domingo, 19 de abril de 2009

cotton club [eyewear two]


Então, Alice.



Aqui
estamos nós, por um segundo eterno, frente a frente como – eu diria quase como – no duelo do Ok Curral.



Chaparral.



Chapado eu, chapada você, em nuvens de alcahol – sem arco-íris.



Então, Alice, onde estão teus óculos doidos de um dia? Onde estão as peles brancas que cobriam teus braços, teu colo, tuas bochechas onde nunca cravei nem línguas nem pastei dentes?



Ok, Alice, quem saca primeiro? Eu? Você? Os dois?



Nesse segundo que já dura um século terminaremos por nos adormecer neste acalanto de fábula.



Teu óculo doido, meu chapéu de coelho, nossos embornais fatiados de carne de caça – perdizes, lebres, aves-do-paraíso.



Como num filme nossos olhares se encontram, caminham, serpenteando, à velocidade da luz. Zuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuum, plash!



A arcada, as cores sóbrias da arcada, o muezim encantado deitado entre as serpentes, chá marroquino servido em taças de barro. Odor de tabaco no ar. Há sempre odor de tabaco no ar quando o assunto é sexo, e é disso que estamos tratando nestes encontros fortuitos em público, e o público – se sabe, Alice, daqui até Fez – está sempre sedento de esperma e sangue: qualquer líquido corporal. Alice? Me ouve? Quem canta é você e eu nem sabia que as cordas vocais vibravam em teu colo quente. Alice Blues. Alice Jazz. Alice Bossa Nova.



Alice, sem óculos.



Sem olhos verdes em Gaza. Alice: as balas ecoam sobre nossas cabeças. Teu cabelinho tão arrumado, penteado de lado. Tua bolsa a tiracolo de couro cru e fatias douradas, teu colar de pérolas de Mallorca.



O segundo continua reverberando por sobre nossos olhares – Zuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuum, plash! Desta vez o anzol não abocanhou tão forte, não sangrou nossas gengivas, não nos fez arfar, decúbito dorsal sob o calor úmido da plantation, os negros entoando hinos, a pele branca clamando jeans, meu sexo endurecido.



Alice Jajouka.



E o público nem se deu conta de nossos olhares boca-a-boca.



E o público nem.



Se você parasse um minutinho – não este segundinho infame – eu te contaria de como as águas passaram sob a ponte nestas tardes de verão e peixes saltando espumas. Eu te contaria quantos amores fisgaram o músculo cardíaco e as cordoalhas tendíneas, sapecando estrelas de cinco e quatro pontas nas faixas abertas do tecido.



Espera, enquanto eu troco as cordas do contrabaixo, espera, enquanto eu copio uma partitura de Varèse, espera, enquanto arrumo a sala – cadeiras prum lado, cadeiras pro outro, duas arcadas que não se encontram e parecem bifurcar-se na extremidade onde a gaiola dourada exibe as plumagens autênticas do animal.



Assoalho de tábuas.



Alice. O Bastardo Arrogante é o primeiro alvo, nossa primeira caça. Não como o marajá de A volta ao mundo em 80 dias, não como o Egeu de Berenice, não como o louco de O coração denunciador. O jovem cavalheiro, cabelo emplastrado, cupê reluzente azul em chamas, abotoadoras de ouro na camisa sem mangas, botão abotoado até o último, pomo de Adão tremelicante. Alice, que sujeito! Construiu Taj Mahal para prisão d’oiro de sua princesa – a que eu quis um dia raptar.



Nem cova. Nem soalho.



Esta é a sua bala. De prata, como para os lobisomens.



Depois. O Janota Juvenil. Todo seu caráter concentra-se no verniz que cobre seus sapatos. Toda sua glória na força com que aperta mãos estendidas, toda sua vontade de galgar escadarias de mármore na placidez com que beija anel episcopal. O perfeito homem de preto, o macaco amarrado à corrente a sua cópia escarrada, a mulher de ventre flácido exposto aos holofotes do mundo sua medida das coisas e das engrenagens das coisas.



Esta é a cruz de ouro. A extremidade inferior um punhal camuflado, como para vampiros.



De como se planejam assassinatos faz-se nosso segundo eterno.



De como se esquartejam sonhos, a história é outra. Sangra-se o bicho pela goela, as mãos bem apertadas esquadrinhando as veias. É preciso evitar que se encham novamente, é preciso escoar o sangue no prumo da tigela de ágata, gotejá-lo até o fim. Espesso, quase duro e pegajoso.



De como fiquei louco e impotente, é o mote do processo em que estaremos dentro em pouco, apenas nos livremos desse novelo de segundo eterno.



Tantas vezes estive à beira do abismo, às vezes o automóvel parado, às vezes em desabalada carreira, a moça ao lado com um vestidinho curto de algodão, as perninhas magras, o peito arfante num sobe e desce soluçante.



Nós, que nunca nos apresentamos.



– Alice.



– Muito prazer.



Estendida a mão, toquei teus dedos. Dedos contra dedos são uma combinação geométrica, cálculo exponencial, fórmula fechada.



Nós dois, parados, um cordão invisível nos agarrando pelos olhos, vibrando no ar e ninguém se dando conta, flanando pra lá e pra cá, copos nas mãos, mãos nos bolsos, vertigem das horas crepusculares. Zunzum. Um vibrato contínuo. A banda completa, você no centro. Um cento de laranjas da Sicília. Laranjas vermelhas da Sicília. Sempre – naqueles dias nas ruínas da velha Modica – imaginei beber sangue, enquanto a jovem aristocracia local se entediava com seringas.


Aqui se repete a história, fluxo e refluxo, farsa dos grandes momentos, primeira noite de um homem.



Aqui. Você. Eu. De frente pro outro. A multidão alvoroçada de permeio. Nuvens de álcool. A moça partiu, foda-se a moça. Quanta falta de imaginação, quanta carência camuflada em sorrisos vazios. Espero que nunca mais me traga livros, a moça. Espero que nunca mais me telefone, na madrugada, escondida entre os automóbiles do subterrâneo.



E na verdade espero.






[barcelona, de mies van der rohe]

6 comentários:

maria disse...

epa,algum processo psicanalítico em curso? essa Alice parece a mesma Alice que tanto já me desaquietou.

midc disse...

tanto? eu nem lhe conheço, maria.

Maria disse...

o tanto não tem nada contigo, pq também não te conheço; tanto porque todos temos uma Alice, e ela pertuba ou não.

midc disse...

sorry, pensei q era outra pessoa - tb todos temos uma maria, e ela perturba ou nao.

Maria disse...

(rsrsrs) um João, um Antonio. Escolhas, acasos,encontros, desencontros. Voltando à natureza do belo que tu escreveste: ficar frente a frente, tete a tete, face a face muitas vezes nos faz impotente sim, e aí não há dedo que feche a fórmula.

midc disse...

assim sendo, estou quase escrevendo: "entao, maria. aqui..." etc.
rs