Eu tinha começado a escrever umas divagações com medo possivelmente de parecer objetivo demais triste demais pessimista demais. Um ano se passou desde a última véspera de ano novo em que estivemos metidos, todos nós, homens e mulheres aí pela casa dos enta, quase todos com o mesmo padrão de vida, o que inclui problemas, traumas, inquietações. Quase todos ou todos metidos em réveillons diferentes mas que seguiam o mesmo padrão de fogos de artifício, espumantes estourando rolhas, augúrios de sei-lá-o-quê. Eu devo ainda acrescentar antes de seguir adiante: véspera de ano novo em que estivemos metidos como se metidos estivéssemos numa briga sem rivais, sem contendores, sem sangue, suor, lágrimas. Eu tive que me forçar a ser menos metafórico menos suposta e pretensamente poético menos surrealista incolor. Não sou definitivamente um cara que usa sapatos bicolores. Não sou definitivamente um cara que usa sapatos. Essa foi, aliás, uma das mudanças não programadas, não elencadas em rol, lista de coisas a fazer no ano novo: bem antes de dezembro estender seus cordões coloridos e seus papais noéis encarnados sobre nossas cabecinhas infantis eu já tinha quebrado um padrão assumido no ano anterior – de usar apenas sandálias, fosse aonde fosse, na companhia de qual lobo ou hiena ou pantera que me ladeasse, em mesa de trabalho, de bar, ou de sarjeta. Ali pelo décimo mês do ano, pois, eu passei a usar meias e a cobri-las com sapatos, um tênis de longos cadarços e aspecto rústico, um social-envernizado que calcei na formatura da minha filha. Ganhei um terceiro de presente, o que significa que vocês me verão decididamente bem posto sobre a terra neste dois mil e nove. (E aqui abro e escavo parêntesis para comentar que, historicamente, este ano que se encerra velho, hoje, pode ser resumido numa imagem sem imagens – a do jornalista oriental rebolando seus sapatos, um após o outro, contra o suprassumo do mundo ocidental, o senhor George Dábliu.) Posso dizer, então, que os meus já os tinha atirado mais um ano atrás – contra a humanidade? Posso dizer, então, que capitulei, e voltei atrás, sobre meus passos, antes desnudos, agora cobertos pelo couro tratado e costurado da vergonha e da seriedade? Ainda ontem, véspera da véspera, tentei descolar um celular novo, legalmente, esclareço, ainda não roubei nenhum aparelho eletrônico (pura falta e senso de oportunidade – houve um tempo em que andei afanando livros em supermercados). Pois, prossigo, tateando, tropeçando nas letras e nas vírgulas, fui à cata de um novo celular e o consultor da companhia ao olhar a camiseta comentou: é impossível não cantarolar a música. Eu vestia uma camiseta com uns versos dos Beatles – she loves you yeah yeah yeah – explico. Em letras garrafais, não neste ridículo minúsculas-minúsculas anterior. Daí. Daí que me lembrei que foi com essa camiseta que cruzei o tempo regulamentar que separou dois mil e sete de dois mil e oito, trezentos e sessenta e cinco dias atrás. Noite tristonha. De luzes baixas. De taças sem repique. Sem tinir cristal a não ser timidamente. O primeiro dia do ano eu passei (nós passamos) em ambiente hospitalar. Uma grande enfermaria a céu aberto em que vivemos. Manhã, tarde, às vezes noite. Depois, uma enorme unidade de tratamento intensivo. Parece que tanto tempo já passou, bem mais que um mísero ano. Este, que dividi em peças de vestuário – uma camiseta de algodão, uns sapatos de couro, curvim. Como princípio, e fim. No meio, no meio, arriscaria uma lista sem ordem prévia, sem mergulho longo que o meu fôlego, neste instante, é curto – uma lista de coisas que fiz: - uma coluna escrita diariamente, e que veio substituir enquanto falta de tempo a minha disponibilidade para este blog; - uma campanha política derrotada, e que veio substituir por alguns meses a minha disponibilidade para a tal coluna; - um livro quase forçadamente publicado e do qual não dou muitas notícias porque o rebento já estava mais que grandinho ao nascer e dispensa a ajuda do pai desajeitado; - alguns bons novos amigos e o reforço de uns velhos. Não comprei a cama que queria e passei boa parte do ano dormindo no chão. E, quando dormi, dormi poucas horas ao dia. Comprei mais livros do que os li. Meu carro que me acompanhava há dez anos foi trocado – literalmente um branco por um preto. Fiz alguns meses de musculação. Continuei a fumar, às vezes desbragadamente. Fui ao pneumologista pela primeira vez, sem grandes prejuízos para o meu indeciso futuro. Bebi muito, bebi pouco, nas duas situações às vezes em excesso. Me senti livre, me fiz sentir-me livre. Estive ao ponto de enlouquecer (houve um dia que sim). Vi poucas vezes a lua cheia. Poucas alvoradas, alguns crepúsculos. Quase não me banhei no Atlântico. Estive mais fechado, em liberdade aprisionada. E para você que me lê, que me aparece aqui, vez em quando ou sempre, meu desejo que os próximos dias, meses, ano, sejam melhores – melhores de quê? Não sei, mas que sejam melhores, definitivamente melhores. Feliz 2009.
