sexta-feira, 30 de maio de 2008

O homem chora [280508]

[Foto de Man Ray, claro]


Graças aos meus pais, que nunca me admoestaram o dito “Homem que é homem não chora”, me senti, se não induzido, ao menos liberado para o pranto sem culpas.

E tome choro. Ora, feito qualquer bípede pós-Cró-Magnon, já nasci aos berros, e a porrada do pediatra foi a primeira que a vida me aplicaria, primeiro nas nádegas, depois na cara, no peito, no fígado – que a rapadura pode ser doce, crianças, mas igualmente quebra os dentes, os mesmos com os quais construímos sorrisos, entre uma lágrima e outras.

Mas, fora aquele tirado a fórceps, o choro pode ser do tipo “romântico-emocional”, matéria que dizem ser da alçada das meninas, derna o tempo em que escondiam cartas de amor entre os seios em flor desabrochando.

Pois, confesso que chorei – e como chorei, à semelhança do canto de Cauby. Ainda lembro quando fui ao Rio Grande – o cinema fechado pra futura demolição – assistir “Uma janela para o céu”. O filme é de 1975, imagino que tenha passado por aqui no mesmo ano ou no seguinte: contava eu, então, com uma década de vida. A historinha, para quem não conhece ou não lembra, era uma mina de lágrimas: moça esportista dos chamados esportes de inverno sofre acidente em cima dos esquis e permanece paralítica do pescoço pra baixo. Mas o ápice, mesmo, de dar nó em pingo d’água e na garganta do caba mais macho do Alto Oeste, era a cena em que, no processo de reabilitação, a heroína mostrava ao namorado os lentos progressos dos seus nervos: com as mãos contraídas ela consegue extrair de uma tigela uma única batata-frita, espalhando as demais pelo chão. O rapaz, incorporando o supra-sumo da frieza masculina fica decepcionado e dá o pira, o fora, como se dizia uma época. A moça, claro, chora – e eu na platéia, claro, idem. Embora assustado com a idéia de que, no acender das luzes, os outros meninos me vissem a debulhar lágrimas, como uma mocinha.

Vem daí a expressão engolir o choro – tão indigesta quanto engolir sapos.

Pra completar, era um tempo em que o cinema não se obrigava ao inamovível “happy end” de hoje – e com as luzes prestes a iluminar a sala, o filme findava com a moça, na cabeceira de um campo de pouso, assistindo o avião com o novo namorado (que incorporava os machos sensíveis) despencar céu abaixo. [vendo o link acima me flagrei bolando as trocas: a tal cena, como a descrevi, não existe.]

Doutra feita, fui às Lojas Brasileiras, no tempo em que alguns ainda a chamavam de “Quatro e Quatrocentos”. Comprei com o dinheiro da mesada dois bichinhos de borracha: um burrinho cinzento e um diabinho vermelho – ligados a um tubo que insuflava ar em seu interior, eles saltavam pra lá e pra cá.

Nem bem cheguei em casa, meus irmãos, todos maiores que eu, tiraram um sarro pela segunda escolha: onde já se viu trazer o tinhoso pra dentro de um lar católico?

Com o rosto manchado em lágrimas de raiva incontida (desculpem o lugar-comum e piegas), escondi burro e diabo debaixo da cama. E prometi a mim mesmo que os protegeria de toda agressão humana e fraterna. Não do choro, mas do ranger de dentes.

Menina na praia [270508]

[foto de Joca]


“Ela tava chorando, daí eu peguei uma conchinha pra ela parar de chorar.” – E não é que “ela” parou mesmo de chorar, e toda contente veio me mostrar a concha, ainda fechada sob o calor do sol e a placidez do mar?

“Ela” é minha filha, sexto ano sobre a Terra. E quem me comunica a boa ação é Samantha, uns 11, ou 12 anos, imagino.

