segunda-feira, 31 de março de 2008

Levante de leopardos | Extractos




Ler não apenas deformou sua imaginação; seqüestrou-a.
[Susan Sontag DQ Questão de ênfase tradução de Rubens Figueiredo São Paulo: Companhia das Letras, 2005]


Ele não saíra do lugar, mas já não era o mesmo jumento. Pois entre as patas traseiras, ereto, pendia um membro enorme. Era mais rijo que o bastão com que o ameaçavam na noite anterior. Na fração de tempo em que eu lhe dera as costas, dera-se nele uma alteração assombrosa. Não sei o que ele viu, ouviu ou farejou. Não sei o que lhe passou pela cabeça. Mas aquela criatura miserável, velha e fraca, que mal se agüentava nas pernas e só servia para diálogos obstinados, mais enxovalhada que os outros jumentos de Marrakech, aquele ser que era menos do que nada, sem carnes, sem forças, quase sem pele, ainda guardava em si tanto desejo, que a mera visão daquilo me livrou da imagem de sua miséria. Penso nele com freqüência. Penso em quanto dele ainda estava ali quando eu já não via nada. Quisera que todos os flagelados preservassem o desejo em meio à miséria.
[Elias Canetti As vozes de Marrakech tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Cosac Naify, 2006]


Como sabê-lo inteiramente, e possuí-la sem nenhum vislumbre de memória, sem nenhuma intromissão dos seres que já havia amado e que provavelmente haviam lacerado sua alma com fundas marcas? E foi só a este sentimento de ciúme, total na sua força e na sua masculinidade, que eu compreendi que se achava definitivamente extinto o que em mim existia de infantil. Outro ser começava a se erguer no meu íntimo, agressivo, imperioso, cheio de fome e de sede de absoluto, como um animal que repontasse de selvas primitivas.
[Lúcio Cardoso Crônica da casa assassinada Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000]


Um temperamento meio nervoso, meio bilioso, assim é o mais favorável às evoluções de semelhante embriaguez; acrescentemos um espírito culto, habituado aos estudos da forma e da cor; um coração terno, fatigado pela infelicidade, mas ainda pronto para o rejuvenescimento; iremos, se ainda quiserem, até o ponto de admitir antigas culpas e, o que deve resultar em uma natureza facilmente excitável, senão remorsos positivos, ao menos o arrependimento do tempo profanado e mal-empregado.
[Charles Baudelaire Poema do haxixe tradução de Alexandre Ribondi Os paraísos artificiais O ópio e Poema do haxixe Porto Alegre: L&PM, 1986]


Somos, todos nós, guardados e engordados para a morte;
vara de porcos, nos trucidam sem razão.
[Paladas Poemas da antologia grega ou palatina tradução de José Paulo Paes São Paulo: Companhia das Letras, 1995]


E é uma grande coisa morrer em nossa própria cama, embora seja melhor ainda morrer de botas. Por maior que seja a gentileza e a eficiência, em toda morte em hospital haverá algum detalhe cruel e sórdido, algo talvez pequeno demais para ser contado, mas que deixa recordações terrivelmente dolorosas, que surgem da pressa, da aglomeração, da impessoalidade de um lugar em que todos os dias pessoas morrem entre estranhos.
[George Orwell Como morrem os pobre Dentro da baleia e outros ensaios tradução de José Antonio Arantes São Paulo: Companhia das Letras, 2005]


ou: levante de leopardos
fulvas miniaturas de furor
cada faísca despede uma
boca numinosa
[Haroldo de Campos aproximações ao topázio Signatia quase coelum São Paulo: Perspectiva, 1979]

terça-feira, 18 de março de 2008

Nunca mais




É depois de um tempo que começa a doer de verdade.

Não que antes não fosse dor.

Mas era dor de percurso lógico, de rumo certo, de rota controlada, de estágios mais ou menos definidos.

É depois de um tempo que tudo começa a embaralhar, em caos, em surpresa, em tocaia traiçoeira e covarde.

É depois de um tempo que – uma imagem: a pia por fazer, a louça por lavar, a cama por forrar, a casa por varrer, e, um dia inteiro por viver. Cinco imagens.

É depois de um tempo que começamos a nos perder na casa vazia, no vazio da casa, na solidão do fim-de-tarde. Cai a noite como um manto escuro e pesado. Cai a noite em conta-gotas: uma buzina leve, luzinhas que acendem, pára-raios parados, céu estático, céu sem nuvens, sem guias, sem estrelas, astros, constelações.

