[Foto de Joca Soares]
A Cidade ainda se revela em ângulos inesperados.
Um velho edifício, a lateral carcomida de pombos, ares-condicionados, roupas a secar.
O frontão de um prédio baixo, as samambaias derramando-se em cascatas de verde-esmeralda nos entalhes barrocos.
A calçada, sem uma nesga de sombra.
A avenida vazia. Entre um sinal fechado e outro. Os pedestres aguardando não-sei-quê.
Uma manada de búfalos, um estouro de elefantes, o mascar longilíneo de um pescoço de girafa.
A cidade ao meio-dia.
Relógios parados, ponteiros quebrados, minúsculas baterias jogadas ao monturo miúdo da lojinha de beira-calçada.
Caldo-de-cana.
Quer comprar? Quer vender? Quer dinheiro fácil? Quer amor barato? Quer juros baixos, rasteiros, e vinte e quatro prestações a perder de vista, lá pro prumo do horizonte? Quer-quer?
Quer me dar? Quer comer? Quer me dar? Quer comer? Quer-quer? Me dar? E comer?
Tanto negócio e tanto negociante. Tanta nau e tanto flibusteiro. Nas ruas estreitas longe do rio.
Reais. Cruzados. Tostões. Patacas. Em reais. São cinco. Cinco, o boquete. Pra você: dois e cinqüenta. Pra inteirar a passagem pra Nova Cruz. Pra voltar pra casa, lá em Minas, Alcântara, dormi na rua, me bateram, me quebraram, fiquei sem nada. É melhor pedir do que roubar. Meus filhos. Em casa. O pão. Mode comprar. Tô roubando, não. Pra pedra. É. Predra. Fogo? Dois por três, dois por três. Verde. Bermelho. Zoster. Assoa o nariz, menino. Moço, ô moço. O senhor devia prestar mais atenção por onde anda. Sem açúcar, sim? Açúcar ou adoçante? Tá todo mundo falando. Tevê-elicedê de vinte e nove polegadas, imagem real. Deixa eu lembrar o nome da poeta, não quero enrolar a língua. Oh, oh, ó quão dessemelhante. Ele tá fodido comigo. É por isso! É por isso que eu não aceito ler livro traduzido! Pelas drogas inúteis. Vem. Vem, comigo. Olha que bunda, ali na parada. Eu sabia que tinha uma coisa diferente em ti. Atenção! Necessito comprar um carro para vender churros, estou pedindo esta ajuda, porque não tenho condições. Minha família é muito simples e por isso é que preciso trabalhar para não viver na marginalidade, crime e dos vícios, para garantir o pão de cada dia, dependo da sua valiosa ajuda. Muito obrigado, que deus lhe dê em dobro. Deus. D-e-u-s. Jesus te ama e te dê. Eu também.
A cidade se desvela. Do alto dos prédios. Rouba branca a secar. Vento forte. No quarto, a cama desfeita, a vida desfeita. Gotejando a pia do banheiro. Manchão amarelo. A vizinha entrou com o rapaz black. Antes de fechar a porta, piscou o olho e ajeitou a ponta da saia. O elevador ainda em manutenção. O rapaz conversa com o porteiro. A moça entra, arrastando o moleque pelo braço. Todos conversam com o porteiro.
A cidade no fim de tarde. O sol vai se alongando entre os prédios modernistas. Se derrama e se estende ao longo do asfalto. Acompanha a curva das esquinas, invade a faixa de pedestres, mistura-se ao semáforo dos cegos. Os não-videntes. As ciganas pedem e exibem as mãos. As ciganas são exageradamente enrugadas. As ciganas são extremamente pobres. Falta tradição nessas ciganas.
A cidade escurece.
E ilumina-se.
Em luzes e neons. Em azuis, vermelhos, amarelos, laranjas. Em branco incandescente. Em faróis que deixam um rastro comprido brilhando no ar.
Em ônibus que se abrem, engolem e regurgitam.
Pisca.
A cidade no meio da noite.
Um frio em cada esquina.
Um soluçar de motor em combustão rompendo o silêncio.
Um coaxar de passos, tacos longínquos, rastro comprido ecoando no ar.
Batom.
A Cidade ainda se revela em ângulos inesperados recortados pelos primeiros raios da manhã.
A Cidade.