Samantha – quem eu nunca vi, que veio à praia com o pai, a mãe e uma bicicleta – tem o rosto de menina, o corpo de menina e as atitudes que as meninas de uma época tinham e nem sei se a maioria ainda preserva: aquela jeito calmo de quem deseja ter apenas a idade que realmente tem, e não a idade precoce que a mídia cheia de tchans e créus insiste em imiscuir na cabeça e no corpo das infantes.

Até no nome, Samantha foge do lugar comum – não lembro de nenhuma atriz ou candidata à, ou nenhum personagem de novela com este batismo, ao menos nos últimos anos. Mais me evoca “A feiticeira”, seriado anos 60 ou 70. Samantha, a feiticeira de nariz arrebitado, era casada com um publicitário americano e mãe de Tabatha.

Samantha, a menina na praia, também faz suas mágicas, mergulha e colhe estrelas, revelando os desenhos escondidos na circunferência de seus corpos: “Tem forma de flor”. E sorri, como se a frase fosse banal e não um exercício de poesia. E se deixa molhar os cabelos e escorrer o mar salgado em seu rostinho ainda infantil e inteligente.

Mergulha, colhe estrelas e conchas e adverte sobre alguns bichinhos do mar: “Não coloca na boca, não, que pode ser venenoso.” Imagino que não tenha irmãos menores, mas os deseje. Imagino que goste dos pequenos, por isso, pela solidão tranqüila em que vive, como filha única de um casal ainda jovem. Imagino que goste de ensinar aos menores o pouco que já aprendeu na sua curta e breve vida, de 11, 12 anos. Imagino que não seja uma daquelas meninas, particularmente ricas e cheias de vontades e brinquedos que não cabem mais nas estantes decoradas. Imagino que não tenha TV a cabo e, talvez, não estude em escola particular. Imagino que seja uma boa filha – e que seus pais sejam bons pais. Simplesmente.

Tudo, enfim, tão longe e tão perto do noticiário, com suas celebridades, seus escândalos, seus mistérios e segredos, suas negociatas interesseiras, seus anúncios de uma vida plena e satisfeita no novo condomínio de nome pomposo e quase sempre estrangeiro, de “localização privilegiada”, de “arquitetura diferenciada” e “acabamento de alto padrão” (e, tudo, ilustrado pela clássica foto do casal e um ou dois filhos, saboreando os momentos de lazer, na piscina vistosa, no “espaço fitness” e naquele “gourmet”, no “street ball” e no “kids club”, que nem imagino o que realmente possam ser).

Olho Samantha e seus pais afastando-se ao longe, na faixa larga de areia que a maré baixa deixou e o domingo de sol não conseguiu lotar: não acho que nenhuma agência de publicidade os contratasse para os anúncios de página inteira que prometem que “viver bem é uma arte”. Não, não. Não têm os estereótipos de quem vive “bem” ou que faça de sua vida o que se convencionou chamar “arte” – aqui, numa confusão de falsos entendimentos com “glamour”, “fashion” e outros termos da moda.

Não. É apenas um casal e sua filha, que vieram para praia, tomaram banho de sol e mar, e, ao final, pegaram a velha bicicleta e voltaram pro arroz e feijão também dominical. No meio tempo, a menina viu outra menina chorar, mergulhou, e, num passe de mágica afastou as lágrimas e iluminou o domingo. Simples assim.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Leviatã





[A Baleia por excelência, quem diria, foi parar nas mãos do estilista Ronaldo Fraga – do sítio da CosacNaify ponto com ponto bê erre]


Na contramão das torcidas literárias organizadas, não me rendi aos propalados encantos da nova edição brazuca de “Moby Dick”, o clássico por excelência não apenas do seu autor, Herman Melville, mas de toda a literatura norte-americana, e, por extensão, mundial.

Isso, sob a chancela da mais-querida editora nacional entre os modernetes e designers de Deus-salve-a-América-do-Sul: a Cosac Naify.