quarta-feira, 31 de dezembro de 2008
último post do ano
Eu tinha começado a escrever umas divagações com medo possivelmente de parecer objetivo demais triste demais pessimista demais. Um ano se passou desde a última véspera de ano novo em que estivemos metidos, todos nós, homens e mulheres aí pela casa dos enta, quase todos com o mesmo padrão de vida, o que inclui problemas, traumas, inquietações. Quase todos ou todos metidos em réveillons diferentes mas que seguiam o mesmo padrão de fogos de artifício, espumantes estourando rolhas, augúrios de sei-lá-o-quê. Eu devo ainda acrescentar antes de seguir adiante: véspera de ano novo em que estivemos metidos como se metidos estivéssemos numa briga sem rivais, sem contendores, sem sangue, suor, lágrimas. Eu tive que me forçar a ser menos metafórico menos suposta e pretensamente poético menos surrealista incolor. Não sou definitivamente um cara que usa sapatos bicolores. Não sou definitivamente um cara que usa sapatos. Essa foi, aliás, uma das mudanças não programadas, não elencadas em rol, lista de coisas a fazer no ano novo: bem antes de dezembro estender seus cordões coloridos e seus papais noéis encarnados sobre nossas cabecinhas infantis eu já tinha quebrado um padrão assumido no ano anterior – de usar apenas sandálias, fosse aonde fosse, na companhia de qual lobo ou hiena ou pantera que me ladeasse, em mesa de trabalho, de bar, ou de sarjeta. Ali pelo décimo mês do ano, pois, eu passei a usar meias e a cobri-las com sapatos, um tênis de longos cadarços e aspecto rústico, um social-envernizado que calcei na formatura da minha filha. Ganhei um terceiro de presente, o que significa que vocês me verão decididamente bem posto sobre a terra neste dois mil e nove. (E aqui abro e escavo parêntesis para comentar que, historicamente, este ano que se encerra velho, hoje, pode ser resumido numa imagem sem imagens – a do jornalista oriental rebolando seus sapatos, um após o outro, contra o suprassumo do mundo ocidental, o senhor George Dábliu.) Posso dizer, então, que os meus já os tinha atirado mais um ano atrás – contra a humanidade? Posso dizer, então, que capitulei, e voltei atrás, sobre meus passos, antes desnudos, agora cobertos pelo couro tratado e costurado da vergonha e da seriedade? Ainda ontem, véspera da véspera, tentei descolar um celular novo, legalmente, esclareço, ainda não roubei nenhum aparelho eletrônico (pura falta e senso de oportunidade – houve um tempo em que andei afanando livros em supermercados). Pois, prossigo, tateando, tropeçando nas letras e nas vírgulas, fui à cata de um novo celular e o consultor da companhia ao olhar a camiseta comentou: é impossível não cantarolar a música. Eu vestia uma camiseta com uns versos dos Beatles – she loves you yeah yeah yeah – explico. Em letras garrafais, não neste ridículo minúsculas-minúsculas anterior. Daí. Daí que me lembrei que foi com essa camiseta que cruzei o tempo regulamentar que separou dois mil e sete de dois mil e oito, trezentos e sessenta e cinco dias atrás. Noite tristonha. De luzes baixas. De taças sem repique. Sem tinir cristal a não ser timidamente. O primeiro dia do ano eu passei (nós passamos) em ambiente hospitalar. Uma grande enfermaria a céu aberto em que vivemos. Manhã, tarde, às vezes noite. Depois, uma enorme unidade de tratamento intensivo. Parece que tanto tempo já passou, bem mais que um mísero ano. Este, que dividi em peças de vestuário – uma camiseta de algodão, uns sapatos de couro, curvim. Como