me pedem que eu escreva
eu escrevo
digo
apenas não publico
me pedem que eu escreva
como se fosse indolor
como se não machucasse dedos e artelhos nos escolhos
me pedem que eu escreva
como se nada fosse
flanar pelos bairros altos
cidades ocultas
expondo as vísceras sob as costelas
nervos atados às vértebras
como se eu tivesse mil braços e mãos para segurar a longa fila de intestinos e tripas e tendões e vasos
artérias e veias
me pedem que eu escreva como se não fosse constrangedor andar por aí coberto de sangue urina e fezes
como se o mundo fosse uma incubadora anti-germens e a mim fosse dado direito e dever da impunidade e do salvo-conduto
invisibilidade de herói
mas o pior
creiam-me
o mais terrível
é ser obrigado a caminhar com a deselegância de dores crônicas tão antigas quanto o arco
tão venenosas quanto a frecha
fingindo uma elegância e estilo mui apropriados às feras entre feras
me pedem
então
que eu escreva
e eu repito
não é que não escreva
apenas não publico
porque dói caminhar sobre o fio da navalha sem direito ao desequilíbrio
sem o perdão do abismo
sem o frescor de uma esperança sempre adiada
me pedem e não sabem o que me pedem
me pedem sonhos
eu
que nunca durmo
me pedem sorrisos
eu
que nunca choro
a não ser no escuro
tarde
noite
quando o animal me empurra o peito e sufoca qualquer som e palavra.
[vídeo de poncodoma no youtube sobre spinning away de eno cale]
4 comentários:
ecos que emocionam. doem. consolam.
mgp
forte, doído e profundo, parabéns,
Ótimo texto, cara. Foi parar no Balaio. Um abraço.
Belo texto!
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