É depois de um tempo que começa a doer de verdade.
Não que antes não fosse dor.
Mas era dor de percurso lógico, de rumo certo, de rota controlada, de estágios mais ou menos definidos.
É depois de um tempo que tudo começa a embaralhar, em caos, em surpresa, em tocaia traiçoeira e covarde.
É depois de um tempo que – uma imagem: a pia por fazer, a louça por lavar, a cama por forrar, a casa por varrer, e, um dia inteiro por viver. Cinco imagens.
É depois de um tempo que começamos a nos perder na casa vazia, no vazio da casa, na solidão do fim-de-tarde. Cai a noite como um manto escuro e pesado. Cai a noite em conta-gotas: uma buzina leve, luzinhas que acendem, pára-raios parados, céu estático, céu sem nuvens, sem guias, sem estrelas, astros, constelações.
Cai a noite e o céu se tinge de um azul-escuro. Um motor ronca e se perde numa esquina qualquer. Gritos. Um cão que late. Sirene. Borracha de pneus mastigando pedras. A sirene continua, não se cansa. O cão ladra mais forte.
A casa se enche de vazio. De promessas não cumpridas. Não é preciso relógio para marcar as horas: envelhecemos a cada instante. E o que incomoda não são os cabelos que se encanecem, nem as rugas que se comprimem sobre o rosto outrora imberbe, nem os músculos que se flabelam ao sabor da gravidade.
Poderia deixar uma maçã no parapeito e assistir sua ruína. Os escombros das cores.
Não.
O que incomoda é a perda das palavras, a maceração das frases, a dislexia do tempo.
A perda da memória.
O que incomoda é a ausência. O reencontro para sempre adiado.
3 comentários:
Em certto sentido, um texto antológico, um texto cristalino: o que incomoda, de fato, além da ausência?
ai, é tão estranha a ausência. por mais que já se esteja calejado, ela sempre incomoda. principalmente quando a parte ausente, de quebra, ainda leva um bom pedaço da gente... lindo texto, amigo.
O que incomoda é a ausência. O reencontro para sempre adiado.
Que desfecho!
Ailton Medeiros
Postar um comentário