princípio, e fim. No meio, no meio, arriscaria uma lista sem ordem prévia, sem mergulho longo que o meu fôlego, neste instante, é curto – uma lista de coisas que fiz: - uma coluna escrita diariamente, e que veio substituir enquanto falta de tempo a minha disponibilidade para este blog; - uma campanha política derrotada, e que veio substituir por alguns meses a minha disponibilidade para a tal coluna; - um livro quase forçadamente publicado e do qual não dou muitas notícias porque o rebento já estava mais que grandinho ao nascer e dispensa a ajuda do pai desajeitado; - alguns bons novos amigos e o reforço de uns velhos. Não comprei a cama que queria e passei boa parte do ano dormindo no chão. E, quando dormi, dormi poucas horas ao dia. Comprei mais livros do que os li. Meu carro que me acompanhava há dez anos foi trocado – literalmente um branco por um preto. Fiz alguns meses de musculação. Continuei a fumar, às vezes desbragadamente. Fui ao pneumologista pela primeira vez, sem grandes prejuízos para o meu indeciso futuro. Bebi muito, bebi pouco, nas duas situações às vezes em excesso. Me senti livre, me fiz sentir-me livre. Estive ao ponto de enlouquecer (houve um dia que sim). Vi poucas vezes a lua cheia. Poucas alvoradas, alguns crepúsculos. Quase não me banhei no Atlântico. Estive mais fechado, em liberdade aprisionada. E para você que me lê, que me aparece aqui, vez em quando ou sempre, meu desejo que os próximos dias, meses, ano, sejam melhores – melhores de quê? Não sei, mas que sejam melhores, definitivamente melhores. Feliz 2009.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2008
Uma crônica de hoje, uma música de ontem
Amazing Natal
Me desculpem, mas este Natal nem Natal parece.
Eu sei, eu sei. As luzes coloridas continuam balançando nas árvores, noite ou madrugada adentro, o vento passeando ondas luminosas entre os galhos e as folhas.
Eu sei, eu sei. Nos corredores dos shoppings, as sacolas seguem, ondulando pra lá e pra cá, pra frente e pra trás das pernas dos passantes, pendulando desejos insaciáveis, e muitas vezes inconciliáveis, entre almas e corpos. Ou entre os corpos e os bolsos que os vestem.
Eu sei – eu ainda sei. Seus filhos já escreveram para o Papai Noel no Pólo Norte (e alguns já trocaram os hemisférios e garrancharam um “Pólo Sul” no dorso do envelope), pedindo a boneca, o trenzinho, o carrinho de rolimã.
Ah, eu já não sei. Não. Aqueles eram outros meninos, de outros tempos e lugares-comuns, quando havia ainda carrinho de rolimã, trenzinho e boneca.
É certo que as bonecas ainda resistem – mas como evoluíram, em todos os sentidos: as meninas de hoje, por exemplo, querem a boneca Ananda, aliás Amazing Ananda, ou seja, Ananda “Maravilhosa”, setecentos reais a unidade (R$ 699,99, pra ser exato), acompanhada dos seguintes acessórios: “um lindo vestido e sapatos, camisola, prato de espaguete, macarrão e cereal, todos com um lugarzinho para encaixar a colher, caixa de suco, biscoito, tortinha, pizza, escova de dentes, escova de cabelo e peniquinho.”
Bueno, depois de menu tão farto, não poderia faltar o peniquinho.
A descrição do brinquedo segue, detalhada, acompanhada de instruções e conselhos para o uso: “Nenhuma outra boneca é capaz de interagir tanto quanto Ananda. Ela reconhece a voz de sua ‘mãe’, envolvendo-a na brincadeira de forma inovadora e divertida! Ela ri, fala, chora, brinca e pede abracinhos. É uma brincadeira de mamãe e filhinha que você nunca viu! Ela reconhece a voz da ‘mamãe’!”