Cai a noite e o céu se tinge de um azul-escuro. Um motor ronca e se perde numa esquina qualquer. Gritos. Um cão que late. Sirene. Borracha de pneus mastigando pedras. A sirene continua, não se cansa. O cão ladra mais forte.

A casa se enche de vazio. De promessas não cumpridas. Não é preciso relógio para marcar as horas: envelhecemos a cada instante. E o que incomoda não são os cabelos que se encanecem, nem as rugas que se comprimem sobre o rosto outrora imberbe, nem os músculos que se flabelam ao sabor da gravidade.

Poderia deixar uma maçã no parapeito e assistir sua ruína. Os escombros das cores.

Não.

O que incomoda é a perda das palavras, a maceração das frases, a dislexia do tempo.

A perda da memória.

O que incomoda é a ausência. O reencontro para sempre adiado.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Carta ao poeta João Gualberto Aguiar [140308]






João, andei sumido, sei. Nunca mais voltei ao seu palácio mastodôntico às margens da BR-101, promessa de fuga e viagens ao Sol, Sul Maravilha.

Nunca mais deixei minhas sandálias na soleira da porta, para em sua casa entrar descalço como vim ao mundo, sem o pó deste na sola dos pés calçados.

Nunca mais me coloquei no centro da sala, meio de banda para colher seu olhar-sorriso enviesado de contentamento com a visita inesperada.

Por que sumi, João?

Não, não fui abduzido por nenhum disco voador, nem disco pirata, nem disco de prata, nem disco compacto. Nenhum mp3 me conquistou.

Não: tampouco naufraguei numa chalupa mambembe em costas d’África, devorado pelo Leviatã, tentando entrecruzar e decifrar as pistas enigmáticas deixadas nas migalhas de pão por Daniel Defoe e Arthur Rimbaud.

Se fui ao Juazeiro pagar promessa?

Não, João. A sombra do padre Cícero Romão Batista passou sobre minha cabeça numa procissão de nuvens esgarçadas. Nenhum sinal de chuva.

Então, foi um seqüestro-relâmpago, estroboscópico, psicodélico, que durou mais que devia, impedindo-me a visita?

Tsc-tsc. Tenho escapado imune e impune dessas pequenas violências que tecem nossas manhãs como uma vez as teciam os galos.

Tampouco me deram cargo em Palácio, de despachante do Poder.

Meu ofício continua o de matar as horas e enterrar os dias no ramerrame eterno que nos guia os passos e as contas a vencer.

Basta de perguntas prenhes de interrogações, João.

Sumi, porque, dias depois de ter subido ao seu apartamento levando embrulhado em papel prateado o livrinho do Nick Tosches, “A última casa de ópio”, entrei com o meu pai no hospital – do qual, quarenta dias depois, só um de nós saiu vivo.

E não tenho certeza se fui eu.

Eis o mistério da fé, João.

Em verdade, em verdade, vou falar procê: acho que quis poupá-lo de mais uma má notícia. A você, que de maus eventos a vida tem se revelado pródiga. Tantos você já perdeu, não é justo invadir sua cotidianidade com perdas alheias.

Parece uma desculpa, bem sei, e talvez seja, bem sei.

Talvez seja o medo de também perdê-lo, eu, que em breve convivência já vi João Gualberto, Gual, Jogal, perder-se em si mesmo e em seus múltiplos, um pouquinho a cada vez. Como se a vida jorrasse de si, prodigamente, como uma represa arfante, sem fôlego, incapaz de conter tanto volume, de sólidos, líquidos, gasosos; de tipos tipográficos; de anos de chumbo; de metal retorcido e ferrugem de prêmios e plumagem de pássaros; de teclas apagadas e ninhos de passarinhos.

De tanta bondade, João.

Essa mesma bondade que ainda há de matá-lo. Sem tocaia, olho no olho. Que o fere, aprisiona, devora, um pouquinho por dia, sol posto, sol nascente.

Tem também muito de covardia na raiz do meu sumiço. De covardia, de impotência, de desânimo. Por saber que você é apenas um a mais na legião de nomes que a esta cidade convêm mais mortos que vivos.