Verdade seja dita: a Cosac tem edições que pedem para serem levadas pra casa, e acariciadas com as mãozinhas limpas e os olhinhos túrgidos dos viciados em livros. O basbaque – de preferência na solidão do vício, o restante da casa dormitando – toma o exemplar em mãos e admira embevecido a última compra. E se parabeniza pelo feito, atitude, bom gosto, de ter comprado aquele livro. Que nem sempre lê.

Quase sempre acerta, a editora do Sr. Charles Cosac, um tipo que poderia ter saído da última parada gay, se o evento tivesse apenas ele como única atração – e se o cenário não fosse a Paulista, mas o principado de Dubai.

A Coleção Mulheres Modernistas, por exemplo, é um primor que dispensa retoques e elogios: vale quanto pesa e mais ainda do que custa. Por ela já foram publicadas Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Karen Blixen e Marguerite Duras.

A Coleção Particular acertou com “Primeiro amor” de Beckett e com “Bartebly, o escrivão” de Melville – e nem tanto com “A fera na selva” de Henry James (em se falando do tal livro de designer).

Feito e efeito maior fez a editora com “Ismália”, poema de Alphonsus de Guimaraens com ilustrações de Odilon Moraes. Como explicar o desejo quase incontornável de pagar 45 pratas por um livro-poema-objeto e seus tão somente vinte versos?

A lista é extensa, mas impossível não citar os livros de viagem de Joseph Brodsky, Elias Canetti, Le Corbusier e Jean-Paul Sartre, narrando (mais que descrevendo) cidades fantásticas como Veneza, Marrakesh e Istambul.

E como ler, em pleno século 21 a maravilhosa “História do olho”, de Bataille, com o belíssimo ensaio de Cortazar, senão pela Cosac Naify?

Basta, basta.

Estou – talvez – apenas provando que não é má vontade contra a editora, aliás.

Então, “Moby Dick”, em nova tradução e edição moderninha? Nnnãã. Faço até e ainda o rumor de quem limpa os dentes com a língua, para horror do Senhor Charles. O livro ficou grande demais, grosso demais, as páginas de um branco excessivo, a gráfica mais adapta a qualquer outra coisa senão ao capitão de uma perna só, à voz de Ismael e às tatuagens de Queequeg.

Vou ficar mesmo – para horror dos entendidos – com a minha velha edição da Francisco Alves, com a sua capa fake, com a introdução de Lêdo Ivo, com a tradução de Berenice Xavier.

E, no mesmo dia em que rejeitei o Moby da Cosac, levei pra casa uma quinta modernista: Flannery O., na lombada, F. O’Connor, na capa.

Uma maravilha.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Cerimônia do chá




[Farinha Celeste, Photoshopmontagem de Joca Soares]


Tomei chá de sumiço, bem o sei.

Digo mais: foi às cinco horas da tarde.

Ainda: aos pés, não da santa cruz, mas do relógio da Junqueira Ayres.

A Junqueira Ayres é uma avenida, uma ladeira, o senso do trânsito é uma subida, longa subida, doem os pés, formam-se calos.

Junqueira Ayres, quem demônios terá sido Junqueira Ayres? Ligo pr’O Fotógrafo, O Fotógrafo não o sabe, não o lembra. Ah! Não vou ligar pra mais ninguém! Outros saberão – deixo os outros em paz, santa paz de deus e crianças no cochilo pendular, zum-zum, zum-zum, modorra de tabuada.

Às cinco horas da tarde, pés do relógio da Junqueira Ayres.

Chá.

O trânsito dormitava. Carros, caminhões, ônibus, jardineiras e o velho bonde puxado a burrinhos, as orelha espanando moscas imaginárias, os olhinho cerrados, baloiçar de focinho teimosos.

O relógio marcando: cinco horas. Ponteiro pequeno no cinco, ponteiro grande no 12.

O tráfego, parado.

