quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Trastevere, Rome, 5:15 a. M.




[Guido Crepax, Acqua Alta – com intervenção besta de midc]





foi então ontem que ele teve notícias dela, um muezim louco no passeio de Trastevere, canteiro central entre as luzes vermelhas dos cadillacs, a barba longa e negra e negra e longa, a mão elevada ao alto, abençoada e o dedo em riste, foi ele, ele quem falou da mulher estrangeira, descrevendo como em transe, com detalhes, em detalhes, cada fio rubro do seu cabelo à altura dos ombros, onde um dia, houve, sim, um dia, descansou sua mão enquanto alimentavam os patos no lago do parque sul, ele falou pro outro, seu dedo curvo apontando o zênite, os carros passando rasteiros ao longo de suas pantalonas azul-cobalto, esperança e glória, glória e liberdade, salvação e redenção, tanto havia por fazer que ao fim e ao cabo vocês nada fizeram, ou se fizeram foi muito pouco, um filho cego, outro surdo e retardado, um terceiro, uma menina, a mais bela de todos, porque azul-turmalina nos olhos, dentes brancos e o ursinho marrom de pelúcia a tiracolo, a vitrola zunzunando, tocando um Talking Heads de velha figura, era então inverno entre as margens do Tevere, um pouco de neve na ilha, um pouco de óleo nos dedos para abençoar o recém-nato, a menina, a terceira a nascer, o cordão cortado e ressecado, Massimo, sempre Massimo, a percorrer as ruas com sua Vespa branco-encardida, e ele, a assoprar as mãos buscando calor e fuga do frio que rondava as orelhas, ele sempre dizia para ela que tinha as orelhas frias, mas o coração quente e pulsante no lado esquerdo do peito, dizia sempre da vontade de partir, uma vez Málaga, outra Cabo Verde, porque ilha, porque arquipélago, porque corrente atlântica, foi quando subiram ao apartamento, o carrossel já com as luzes apagadas, subiram e não encontraram alguma resistência na porta de ferro batido, na circunferência do cadeado a sete chaves, na trava de segurança, abriram a bendita porta, arrastaram o cadáver pelo corredor, deixando as luzes acesas, as janelas abertas, veio o vento, e quando vinha o vento, àquela época, trazia odores do cemitério do Verano, ao fim e ao cabo, pouca coisa teve ele a dizer para ela, quando ela, sempre ela, decidiu embarcar naquele avião rumo às Baleares, o muezim, repito, insisto, não era da mesma classe dos que levaram Alfredo embora, derramando fogo, primeiro gasolina, depois querosene, sobre o amontoado de mapas e projetos e planos e figurações da nave central da igreja, sarça ardente, então, quando ele descobriu que era você quem enviava as cartas, que havia pagado o aluguel do quarto central, número onze, onze, anote aí, porque necessário, talvez, comparecer e enviar relatório devidamente autorizado e autenticado em cartório, enfim, quando ele descobriu que era você, já era tarde, confortavelmente tarde, ele evitou fazer qualquer tipo de acusação, optou pelo silêncio e pelo silêncio sucumbiu, tão triste como tristes foram os dias de sua vida.



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