Pois, se aos primeiros lhes basta a efemeridade das celebrações fúlgidas, os segundos são só estorvo – sempre a reger com gestos invisíveis e inábeis o coro dos descontentes. Sempre atravancando o tráfego. Sempre destoando da mobília decorativa, insípida, inodora, anódina e asséptica. Sempre exigindo brioches ao posto do pão ázimo.

Sempre ameaçando o vômito à mesa do café-da-manhã. Sempre levando aos banquetes a companhia dos mendigos, sempre o colarinho sujo, os dentes desgastados, os dedos maquiados de nanquim, a barba por fazer, os cabelos desgrenhados ao vento, bandeira de uma liberdade incômoda.

Desculpe o lugar-comum, João, a escrita banal, mas a esta cidade lhe interessa mais os cifrões que as letras. As letras são um estorvo, ainda mais encarreiradas sobre o espelho embaçado ou no mármore polido do lavabo.

Os cifrões são redenção & religião.

E de nada vale lembrar que o dinheiro não se come. Como não? Estamos empanturrados, nos fartamos dia após dia em 30, 35, 300, 350 moedas de ouro. Esta é a Cidade dos Reis, João, la Ciudad de Los Reyes, dos historiadores d’antão, a perspectiva indefinida, de Cascudo.

E aos Reis não lhes é permitida a existência sem a vassalagem e tampouco sem a porção podre da corda – os mendigos. Aqui, mais que em qualquer outro lugar do mundo, a mendicância é a serventia da poesia.

E aos dragões da maldade interessam apenas a domesticação – da poesia e, por conseguinte, dos poetas. Como você. Seja Marginal, Seja Herói, é o dístico de sempre. Lembre-se do fraque esverdeado de Itajubá, de seu colete “entre lilás e vermelho, sua mania pelos pastoris, seus discursos nos circos de cavalinhos, seus poemas nas Rocas, na Rua da Lua, na travessa Paraense, no beco do caju, seu violão de folhas de flandres (para a chuva não descolar)”, como lembrou sua sombra, seu doppelgänger, Luís da Câmara.

Será verdade mesmo que “um homem com uma dor é muito mais elegante”?

Lembra quando você me contou sua experiência com LSD? Ninguém quis publicar que você escreveu a “Máquina de lavar poemas” após uma viagem de São Paulo ao Rio. O fornecedor lhe deu um “pingo londrino”, recomendou que partisse em quatro, como o sinal da cruz. Inábeis, seus dedos deixaram a gota cair na pia. Velozes, correram a colhê-lo e depositá-lo na boca sob a língua. Quando o dia amanheceu, a primeira coisa que você viu foi um raio de sol. Até hoje você procura pegar aquele raio. Ainda não se tocou que ele era você mesmo.


quarta-feira, 12 de março de 2008

Satyricon [100308]



Quero envelhecer como Woden Madruga e Nei Leandro de Castro. Se preciso for, lavro esta crônica, texto, declaração, ata, em cartório. Com as testemunhas juramentadas que o serviço exige, com as despesas pagas sem titubear ou regateio.

Sexta-feira passada os meninos estavam lado a lado nas páginas da Tribuna do Norte. Aliás, na mesma página. Woden em sua coluna de praxe, Nei, em seu artigo idem.


Por trás de sua barba branca, o primeiro, por trás de sua barba branca, o segundo. Woden, com seus olhinhos míopes, é um encanto. Normalmente, parece brabo, para quem o lê. Não é. É quase uma moça de fino trato, no trato pessoal. Nei, por trás dos óculos de fundo de garrafa, é bem mais agressivo, em texto e especialmente ao vivo, verbeloqüente. Se Woden é a metáfora da bondade e da pureza, Nei é a mão suja conspurcando bondade e pureza – um é o galante, fala mansa, gestos contidos, timidez arcaica; o outro é o bruto a desvirginar a moça.

Um, se esconde normalmente por trás da aridez da crônica cotidiana diária, mas termina revelando uma poesia sutil e enamorada; o outro, revela em poemas avassaladores, ou naquilo que pode ser definido como crônica poética, a aridez do desejo impaciente dos machos, mais que enamorados, sedentos.

É isso: enquanto um limpa educadamente os beiços à mesa, o outro faz questão de manchar o guardanapo e exibi-lo aos comensais.

É isso, também: um é sutil, o outro, matador. No país de Nei Leandro, os fracos como Woden não têm vez.

Vez por outra se embaralham, o que vale para um passa a valer pro outro, que as fronteiras a isso servem: para ser sacaneadas.