A mesa, aparelhada por mãos lépidas e trigueiras, restou em falso.

Alguém veio e botou um calço. Jornal de antontem dobrado em três.

Por entre as máquinas sonolentas, um desfile de fantasmas.

Reconheci alguns. Ferreira Itajubá com seu violão de folhas de flandres pra chuva não chupar a madeira. Othoniel Menezes logo atrás. Empurrava um carro de rodas, na verdade um leito hospitalar sobre rodas, o lençol remendado, com marcas das letras que denunciavam a instituição e, em riba, um enfermo – Gothardo Neto, a loucura tomando de assalto o rosto em ríctus doloroso. O olhar solto à procura de Maria das Mercedes. Juvenal Antunes vinha de charla alegre com Abner de Brito. Inexplicavelmente Antunes exibia as gâmbias magras mal cobertas por um arremedo de ceroula, dir-se-ia quase um Quijote sem Rocinante. Como se normalíssimo fosse circular em tais trajes na Subida da Ladeira. O velho Esmeraldo vinha logo atrás, caderno de anotações numa mão, lápis grafite noutro punho. Os olhos aquilinos bem plantados nos dois à frente. Os cabelos do velho pareciam algodão doce, derramando-se por trás do crânio resoluto. Noutro extremo da ladeira, Celso da Silveira apoiou-se em João Lins Caldas – também já esfalfado com o peso morto duma mala de onde saíam fólios e ondinas.

Muito mais gente vi e me canso de a todos anunciar.

Melhor voltar pra mesa, aquela, do chá das cinco. Chá de sumiço e bem-passar.

A mão que findou de aparelhar a mesa – redondinha, de três pés arqueados – calçava luvas: era a mão de Dom Manuel d’Assis Mascarenhas. Vestia-se o homem assim – na descrição certeira de Luís da C. C.: “calção de seda e sapato de entrada-baixa, com fivela de ouro.”

Baixo, a cabeleira voltada pra trás e a ausência de barbas que provocou assombro nos habitantes da então Aldeia dos Reis, Dom Manuel tirava o chapéu para os mendigos e “só falava com mulher estando acompanhado pelo seu ajudante d’Ordens, Antônio José de Moura.”

Pois, não foi Moura a calçar a mesa pondo-a em nível horizontal para que a loiça não escorresse ladeira abaixo.

Foi Beleza. O criado que ousou desmerecer a beleza cantada e decantada da Cidade-Aldeia-dos-Reis.

O Palácio de Dom Manuel, presidente que substituiu aquele Parrudo, nato Silva Lisboa, ficava na metade da Junqueira Ayres, então Rua da Cruz, hoje lugar das Artes & Ofícios. Uma turma levantou pelas axilas o Beleza: foram lá pelos lados do rio, surraram-no com gosto inaudito.

De novo, cito Luís da C. C.: “Diante do pai não se acha filho feio.”

Durante o chá, Beleza ainda exibia as marcas da lição paterna. Ajudou-o no serviço um certo Inselença, criado do irmão mais gordinho de Auta de Souza. Ainda arrepiado com as vozes que ouvia na casa do patrão – mui parecida, diga-se lá, com a voz que tangia as cordas do violão de folhas de flandres.
Terminei o chá e mal tive tempo de pulir o buço com o guardanapo de linho branco que uma moça muito simpática mo passou: não me disse o nome de pia batismal, apenas me olhou com uns olhos negros de azeitona madura colhida no pé. Na boca um batom discreto carmim. Ainda olhei pro fundo da xícara de porcelana inglesa, um restinho de chá reluzindo o crepúsculo sobre o óleo ribeirinho. Então, tudo sumiu, porque o chá era de sumiço, sumiram eles, sumi eu.

Voltei ainda há pouco. Trazia areia branca nos pés, a sola queimada molhada de água salgada.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Há dezessete anos


Há dezessete anos e o que me lembro é o braço de minha mãe segurando o meu, mão contra mão, dedos trepando-se em dedos, sufocando o tempo e me liberando o choro.

