terça-feira, 7 de abril de 2009

Manuscrito encontrado entre as páginas de um livro












Ontem,
não fui ao cemitério com medo de encontrá-la. O que antes do medo era desejo me fez arrumar todo, vestir paletó de flanela, engraxar os sapatos, polir as abotoaduras e passar brilhantina nos cabelos. Ouvindo jazz. The city girls. Enquanto guiava pela cidade vazia, o sol tão morno criando sombras no canto das ruas, o lixo ainda a ser recolhido, minhas mãos fazendo curvas longas no volante hidráulico, a marcha ao alcance, à direita do volante, o sol derramando-se no capô longo, os pneus de faixas brancas e calota metálica acariciando num gemido o asfalto novinho em folha, o comércio fechado, uma ou outra senhorinha puxando pelo braço a irmãzinha enfeitada e o balão de gás da irmã menor debatendo-se contra o azul do céu, as nuvens tão estiradas como chumaços de algodão. Enquanto guiava pela cidade vazia, me veio ânsia de cigarro, e parei para abastecer benzina. A moça do caixa tão entediada e só, a quilômetros de distância de uma felicidade impossível, tão diferente da senhora, e, no entanto, na senhora me fez pensar. Eu estacionei sob a copa de uma árvore imensa, próximo ao carrossel de cavalinhos. As crianças ainda não lotavam o parque, seus gritinhos ainda eram esparsos e o homem do algodão doce tirava um cochilo antes de entabular conversa com a babá dos Carlson. Acendi um cigarro no outro, indeciso em ir ao cemitério. Sem saber se iria para encontrá-la, sem saber se a encontrando como procederia, sem saber se não a encontrando me viria desejos de me atirar do alto da ponte metálica. Já estava tonto no terceiro cigarro quando me lembrei que havia uma garrafa de uísque no porta-luvas. Meti-a no bolso interno do paletó e caminhei até a beira do rio, onde um grupo de rapazes e moças exibiam seus músculos na extensão dos remos, criando círculos infinitos que faziam tremer as margens sujas. O desejo deu lugar ao medo, não sei se aos poucos, ou violentamente num choque, numa explosão, num murmúrio quase inaudível. Tive medo de sepultar para sempre esse amor não realizado. Tive medo de que nossos olhares, se buscando em meio à multidão, traíssem o que nunca conseguimos realizar. E o que nunca realizaremos. Então, a garrafa secou e senti sede e fui ao clube procurar mais bebida. Os cavalheiros jogavam cartas. Entre um straight flush e um two pair os homens faziam negócios. Também imaginei ou desejei que o seu marido por lá estivesse. Mas, não. Muitos dos seus amigos giravam pelo salão, os olhos sempre atentos acompanhando uma boca onde brotavam dentes afiados. Eu ainda bebi duas doses, sempre de costas para o balcão, mas me cansei daquele clima de solidariedade machista e fui ao terraço. A noite apenas começava e as estrelas surgiam tímidas no céu. Soprava uma brisa quente e permaneci alguns minutos apertando as mãos no vazio da balaustrada, lembrando as cartas que trocamos durante aqueles intermináveis vinte e um dias e cento e quarenta e uma cartas. Quando voltei para casa não tive forças para reler todas elas e prefiro não comentar, aqui, nenhuma delas. A senhora sabe do que falamos e da intensidade em que escrevemos, entre cartas, bilhetes, telegramas. É a crônica de um amor interrompido, abortado ainda em seu esplendor. Há confissões, dúvidas, arrebatamentos, mas, sempre, a entrega não é completa. Enquanto me afundava cada vez mais na poltrona, cercado de folhas espalhadas e odor de tabaco, o telefone tocou. Me surpreendi com a voz de sua amiga, a senhora L. Tinha a voz rouca dos insones, dos embriagados, dos muito sofridos. Me perguntou: o senhor ainda gosta dela? eu respondi: não sei, sinceramente não sei. Porque não sabia. Realmente não sabia e não sei agora. Outras senhoras por mim passaram, e a senhora sabe disso. Mas não quero interromper a conversação com a sua amiga, ainda espero encontrar os motivos incógnitos por que me telefonou aquela noite. O senhor não me parece um tipo muito fiel, disse, e me pareceu ouvir um som de vidro se quebrando do outro lado da linha. Não, não sou, eu respondi. E me servi de mais uma dose. Vossa amiga é uma senhora muito discreta e não permitiu nenhum encontro. Que pensava, cavalheiro, ela disse, encontros fortuitos num motel de estrada? Não, respondi, em encontros cada vez mais intensos que explicassem o porquê de tanta aflição em nossos peitos. O senhor fala como um escafandrista, retrucou, como se o amor fosse um oceano com muitos tesouros submersos. O amor é um oceano com muitos tesouros submersos, eu disse. Ela é uma senhora casada. O marido não permitiria ser abandonado, completou. Eu permaneci calado e lembrei a noite em que, saindo do baile, a senhora me ligou, a voz tão trêmula e ansiosa, vacilante, secreta e ao mesmo tempo desejosa