Mas, sexta-feira passada, se mostraram, ambos, faunos, sátiros, caprinos. No bom sentido, claro, se é que possa existir seu oposto (algumas mulheres podem detestar a devoção que emprestam ao gênero feminino – mas no final até mesmo essa minoria se rende conto do quão necessário e urgente é, sermos assim). Uma espécie de novo alvorecer do macho moderno, que, dizia-se, há muito adentrou na sombra obscura do crepúsculo.

Duvidam? Não entendem? Eu explico, usando as palavras dum, e doutro.


WODEN:
“Lá pras tantas houve, de
repente, uma visão que fez silenciar a mesa. Uma bela jovem atravessa o pátio
ensolarado do Iate - estava de biquíni - e entra na piscina. Foi uma entrada
calma, como se estivesse experimentando a temperatura da água. Deu duas, três,
quatro braçadas. Deixou-se se molhar bem devagarinho e a partir daí, ficou
praticando, em pé, projetando o dorso (que dorso!) para fora, uma série de
pulos, pulinhos, harmoniosos, um, dois, três. Desconfio que pisava com as pontas
dos pezinhos o piso raso da piscina. Aqui e acolá, repetia: duas, três, quatro
braçadas, um nado suave. De novo, os pulinhos. Um, dois, três. Graciosos. Que
dorso! Quer cor. Sol, sal, bronze. E nesse ritmo se passaram duas horas
cronometradas pela distinta platéia. Assim como chegou, saiu. Perguntei para a
mordoma do Iate quem era a princesa grega. Não soube informar.”



NEI:
“Numa tarde de solidão quase infinita, a
poesia surgiu diante de mim, me pegou pela mão e saímos juntos. Levou-me
correndo para as falésias manchadas com o vermelho desbotado do anticrepúsculo,
e eu percebi claramente que a poesia tinha corpo de mulher, ternura de mulher,
magia de mulher. Beijou-me na boca, despiu-se e disse que queria ser amada não
como usualmente se ama a poesia, mas como se ama uma mulher cheia de desejos. A
poesia tinha uma cabeleira escura, os seios apontando para o infinito e os seus
lábios tremiam. Começamos a trocar carícias e eu jamais poderia imaginar que a
poesia fosse tão bela, tão deslumbrante, quando se despe totalmente. A poesia me
lançou nardos e dardos de doçura, gemeu e os seus gemidos foram tão fortes que,
a muitas léguas dali, um homem à beira do suicídio despertou para a vida e
escreveu uma ode ao amor.”


CONCLUSÃO

O sátiro Nei, o fauno Woden: não os conheço intimamente, nem um nem outro. Se me atrevo a escrever sobre eles é porque cresci acompanhando suas trajetórias, na imprensa e na vida social da província – que há pouco mais de uma década era ainda mais provinciana, e os ares, mais frescos, mais limpos, o céu com mais estrelas, as várzeas com mais flores, os bosques com mais vida, e a vida, claro, bem mais pródiga de amores.

Voltando da digressão poética e resumindo: se me atrevo a abordá-los é porque são celebridades. Muito antes da Caras e do neo-colunismo social. E enquanto tal, nada podem reclamar dos paparazzi-de-letras feito eu. Quanto aos seus perfis – e para livrar-me de possível responsabilidade penal – qualquer semelhança com a realidade é mera licença poética.

Daí que eu, na minha meia-idade, declaro, em sã consciência e com um tiquinho de inveja e esperança (e sem pingo de ironia), que desejo envelhecer como eles: admirando as moças na piscina, cavalgando musas, deixando-me trespassar por nardos e dardos de doçura. E escrevendo – que, desde sempre, para outra coisa somos inúteis.









PROSA
“As três meninas que me visitam ficaram todo o tempo puxando as reduzidas mini-saias, atraindo, pelo gesto insistente, meu olhar distraído para a palpitante topografia exibida.”
Câmara Cascudo
Na ronda do tempo
VERSO
“A beleza da menina
Chamou a minha atenção”

Moysés Sesyom

segunda-feira, 10 de março de 2008

O Selo


[Robert Crumb]



Tive um sonho estranho.

Lembram que os Long Plays vinham com um selinho impresso na contracapa dentro dum retângulo onde se lia DISCO É CULTURA – ?

Pois, no meu sonho, tudo, absolutamente tudo que pode ser negociável e comercializado, vinha com o mesmo selinho – só que em vez do DISCO É CULTURA, lia-se:

SEXO É BOM.