Há dezessete anos.

Uma criança nua, por trás do sangue e das vísceras, um choro de bebê.

Um rosto massacrado, berrando tintas.

Dezessete anos.

A espinha dorsal nua, o lençol descobrindo a pele branca, uma nuca, uma mulher sem rosto.

Eu, todo amordaçado, todo amarrado, todo higienizado, todo estéril, insípido, inodoro, impotente.

Sangue, gazes, assepsia em tons marrons, em crepúsculos escuros, dormentes, etéreos.

Meus pés, como estariam?

Depois, a criança nua, por trás do sangue e das vísceras, um choro de bebê. A camisolinha de bebê, o nome bordado, as flores bordadas – alguém esqueceu de bordar o destino, os percalços, a sinuosidade do caminho: alguém esqueceu de bordar a distância, o adeus.

Engulo o vazio. O móvel move-se. Descemos ao inferno das saudades. É outra mão que aperta a minha. Desta, sem dedos entrelaçados, apenas o punho contra o punho, o punho engolindo o punho, o punho engolfando o punho, o punho fagocitando o punho, o punho digerindo o punho, como uma jibóia que engoliu o boi e o transformou num arremedo de chapéu.

Agora, é uma luz que ofusca, uma luz que ofusca com o auxílio de vagas e vagalhões prateados, serpente de escamas que se repetem e brilham sob o sol.

Somos dois, às vezes três, uma vez, chegamos a quatro. Brincamos. Enquanto o sol nos engole, nos engolfa, nos fagocita, nos digere. E depois nos expulsa para sempre, cobertos de sangue e vísceras, sem a fluorescência que nos limpe das marcas e das cicatrizes que os anos, dezessete anos, teceram sobre a pele. Sem um afago, uma carícia, uma palavra: apenas o silêncio de uma mão grosseira enfiando o metal pontiagudo.

Há dezessete anos.



Haja cultura pra cuspir na cultura [130508]


[detalhe distorcido de foto original de giovanni sérgio]


Fala-se muito na Capital do Ryo Grande. Um disse-me-disse dos demônios.

Às vezes acho que a imprensa só existe pra repercutir e ecoar essas fofocas – e se retroalimentar nelas, num processo autofágico onde nada se perde, tudo se recicla, de um extremo a outro do tubo digestivo.

A essa altura da coluna, terceiro parágrafo se iniciando, as almas sebosas e pias – e aquelas que comungam em ambos adjetivos – devem estar aguardando, ansiosas, que eu desça o cacete no Colunismo Social (Capitalize Each Word, que é de bom tom).

Não, neguinhos e neguinhas: vou descer o malho, mesmo, na Cultura, com cê maiúsculo, minúsculo, bold, itálico, o escambau.

Pense numa turma perigosa. Panelinhas, arrumadinhos, turminhas, qui-qui-quis, quó-quó-quós, blá-blá-blás. E tudo edulcorado com o supra-sumo da boçalidade literária. Escrevas errado e serás criticado. Escrevas certo e idem. A conjugação também se aplica para outras atividades [sic] culturais: pintar, atuar, cantar, filmar – e por aí vai.

Ouse criticar um deus, semideus ou entidade menor dita cultural, artística, intelectual, que verás o furdúncio e rebuliço que se propaga feito fogo em pasto seco, esturricado: as vacas sagradas põem-se a mugir e baloiçar os guizos e amolar os chifres pra dar uma carreira no profanador de templos. Ou, se reúne uma reca de marmanjos ou moçoilas pra aplicar uma lição, sova, castigo, no indigitado.

A turma só se entende com tapinhas nas costas e bater de vidros de geléia recheados da velha cerveja doirada, precinho camarada pra quem tem, via de regra, os bolsos vazios.

