sexta-feira, 14 de março de 2008

Carta ao poeta João Gualberto Aguiar [140308]






João, andei sumido, sei. Nunca mais voltei ao seu palácio mastodôntico às margens da BR-101, promessa de fuga e viagens ao Sol, Sul Maravilha.

Nunca mais deixei minhas sandálias na soleira da porta, para em sua casa entrar descalço como vim ao mundo, sem o pó deste na sola dos pés calçados.

Nunca mais me coloquei no centro da sala, meio de banda para colher seu olhar-sorriso enviesado de contentamento com a visita inesperada.

Por que sumi, João?

Não, não fui abduzido por nenhum disco voador, nem disco pirata, nem disco de prata, nem disco compacto. Nenhum mp3 me conquistou.

Não: tampouco naufraguei numa chalupa mambembe em costas d’África, devorado pelo Leviatã, tentando entrecruzar e decifrar as pistas enigmáticas deixadas nas migalhas de pão por Daniel Defoe e Arthur Rimbaud.

Se fui ao Juazeiro pagar promessa?

Não, João. A sombra do padre Cícero Romão Batista passou sobre minha cabeça numa procissão de nuvens esgarçadas. Nenhum sinal de chuva.

Então, foi um seqüestro-relâmpago, estroboscópico, psicodélico, que durou mais que devia, impedindo-me a visita?

Tsc-tsc. Tenho escapado imune e impune dessas pequenas violências que tecem nossas manhãs como uma vez as teciam os galos.

Tampouco me deram cargo em Palácio, de despachante do Poder.

Meu ofício continua o de matar as horas e enterrar os dias no ramerrame eterno que nos guia os passos e as contas a vencer.

Basta de perguntas prenhes de interrogações, João.

Sumi, porque, dias depois de ter subido ao seu apartamento levando embrulhado em papel prateado o livrinho do Nick Tosches, “A última casa de ópio”, entrei com o meu pai no hospital – do qual, quarenta dias depois, só um de nós saiu vivo.

E não tenho certeza se fui eu.

Eis o mistério da fé, João.

Em verdade, em verdade, vou falar procê: acho que quis poupá-lo de mais uma má notícia. A você, que de maus eventos a vida tem se revelado pródiga. Tantos você já perdeu, não é justo invadir sua cotidianidade com perdas alheias.

Parece uma desculpa, bem sei, e talvez seja, bem sei.

Talvez seja o medo de também perdê-lo, eu, que em breve convivência já vi João Gualberto, Gual, Jogal, perder-se em si mesmo e em seus múltiplos, um pouquinho a cada vez. Como se a vida jorrasse de si, prodigamente, como uma represa arfante, sem fôlego, incapaz de conter tanto volume, de sólidos, líquidos, gasosos; de tipos tipográficos; de anos de chumbo; de metal retorcido e ferrugem de prêmios e plumagem de pássaros; de teclas apagadas e ninhos de passarinhos.

De tanta bondade, João.

Essa mesma bondade que ainda há de matá-lo. Sem tocaia, olho no olho. Que o fere, aprisiona, devora, um pouquinho por dia, sol posto, sol nascente.

Tem também muito de covardia na raiz do meu sumiço. De covardia, de impotência, de desânimo. Por saber que você é apenas um a mais na legião de nomes que a esta cidade convêm mais mortos que vivos.

Pois, se aos primeiros lhes basta a efemeridade das celebrações fúlgidas, os segundos são só estorvo – sempre a reger com gestos invisíveis e inábeis o coro dos descontentes. Sempre atravancando o tráfego. Sempre destoando da mobília decorativa, insípida, inodora, anódina e asséptica. Sempre exigindo brioches ao posto do pão ázimo.

Sempre ameaçando o vômito à mesa do café-da-manhã. Sempre levando aos banquetes a companhia dos mendigos, sempre o colarinho sujo, os dentes desgastados, os dedos maquiados de nanquim, a barba por fazer, os cabelos desgrenhados ao vento, bandeira de uma liberdade incômoda.

Desculpe o lugar-comum, João, a escrita banal, mas a esta cidade lhe interessa mais os cifrões que as letras. As letras são um estorvo, ainda mais encarreiradas sobre o espelho embaçado ou no mármore polido do lavabo.

Os cifrões são redenção & religião.

E de nada vale lembrar que o dinheiro não se come. Como não? Estamos empanturrados, nos fartamos dia após dia em 30, 35, 300, 350 moedas de ouro. Esta é a Cidade dos Reis, João, la Ciudad de Los Reyes, dos historiadores d’antão, a perspectiva indefinida, de Cascudo.

E aos Reis não lhes é permitida a existência sem a vassalagem e tampouco sem a porção podre da corda – os mendigos. Aqui, mais que em qualquer outro lugar do mundo, a mendicância é a serventia da poesia.

E aos dragões da maldade interessam apenas a domesticação – da poesia e, por conseguinte, dos poetas. Como você. Seja Marginal, Seja Herói, é o dístico de sempre. Lembre-se do fraque esverdeado de Itajubá, de seu colete “entre lilás e vermelho, sua mania pelos pastoris, seus discursos nos circos de cavalinhos, seus poemas nas Rocas, na Rua da Lua, na travessa Paraense, no beco do caju, seu violão de folhas de flandres (para a chuva não descolar)”, como lembrou sua sombra, seu doppelgänger, Luís da Câmara.

Será verdade mesmo que “um homem com uma dor é muito mais elegante”?

Lembra quando você me contou sua experiência com LSD? Ninguém quis publicar que você escreveu a “Máquina de lavar poemas” após uma viagem de São Paulo ao Rio. O fornecedor lhe deu um “pingo londrino”, recomendou que partisse em quatro, como o sinal da cruz. Inábeis, seus dedos deixaram a gota cair na pia. Velozes, correram a colhê-lo e depositá-lo na boca sob a língua. Quando o dia amanheceu, a primeira coisa que você viu foi um raio de sol. Até hoje você procura pegar aquele raio. Ainda não se tocou que ele era você mesmo.


4 comentários:

Anônimo disse...

bonito, como sempre. feliz dia da poesia.

midc disse...

feliz dia da poesia procê também lissa.

Alex de Souza disse...

antológico. Se eu fosse professor de jornalismo, usava em sala de aula.

Pedro Lucas disse...

Ótimo. Intimista mas ao mesmo tempo bem confessional. Poesia pura, mas no seu tom de prosa.