Foi na quitanda comprar banana pacovan?

- No selo azul, contraste com o amarelão da banana: SEXO É BOM.

A seda azul do papel que envolve a maçã argentina?

- A marca d’água multiplicada em tons clarinhos: SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM SEXO É BOM É BOM É BOM É BOM É BOM É BOM É BOM

Nos brinquedos, ao lado do selo do Inmetro e daqueles alertas terríveis, desaconselhado para menores de tais anos porque contém partes comestíveis?

- A mesma marquinha, admoestação para o futuro da espécie.

Até nos jornaizinhos das missas, da santa madre igreja católica apostólica romana, finalzinho lá do pé de página, o dístico, beatificado, hosanado, consagrado e abençoado, décimo-primeiro mandamento da lei de deus:

- SEXO É BOM.

Seria uma maravilha.

Bom mesmo.

sexta-feira, 7 de março de 2008

quinta-feira, 6 de março de 2008

Traduções, II


Na verdade, há veios de onde se extrai a prata, e lugar onde se refina o ouro.
O ferro tira-se da terra, e da pedra se funde o cobre.
Ele põe fim às trevas, e toda a extremidade ele esquadrinha, a pedra da escuridão e a da sombra da morte.
Abre um poço de mina longe dos homens, em lugares esquecidos do pé; ficando pendentes longe dos homens, oscilam de um lado para outro.
Da terra procede o pão, mas por baixo é revolvida como por fogo.
As suas pedras são o lugar da safira, e tem pó de ouro.
Essa vereda a ave de rapina a ignora, e não a viram os olhos da gralha.
Nunca a pisaram filhos de animais altivos, nem o feroz leão passou por ela.
Ele estende a sua mão contra o rochedo, e revolve os montes desde as suas raízes.
Dos rochedos faz sair rios, e o seu olho vê tudo o que há de precioso.
Os rios tapa, e nem uma gota sai deles, e tira à luz o que estava escondido.

Porém, onde se achará a sabedoria, e onde está o lugar da inteligência?
O homem não conhece o seu valor, e nem ela se acha na terra dos viventes.
O abismo diz: Não está em mim; e o mar diz: Ela não está comigo.
Não se dará por ela ouro fino, nem se pesará prata em troca dela.
Nem se pode comprar por ouro fino de Ofir, nem pelo precioso ônix, nem pela safira.
Com ela não se pode comparar o ouro nem o cristal; nem se trocará por jóia de ouro fino.
Não se fará menção de coral nem de pérolas; porque o valor da sabedoria é melhor do que o dos rubis.
Não se igualará ao topázio da Etiópia, nem se pode avaliar por ouro puro.
Donde, pois, vem a sabedoria, e onde está o lugar da inteligência?
Pois está encoberta aos olhos de todo o vivente, e oculta às aves do céu.
A perdição e a morte dizem: Ouvimos com os nossos ouvidos a sua fama.
Deus entende o seu caminho, e ele sabe o seu lugar.
Porque ele vê as extremidades da terra; e vê tudo o que há debaixo dos céus.
Quando deu peso ao vento, e tomou a medida das águas;
Quando prescreveu leis para a chuva e caminho para o relâmpago dos trovões;
Então a viu e relatou; estabeleceu-a, e também a esquadrinhou.
E disse ao homem: Eis que o temor do Senhor é a sabedoria, e apartar-se do mal é a inteligência.


[Livro de , Capítulo 28, Versículos 1-28 – Tradução de João Ferreira de Almeida]


quarta-feira, 5 de março de 2008

Traduções, I


Há lugares de onde se tira a prata,
lugares onde o ouro é apurado;
o ferro é extraído do solo,
o cobre é extraído de uma pedra fundida.
Foi posto um fim às trevas,
escavaram-se as últimas profundidades da rocha escura e sombria.

Longe dos lugares habitados, [o mineiro] abre galerias
que são ignoradas pelos pés dos transeuntes;
suspenso, vacila longe dos humanos.
A terra, que produz o pão,
é sacudida em suas entranhas como se fosse pelo fogo.
As rochas encerram a safira,
assim como o pó do ouro.
A águia não conhece a vereda,
o olho do abutre não a viu;
os altivos animais não a pisaram,
o leão não passou por ela.
O homem põe a mão no sílex,
derruba as montanhas pela base;
fura galerias nos rochedos,
o olho pode ver neles todos os tesouros.
Explora as nascentes dos rios,
e põe a descoberto o que estava escondido.