Lembra aquele papo do sujeito que gasta 200 pro outro não ganhar 20. Dizem que a frase é de Cassiano Arruda Câmara. Ligo pro jornalista: “Não fui o autor, mas o divulgador durante muito tempo, desde os anos 70. Provavelmente foi ouvida em Nova Cruz, coisas da sabedoria popular. Mas continua valendo”, encerra célere o colunista, comentando ainda que esta “minha área”, a Cultural, “é muito árida”, além de diluída no entretenimento e no lazer.

Pois, gosto muito da releitura poética da frase, feita por Adriano de Sousa em “O alvissareiro”: “uma aldeia onde gasta-se 200/ pro galado da oca ao lado não ganhar 20”. As cerejinhas são os termos “aldeia”, “oca”, e o fenomenal “galado” – expressão que é a cara da Província.

Como a Cultura Potyguar é terra desolada, desamparada, paupérrima, favelizada, sempre com o pires nas mãos mendicantes, falar de 200, 20 ou dois mil-réis é besteira: aqui, intelectual não gasta nada pro outro intelectual continuar na penúria. Não gasta porque não tem. Mas faz um estrago danado. Sobem nas tamancas, empinam-se no salto alto, alçam voz e verbo, dedo em riste.

Esporte de intelectual é puxar tapetes. Ou esteiras, ou capachos, ou panos de chão. De preferência, claro, com o inimigo em riba.

E como têm inimigos os intelectuais que sobrevivem às margens do Ryo Grande! Nas Academias, nas Sociedades, nas Associações, nas Fundações, nas Universidades, nos Grêmios, nas guildas, nas calçadas, nas mesas. Lembra aquele poema do Drummond, às avessas: “João odiava Teresa que odiava Raimundo/ que odiava Maria que odiava Joaquim que odiava Lili/ que não odiava ninguém.”

O poema chama-se “Quadrilha”. Pois, pois, de associações com intuito mafioso o Erre-Ene é pródigo.

Quanto à Lili, coitada, que no poema original casava-se com J. Pinto Fernandes, “que não tinha entrado na história”, ih! Esse é o pior de todos!

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Fliperama epiléptico [140508]




Assistir “Speed Racer” é jogar fliperama durante um ataque de epilepsia depois de engolir quaisquer pastilhas de efeito alucinógeno. Se a trilha tivesse uma cítara e ecos de “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” e “Their Satanic Majesties Request” (Beatles e Rolling Stones, respectivamente) ou pitadas da trilha do Pink Floyd para “La Vallée”, então, o negócio era psicodelia pura!

Mas assistir “Speed Racer” é sentir-se explicavelmente velho. E cansado. E sonolento. E acabrunhado. E deslocado. E inquieto. É se perguntar: “Que diabos eu vim fazer aqui?”

É tentar encontrar um roteiro como aqueles de antigamente, boy meets girl e pronto – foi o então jovem cineasta francês Leos Carax que assim definiu a súmula de todos os filmes: um rapaz encontra uma moça e lá se vai toda uma história.

Em “Speed Racer”, o menino encontra a menina, mas o mancebo está mais interessado em carros de corrida do que nas curvas de uma mulher. Tanto que o único beijo que rola nos 135 minutos de duração do épico feérico dos irmãos Wachowski é precedido do aviso irônico que a cena seguinte pode chocar o público, anestesiados quaisquer sentidos que não sejam a visão e a audição pelo borbulhar de luzes e o ronco dos motores – é como se aqueles minutos na parte final de “2001, uma odisséia no espaço”, de Kubrick, quando o astronauta viajante mergulha fundo no espaço, durasse todo o tempo do filme, que faz jus ao adjetivo “speed”.

É como estar numa discoteca sem As Frenéticas saracoteando as cadeiras e as cabeleiras black.

É como tomar um porre de pastilhas multicoloridas e encontrar-se, misteriosamente, num quarto de motel, em companhia de Ronaldo Nazário e três seres estranhos.