Uau! O “monstrinho” cibernético não parece sua própria filha? Ou nós mesmos? Afinal, rir, falar, chorar, brincar e clamar por abraços não é nossa lida diária?
Deixando a Amazing Ananda de lado – ou melhor: dormindo um soninho sossegado, um ronquinho quase inaudível acompanhando o inflar e desinflar do peito –, por que o sobrescrito continua achando que esse Natal nem Natal parece?
Não sei. Falta eletricidade no ar. Falta alegria, mesmo aquela travestida em consumismo desenfreado. Será a crise mundial espraiando seus tentáculos. Será aquele verso final, frase-síntese de Machado de Assis, tão antiga, sempre atual: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”
*
SONETO
Na íntegra, o soneto machadiano: Um homem, – era aquela noite amiga,/ Noite cristã, berço no Nazareno, –/ Ao relembrar os dias de pequeno,/ E a viva dança, e a lépida cantiga,// Quis transportar ao verso doce e ameno/ As sensações da sua idade antiga,/ Naquela mesma velha noite amiga,/ Noite cristã, berço do Nazareno.// Escolheu o soneto... A folha branca/ Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,/ A pena não acode ao gesto seu.// E, em vão lutando contra o metro adverso,/ Só lhe saiu este pequeno verso:/ "Mudaria o Natal ou mudei eu?"
MAIS DO MESMO
Ou seja, depois de tal soneto, qualquer crônica sobre o Natal torna-se inútil e redundante – e haja perturbar o velho bruxo na sua tumba, citando sua célebre questão.
NHEN
Mas outros poetas também merecer ser perturbados em épocas natalinas, todos batendo na mesma tecla com outros versos – Fernando Pessoa: Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade/ Nem veio, nem se foi: o Erro mudou./ Temos agora outra Eternidade,/ E era sempre melhor o que passou.
-NHEN-
O velho Drummond: Menino, peço-te a graça/ de não fazer mais poema/ de Natal./ Uns dois ou três, inda passa.../ Industrializar o tema,/ eis o mal.
-NHÉM
Nei Leandro (de Castro), por tabela e fugindo do nhenhenhém e cutucando a ferida: As meninas da Rua 25 de Dezembro,/ expostas ao odor e à fúria da maresia,/ expõem seus corpos em plantão permanente./ Não querem piedade. Querem foda./ Querem vinte, trinta dinheiros,/ em troca do corpo infantil que a maresia/ está corroendo até a morte prematura.
Lembrai-vos das meninas da 25 de Dezembro quando quebrarem as castanhas e erguerem as taças.
ZUNZUNZUM
Intervalo para notícias da Funcarte: além de Bob Pai e Bob Filho, aka Carlos e Alex de Souza, há um terceiro nome cotado para a Brouhaha: Hayssa Pacheco, do DN, o que seguiria a estratégia instaurada por Dácio Galvão de “um pé lá, outro cá”.
FINAL
Por derradeiro, mas nem por isso menos importante, me aproprio do “Poema para o Natal”, de Bosco Lopes, para seguir retribuindo, a todos, os votos que por aqui chegaram:
AMIGO, SOMENTE O FINAL DO POEMA/ COLORIDO ESTRELADO/ MANEIRA ÚNICA DE LHE DIZER/ FELIZ NATAL.
PROSA
“Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam.”
São João
O evangelho segundo João
VERSO
“Fui ser feliz.”
Lisbeth Lima
“The end”
“Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam.”
São João
O evangelho segundo João
VERSO
“Fui ser feliz.”
Lisbeth Lima
“The end”
sábado, 20 de dezembro de 2008
VERSO
efêmero é o amor sem corpo.
Napoleão de Paiva Souza, amor veneris in Apenas chegaram, Alexandria: Barriguda, 1999
sexta-feira, 19 de dezembro de 2008
quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
Trastevere, Rome, 5:15 a. M.