Mas a sabedoria, de onde sai ela?
Onde o jazigo da inteligência?
O homem ignora o caminho dela,
ninguém a encontra na terra dos vivos.
O abismo diz: “Ela não está em mim”.
“Não está comigo”, diz o mar.
Não pode ser adquirida com ouro maciço,
não pode ser comprada a peso de prata.
Não pode ser posta em balança com o ouro de Ofir,
com o ônix precioso ou a safira.
Não pode ser comparada nem ao ouro nem ao vidro,
ninguém a troca por vaso de ouro fino.
Quanto ao coral e ao cristal, nem se fala,
a sabedoria vale mais do que as pérolas.
Não pode ser igualada ao topázio da Etiópia,
não pode ser equiparada ao mais puro ouro.

De onde vem, pois, a sabedoria?
Onde está o jazigo da inteligência?
Um véu a oculta a todos os viventes,
até às aves do céu ela se esconde.
Dizem o inferno e a morte:
“Apenas ouvimos falar dela”.
Deus conhece o caminho para encontrá-la,
é Ele quem sabe o seu lugar.
Porque Ele vê até aos confins da terra,
e enxerga tudo o que há debaixo do céu.
Quando Ele se ocupava em pesar os ventos,
e em regular a medida das águas,
quando fixava as leis da chuva,
e traçava uma rota aos relâmpagos,
então a viu e a descreveu,
penetrou-a e escrutou-a,
depois disse ao homem: “O temor do Senhor, eis a sabedoria;
fugir do mal, eis a inteligência.”


[Livro de , Capítulo 28, Versículos 1-28]

terça-feira, 4 de março de 2008

Uma mulher no espelho


[Fernanda Takai mira-se em Fernanda Takai: alguns enxergam Nara, mas é Takai jogando olhares pra Takai, mesmo - Foto de Fabiana Figueiredo e Pierre Devin]





Nunca fui muito com a cara de Fernanda Takai.

Sempre achei meio ridículo e bobo o tal do Pato Fu, a começar do batismo.

Nunca acreditei muito no jeito swingin’ london brejeiro da moça – a qualquer hora parecia que ela poderia sacar do bolso um fiapo de capim e começar a mascá-lo enquanto soltava aquelas lacônicas expressões que estereotipam a roça das Geraes.

Sempre achei que era uma forçação de barra tentar levar as pedras geométricas de Copacabana para as ladeiras infinitas de Beagá.

Recém-converso ao Takaismo (não praticante), não renego nada do que pensei.

Apenas ouço e ouço Onde brilhem os olhos seus.

E ouço e ouço.





segunda-feira, 3 de março de 2008

crep-úsculo sci-fi



Deixou a casa afundar nas trevas, deixou a escuridão ocupar cada ângulo, deixou-se.

Veio a solidão, e devorou-o.

Veio a tristeza e mordeu seus pulsos.

Veio o silêncio e cavou sulcos profundos na face.

Veio a desesperança e atou-lhe as mãos às costas, os pés voltados contra as nádegas. E meteu-lhe um capuz escuro e a cabeça perdida no interior do capuz negro num barril de água de chuvas.

Veio a melancolia e sua boca ficou seca, o estômago árido, a pele desértica.

Vieram os sonhos e lhes fustigaram os músculos miúdos.

Através da porta ouviu o caminhão da imundície estacionar.

Se arrastou até os cotovelos tocarem os ladrilhos gelados do banheiro. Ouviu o coro negro dos anjos, como uma nuvem de pássaros ondeando o céu, volteando curvas infinitas, arabescos e espirais, coleando o pasto celeste.

Abriu os olhos uma última vez e entreviu uma chama miúda, entre o azul e o vermelho.

O relógio bateu as horas contra o reboco úmido da parede.

Quando cessou a última badalada, eles entraram.

E dele se serviram. E se refestelaram.

*

Quando acordou, cada pedaço de seu corpo espalhava-se pela sala recém-desperta, o sol aconchegando-se sobre a manta do sofá e entre as pétalas do vaso da mesa.

Cada pedaço na boca de um deles, cada osso, cada tendão, músculo e gordura, as vísceras estendidas através do soalho do corredor rumo à porta dos fundos e às sombras mornas do quintal de frutas.

Ele apenas sorriu.