros e queixo quadrado abrindo porta-malas e apreendendo a primeira edição de um livro de 346 páginas com subversivo título.
Eu esperava que o 27 de fevereiro fosse o nosso 11 de setembro. Que a Manhattan de “Cloverfield” migrasse das telas para a Afonso Pena, nossa Manhattan local.
Desilusão, meu bem.
Me sentindo o próprio coelho de Alice, desembarco, sol posto, na banca de Tota – marco zero do Plano Palumbo, como entoam os cronistas da cidade. Corro os olhos pelas prateleiras e sem dificuldade encontro a mina atômica, com suposto potencial para derrubar governos e mudar o curso da história política do Erre-Ene. A distribuição tinha começado na calada da noite anterior. Pergunto quantos ainda tem em estoque. Cinco, me diz o balconista. Quantos vieram. Cinco, repete a primeira resposta.
Sem nada a fazer, pago os 40 reais pelo livro e vou pra Pasárgada, onde não sou amigo de ninguém. Ler meu livrinho sossegado. O faço, de uma tirada só, na noite calma e serena, céu descoberto, estrelas brilhando, e o mar, ali bem perto, marulhando, marulhando.
Descubro que “Alças de agave”, o livro prometido de François Silvestre não revela muito mais do que já se sabia. Sobre o folioduto – que eu prefiro como foliaduto. François nomeia algumas reses, mas omite também alguns nomes do rebanho. O saldo, embora positivo, termina enfraquecido por essas ausências. Ao pisar em ovos, naturalmente quebra alguns. E mostra-se, ao longo das três centenas e meia de páginas, tão desiludido quanto enganado. Enganado pela governadora Wilma de Faria, pelos assessores diretos – alguns deles amigos pessoais –, mas enganado, principalmente, por ele mesmo, caçador de abelhas, criador de preás, servidor de pato na bandeja político-eleitoral. “O pato é um dos poucos animais que anda, corre, nada e voa”, escreveu, relembrando a campanha que levou Dona Wilma ao governo.
Pois, à frente da Fundação Zé Augusto, François andou, correu, nadou e avoou. Foi derrubado em pleno vôo, pretensamente livre das burocracias que rejeita, mas acorrentado nas armadilhas de um governo que, à imagem da governadora, “não gosta de cultura”, mas de “cultura de festejo e diversão, que é o lado secundário da cultura”. E refém do wilmismo, mais afeito à “sabujice” e à “bajulação” que ao trabalho profissional e desinteressado.
Derrubado mas não abatido, o pato escapou da panela e escreveu um livro. Que não provocou ventos nem tempestades etc. E que, apesar disso, já nasce como um clássico.
Daqui a meio século provavelmente vai ser o único registro em papel, a única versão sobre o atual governo, que, no andar da carruagem e ao dar as costas para a cultura, ignorando, entre outros, a literatura, termina apagando sua própria história. Sem deixar rastro.
Se o poder fosse honesto, franco, limpo, conviveria muito bem com a cultura.
François Silvestre
Alças de agave
VERSO
Calei também de tristeza
de cansaço e desencanto.
François Silvestre
“Arquivo”