[Guido Crepax, Acqua Alta – com intervenção besta de midc]
foi então ontem que ele teve notícias dela, um muezim louco no passeio de Trastevere, canteiro central entre as luzes vermelhas dos cadillacs, a barba longa e negra e negra e longa, a mão elevada ao alto, abençoada e o dedo em riste, foi ele, ele quem falou da mulher estrangeira, descrevendo como em transe, com detalhes, em detalhes, cada fio rubro do seu cabelo à altura dos ombros, onde um dia, houve, sim, um dia, descansou sua mão enquanto alimentavam os patos no lago do parque sul, ele falou pro outro, seu dedo curvo apontando o zênite, os carros passando rasteiros ao longo de suas pantalonas azul-cobalto, esperança e glória, glória e liberdade, salvação e redenção, tanto havia por fazer que ao fim e ao cabo vocês nada fizeram, ou se fizeram foi muito pouco, um filho cego, outro surdo e retardado, um terceiro, uma menina, a mais bela de todos, porque azul-turmalina nos olhos, dentes brancos e o ursinho marrom de pelúcia a tiracolo, a vitrola zunzunando, tocando um Talking Heads de velha figura, era então inverno entre as margens do Tevere, um pouco de neve na ilha, um pouco de óleo nos dedos para abençoar o recém-nato, a menina, a terceira a nascer, o cordão cortado e ressecado, Massimo, sempre Massimo, a percorrer as ruas com sua Vespa branco-encardida, e ele, a assoprar as mãos buscando calor e fuga do frio que rondava as orelhas, ele sempre dizia para ela que tinha as orelhas frias, mas o coração quente e pulsante no lado esquerdo do peito, dizia sempre da vontade de partir, uma vez Málaga, outra Cabo Verde, porque ilha, porque arquipélago, porque corrente atlântica, foi quando subiram ao apartamento, o carrossel já com as luzes apagadas, subiram e não encontraram alguma resistência na porta de ferro batido, na circunferência do cadeado a sete chaves, na trava de segurança, abriram a bendita porta, arrastaram o cadáver pelo corredor, deixando as luzes acesas, as janelas abertas, veio o vento, e quando vinha o vento, àquela época, trazia odores do cemitério do Verano, ao fim e ao cabo, pouca coisa teve ele a dizer para ela, quando ela, sempre ela, decidiu embarcar naquele avião rumo às Baleares, o muezim, repito, insisto, não era da mesma classe dos que levaram Alfredo embora, derramando fogo, primeiro gasolina, depois querosene, sobre o amontoado de mapas e projetos e planos e figurações da nave central da igreja, sarça ardente, então, quando ele descobriu que era você quem enviava as cartas, que havia pagado o aluguel do quarto central, número onze, onze, anote aí, porque necessário, talvez, comparecer e enviar relatório devidamente autorizado e autenticado em cartório, enfim, quando ele descobriu que era você, já era tarde, confortavelmente tarde, ele evitou fazer qualquer tipo de acusação, optou pelo silêncio e pelo silêncio sucumbiu, tão triste como tristes foram os dias de sua vida.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
A última flor de laço
Olavo Bilac me escreveu. Postou um comentário aí abaixo. O décimo-primeiro, como uma bonus track excedendo os dez mandamentos. Chateou-se com as declarações de uma – aparentemente – estrangeira. Afirmou que os comentários estão parecendo uma “troca de afagos virtuais” – e o que, segundo o poeta, seria pior: “em vários idiomas”. Depois, diz que me acho e faço estilo latin lover.
“Mas o fã-clube anda exagerando”, continua, “este post é do dia 10 e ainda rende comments”.
Por fim, se lamenta: “Ah, se eu tivesse um fã-clube desses.”
Meu bilaquinho de meia-tigela: liberei os comentários pra não ter que ficar filtrando nada (inclusive o seu, que assina com pseudônimo ou é filho natural de algum parnasiano atrasado). Como este blog não é bem uma casa-de-mãe-joana, achei mais simples, especialmente pra mim mesmo, pra não ter que ficar me preocupando em não deixar nenhum comentário no atraso do meu próprio ritmo em checar emails.
Não há troca de afagos virtuais. Uma certa senhora anda treinando seu portunhol por aqui. Acha que me conhece doutra encarnação, inclusive em outras praias longe desta Ciudad de los reyes e reinas.
Não sou eu, claro, o mancebo a quem ela se dirige tão impetuosamente.
Mas fazer o quê?
Não vou censurar ninguém, a menos que use o espaço para execrar outro alguém que não eu mesmo.
