Me empresta um silêncio pra passear. Me empresta um ruído estereofônico. À direita do meu ombro – velocidade e asfalto. Deixa a esquerda, livre, pro ciciar de pássaros, pro latido dos cães, pro chute na bola. À minha frente deixa somente teus olhos, um lampejo cristalino bulindo, fazendo cócegas, fagulhando. Às minhas costas, às minhas costas – não, não deixa nada; deixa apenas sua sombra marcando para sempre a minha parede e as fotos ancestrais.
Sobre mim deita o silêncio, nosso silêncio, a nudez das palavras, dos corpos.
Mas, quando sair, não esquece de trancar a porta, tá? Não quero que a ilusão saia, nem que eu saia por aí, sozinho, perdido nesse domingo sem fim.
Com os restos de palavras suas reconstruí parte do mundo, ou ao menos mais um graveto partido e esquálido para o ninho que nunca edificaremos. Não houve como evitar. Parabéns. Você me disse. E desta vez não retruquei. Eu posso. Você pôde – acrescentando um sic entre parêntesis maternos – (sic).
Ah. Sic. Sick. Sicky. Palavras inglesas. Não minhas. Se é ficção. Se é realidade. A vida não imita a arte, imita a vida, mesmo.
A vida e seus anzóis. A vida e seus anéis. A vida e seus dedos.
A vida e seus comentários.
Todo esse labirinto de palavras. Toda essa teia de não-promessas. Toda essa ferrugem cobrindo sonhos, agasalhando invernos d’alma.
Tudo é desencontro. E desassossego. Você, que está sempre partindo, mala e cuia nas mãos, os vagões açoitando seus cabelos.
Você. O capote escuro, pesado, caindo seus ombros sobre bagagens perdidas. Achados, perdidos, reencontrados.
Neste momento milhares de pessoas embarcam, seguem viagem.
Noutro, milhares de pessoas fizeram o mesmo. Viagem. Farão. Viagem.
Trens cruzam trens. Aéreos passam sobre rotas de outros aéreos. Barcos chapinham seus cascos de aço em oceanos profundos. Um pirata palita o dente. Uma jovem esposa abre a caixinha e descortina brincos de pérolas. Uma senhora, o cê duplo marcando a bolsa, vagueia seu corpo diante de vitrines iluminadas.
Nem tudo que reluz é ouro, nem tudo que é branco é pérola, nem todo peito é nacarado.
Uma moça serve café.
Outra acabou de mudar-se. Deixou a mala fechada e desceu para tomar um copo de vinho na esquina e não comprar cigarros e olhar pelo clarão da fachada e lembrar o amante quilômetros além, milhas náuticas, bússolas partidas, relógios sem corda.
Apenas eu e você restamos na cidade vazia. Nossos corações batendo forte em esquinas por onde passamos em horários diferentes, em dias diferentes, em vidas diferentes, evitando o encontro, o naufrágio, o acidente, os corpos por resgatar.
É assustador, eu sei.
Já passei por isso. Era preciso uma bicicleta, uma noite fria, uma chuva providencial e uma avenida ao longo de um rio para sentir na realidade o que é ficção, sonho, ilusão. Para desenlear as rotas, desenjaular medos, desencantar recifes.Não sei de suas palavras. Das minhas, soçobro.
O inferno somos nós mesmos. Me falou. Não. Não me falou. Foi mensagem que chegou no visor escuro do celular, no instante em que a porta se abria deixando passar vento frio. Desde que a conheci há sempre uma porta sendo aberta e um vento de través. Gélido. Glacial. Me dirá. É o tempo. A estação. Inverno. Eu sorrio. O inferno somos nós. Passa o vento e arrasta folha dobrável. O estacionamento é morada de curvas. Há sempre folha dobrável se metendo debaixo do carro. Eu me agacho. Olho. Como fiz pela manhã. Há um vazamento d’óleo. Espesso. Grosso. Deixei crescer um bigode. Faz acerto com o chapéu. A gravata. A capa. Eu olho novamente. Me inclino. Pinga o líquido escuro sobre o papel amarrotado. Ah, o vento frio. Porta que se abre. Mecanismo automático. Monto o rifle em trinta segundos. O metal esfria meus dedos. A manhã não é agora. A manhã se deixou levar, como folha dobrável se arrastando entre automóveis estacionados. Pinga. Gravata. Chapéu. Capa. O inferno é sermos nós mesmos. Meto as mãos nos bolsos. Tiro fora o celular. A mensagem parpadeia. [continua]
Quando eu era louco, não me sentia dentro de mim; que é como dizer: não morava em mim. Luigi Pirandello Quando eu era louco... in Novelas para um ano – O velho Deus tradução Bruno Berlendis de Carvalho São Paulo Berlendis & Vertecchia 2000
Cada dia mais me permito a loucura
benfazeja.
Então, alguns conselhos
e dois ou três comentários:
Não se deixe enganar
Não passe ridículo
Escreva uma carta hoje à noite e não envie
nunca mais
Não beba vodka
Não morra de tédio
Não corte as unhas
Não lave os cabelos
Deixe a louça por lavar
e um pedaço de queijo na geladeira
Quando for madrugada
descalce todos os sapatos as chinelas os saltos as alpercatas os tamancos de madeira
e suje os pés na terra tentando colher a fruta mais madura que não há
Quando você for louco e a loucura se permitir
– se instalar em sua morada.
Você, que vive em sítio tão congestionado.
(duas garrafas de tinto e pimenta-do-reino nos olhos: é quanto basta para que eu conte do dia frio de outono em que fiquei plantado no jardin du luxembourg: ou foi nas tulherias: quando eu vivia em paris: era outono e nos instalamos em hotel de quinta em rua de ambulantes: era outono e o vento varria folhas para debaixo de velhos citroëns estacionados: era outono e meu casaco nevava: fazia mais frio dentro do que fora do meu casaco dois tamanhos maiores: as mãos congeladas: os pés plantados: você entrou na lojinha desde mil e oitocentos e alguma coisa pregava a fachada e me deixou do lado de fora: le chien andaluz: un perro andalou: seu casaco no tamanho justo capa longa contrastando o batom vermelho-sangue a ponta do seu nariz tão fria seu dedo erguendo o óculo de grau: você comprou uma caixinha de música e girou a manivela minúscula e uma canção dos beatles fez tremer as folhas do jardin du luxembourg: fazia tão frio dentro eu disse: mais que lá fora onde o cãozinho espanhol o rosto moreno sujo sem lavar esperava: eu nunca estive tão só nos setenta e três anos em que vivi em paris: quando eu vivia em paris e era louco por você:)
... aí vem o vinicius e fala, cigarro de cinza longa entre os dedos,
existe sempre uma mulher Pra se ficar pensando Nem sei, nem lembro mais Vinicius de Moraes A carta que não foi enviada