em se fazer ouvir, não apenas por mim, mas pelo mundo inteiro, a começar dos alto-falantes do salão, num discurso que encobrisse a música da super-orquestra de metais. E voltei a imaginar o vestido que nunca vi, as três voltas do colar lhe abraçando o colo. Sua boca se grudou ainda mais ao telefone e a senhora me disse: Não podemos nos encontrar. Então, o mundo ainda estava sob meus pés, tão sólido quanto instável. Eu não poderia prever que nunca mais nos encontraríamos e que as cartas seriam suspensas por uma ordem invisível e poderosa. Ainda me estranha como aceitei sem teimar essa decisão, como tudo que construímos se perdeu num instante, embora vinte e um dias e cento e quarenta e uma cartas não seja nenhum número estratosférico. O senhor ainda está aí? me interrompeu sua amiga. Sim, penso de sim, lhe respondi. Estava agora mesmo pensando em tudo o que aconteceu. Nada aconteceu, disse, e percebi um tom a mais de irritação em sua voz pastosa. Foi apenas um desejo involuntário num momento em que ela estava particularmente sensível por motivos que o senhor não precisa saber. Então, por que está me telefonando? eu pensei em perguntar, mas, levantando-me não sem algum esforço da poltrona, desliguei o telefone e caminhei pela sala, admirando com alguma surpresa as lombadas nas estantes. Me pareceram, naquele momento e sob aquela luz, milhares de lápides inquietas. Amor e morte sempre caminharam juntos. Tânatos e Eros, como queriam os gregos. Olhando as lombadas eu me transportei ao cemitério inacabado, onde sepultamos nosso amor. (Quanta tragédia nessas palavras.) (Preciso riscar isso, apagar isso, mesmo borrar.) Lhe vi, numa das fileiras, os olhos cobertos por óculos escuros, a boca descoberta, coberta de um leve batom, a pulseira de prata se enrolando na alça metálica da bolsa, os pés vestidos de um azul cintilante. Seu braço prolongava-se por trás das espáduas de sua mãe, as duas em sintonia fina no vestir-se, no portar-se, no sentar-se elegantemente. Mesmo num funeral as senhoras se portam como se numa partida de hóquei estivessem. Misturada às vozes sibilantes, um zunzum de insetos sibilantes, veio o silêncio dos seus olhos tão logo se encontraram aos meus. Então, seu rosto permaneceu imóvel, passivo e esculpido na pedra do instante, por um breve segundo que durou horas, até retomar vida, e acariciar o rosto da sua mãe e voltarem as vozes ao seu cicio intermitente. Minhas mãos suaram e não soube onde metê-las, deslizando-as ao longo da calça e mexendo, também eu, o rosto à procura de nada. O céu tão baixo que poderíamos tocá-lo com a ponta dos dedos. Então, a multidão se afastou como num mar que se abrisse e o caixão passou por entre os homens sérios de frontes reverentes. Tornado à biblioteca, me senti qual Plutão raptando Prosérpina ansioso em pôr em sua boca três sementes de romã para que nunca mais voltasse ao seu mundo. Não o fiz, mesmo por que a senhora nunca me pediu esse seqüestro, já então inútil, movido apenas por um sonho complacente envolto em névoas de ilusão retalhada, costurada em anos de desencontros mútuos. Não espero que receba esta folha que penso em queimar ou deixá-la perdida em algum livro esquecido em prateleira inacessível à banalidade dos olhos e à indiscrição das mãos. Sei, agora, que não mais a encontrarei, nem em funerais, nem em batismos, tampouco em jantares formais. Sei que a partir de hoje me sentarei na pedra do banco onde nunca nos encontramos, no lugar que freqüentamos, em horários diferentes, em diferentes dias. Tudo tão diferente que se poderia dizer: Em diferentes anos. Num século ímpar a cada um. E olharei à minha direita. E à minha direita estará o corredor irregular, o soalho de madeira clara, as paredes vertiginosas, o arco da porta que emoldura o jardim, onde, ao fim, resta solitário, claro e sombrio, segundo as nuvens do céu, o peixe de porcelana azul-fechado, rodeado de ladrilhos entre o branco e o anil. A grama por aparar. O peixe de boca aberta sem uma réstia d’água. É único modo de marcar a imagem em minha lembrança, desenho, perspectiva, de um plano além da realidade. Como se eu, o amante inacabado, fosse o arquiteto preferido do Imperador da Abissínia, de Roma, dos Estados Unidos da América, do Caralho-A-Quatro, seja lá em qualquer lugar do Mundo, onde ele finde. E continuarei sentado, o rosto voltado à minha direita, até que as plantas de mim se apoderem.








[fotograma: un chien andalou, 1929]

Um comentário:

Carito disse...

bebendo dessa fante, desse john fante, me embriagowski, vá tomar no bukowski, mãos ao walt, whit-me, please, calma, já foi, já é, poesia há sim e é assim mesmo cheia de nãos, a ficha caiu fernando abriu o abssínioficado que não ficou! lucy in the carrossel with diamonds! réstia d'égua! arre César!