Quanto ao fã-clube, crie o seu, ouça estrelas.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2008
Sumiu sem deixar vestígio
[Olga Baclanova, in A dangerous woman, 1929]
Sumiu sem deixar vestígio, a moça. Não foi encanto, tampouco desencanto houve. Escadaria de mármore, sapatinho de cristal. Houve uma noite, perto da meia-noite, em que ela ligou, a voz rouca ao telephon, tecendo redes, armadilhas pra peixes estrelas hipocampos.
Me enredei. Enrodilhado até o pescoço. Ainda posso exibir as marcas, arrumei emprego num Luna Park, entro antes da mulher-macaco. Monga. Foi ela quem de mim cuidou. Methiolate. Ardia, ardia a tarde com mil sóis, mil raios, mil folhas de outono, mil peixes sem ar.
Ao sumir, sumimos nós, que no deserto andávamos. Sumiu o lago as palmeiras o cesto de tâmaras. Sumiu nossa sombra, enrodilhada na areia quente, pastorada pelos escorpiões e por homens-azuis. Vez por outra a procuro, não ouço mais a sua voz.
Não existe vida após o silêncio.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
quarta-feira, 3 de dezembro de 2008
Níu-láife | 10 fins – segundo T. S. Eliot
I
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um gemido
[Os homens ocos]
II
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpétua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
[Burnt Norton]
III
As palavras se movem, a música se move
Apenas no tempo; mas só o que vive
Pode morrer. As palavras, após a fala, alcançam
O silêncio. Apenas pelo modelo, pela forma.
As palavras ou a música podem alcançar
O repouso, como um vaso chinês que ainda se move
Perpetuamente em seu repouso.
Não o repouso do violino, enquanto a nota perdura,
Não apenas isto, mas a coexistência,
Ou seja, que o fim precede o princípio,
E que o fim e o princípio sempre estiveram lá
Antes do princípio e depois do fim.
[Burnt Norton]
IV
Em meu princípio está meu fim.
[East Coker]
V
Não era (para recomeçar) o que antecipadamente se aguardava.
[East Coker]
VI
O conhecimento impõe um modelo, e falsifica,
Porque o modelo é vário para cada instante,
E cada instante uma nova e penosa
Avaliação de tudo quanto fomos. Apenas não nos decepcionaremos
Com tudo o que, decepcionando, já não causa mais dano.
[East Coker]
VII
Em meu fim está meu princípio.
[East Coker]
VIII
Onde o fim para isso tudo, para o surdo lamento,
Para a silente agonia das flores outonais
Que as pétalas gotejam e imóveis permanecem;
Onde fim que ponha termo ao torvelinho do naufrágio,
A súplica do osso nas areias, à insuplicável
Súplica para a calamitosa anunciação?
[The Dry Salvages]
XIX
Fim é o lugar de onde partimos.
[Little Gidding]
X
Não cessaremos nunca de explorar
E o fim de toda a nossa exploração
Será chegar ao ponto de partida
[Little Gidding]
E o fim de toda a nossa exploração
Será chegar ao ponto de partida
[Little Gidding]
Fragmentos de Os homens ocos e Quatro quartetos in T. S. Eliot; tradução, introdução notas de Ivan Junqueira – São Paulo: Arx, 2004
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
rubi
[Photo: Vernon Merritt, 1968, from Life Magazine - "A dark picture showing the strain of suspence of Mrs. Donn F. Eisele sitting on the side of the road gripping her hands during her husband's trip on the Apollo 7 mission."]
No vinho a verdade, mandou a mensagem.
À distância de semanas. Dias. Séculos.
Nunca se viram. Ou pouco se viram. Embora muito.
Desejo fogo-fátuo. Ardência na boca do estômago, por onde o coração insiste em sair. Aos pulos, aos saltos, na contramão da racionalidade.
O coração, sempre na contramão.
Encharcado de vinho, soçobrou. Permaneceu batendo, sincopado, no meio-fio.
Não chovia. Sem barcos de papel. Sem a certeza da infância, o sol amarelado da infância, pairando alto no horizonte, onde, a chuva?
Tão próxima da mão estava e ele não estendeu a mão.
Seqüestro, rapto, furto, roubo.
Batendo sincopado, no leito seco do rio.
Ainda a viu, à margem. Os cabelos esvoaçando, espalhando olhares de tristeza, porque de abandono. Porque impossível.
Não estenderam a mão um ao outro. Os dedos permaneceram sem se tocar.
Tão próximos.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2008
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