O filme se parece tanto com o desenho animado original que nos perguntamos pra quê gastar tanto dinheiro pra fazer algo em carne e osso e efeitos especiais se o resultado final é quase cópia c&c do desenho original – é como gastar mais dinheiro copiando uma bolsa Louis Vuitton do que os custos de produção do produto autêntico.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

alcatéia remixed by afonso martins




Harlem-Beco da Quarentena:
nome-título-letreiro-legenda-placa luminosa de lendário show da Alcatéia
Maldita, nos anos 70, salvo engano no teatrinho do Alecrim. Pesquisando agora em
meus arquivos alternativos vejo que o poeta João da Rua menciona um show deles,
"A estrela do cão maior", de 1974, no Sandoval ("Raul, a voz negra melodia da
alcatéia", artigo publicado no jornal-fanzine Delírio Urbano nº 3, 1986). Em
artigo de 1992 para o "Sarau Cata-Livros", João situa o Harlem-Beco da
Quarentena no ano da graça de 1976, no mesmo bat-local.Jota Medeiros, em sua
"Antilogia", aponta um show da Alcatéia em 1979, produzido pelo poeta Osório
Almeida, sem maiores detalhes. O fato é que a foto me trouxe à tona esse barril
de referências, e vendo ali no teatrinho do Tirol esse black-man dos nossos
tristes trópicos, lembrei das capas de sam cooke e james brown (live at the
apollo) e dos discos de jazz da blue note, dos luminosos do cotton club, e sly
stone e prince e temptations e kool and the gang e mick jagger e os panteras
negras e um papa legba haitiano, lobos e lobos...

A melhor banda de rock do planeta [120508]




O título é pomposo, sei. Mas a Alcatéia Maldita bem o merece. Não que signifique muita coisa, vindo desta coluna dos cafundós do planeta. Qualquer bandinha já recebeu prêmios mais consagradores, inclusive por essas bandas, digo, cafundós. Mas a Alcatéia faz jus ao adjetivo que a define, que a torna única – e passa ao largo dessas feiras paroquiais e universais de vaidades contemporâneas.

Maldita.

Dia desses, pra ser exato, o último oito de maio, dia do artista plástico, entraram no palco do TCP, o teatrinho de cultura popular da Fundação Zé Augusto. Raul, Franklin, Fidja, Julinho e Johnson. Voz, guitarra, bateria, baixo e sax. A platéia escasseava, umas 30 almas, um pouco mais, um pouco menos.

A Alcatéia nem tchuns: duas ou três palavras incluindo o boa noite e pronto. Rock. É rock mesmo como complementavam nos idos dos seventies. A Alcatéia é dessa década. E dos oitenta, e dos noventa e dos novos anos Double Zero, já em seus atropelos e suspiros finais.

Rock? Não encontro palavras para definir o som de Raul e bad company. Tem a cara dos setenta, mas sem o saudosismo óbvio. Tem a cara dos zero-zero, mas sem as pseudomodernidades electrônicas. Os caras conseguiram se manter atuais sem fazer concessões nem ao passado nem ao futuro.

As letras são uma maravilha – não sei citar nenhuma, de passagem, mas sei que são, é assim que as sinto em cada show que vou, quase como se fosse a uma missa (maldita, claro). Minto: Formigas transando o bordado do chão, são uns versos de “Floresta marrom”, um dos ícones do grupo.

Devo saber de outras letras, em pedaços, em restos, em descompassos. Mas, não consigo pensar muito na Alcatéia e em Raul sem pensar que é uma tragédia que não tenham discos gravados, que não existam ao menos velhos long-plays nos sebos, como se pode ainda encontrar aqueles da Banda Imaginária, Lóla, Impacto Cinco e Terezinha de Jesus, pra citar alguns “conterrâneos”.

E como não encontro palavras, vou de carona nas de Carito, vocalista de Os Poetas Elétricos, em seu blog: “antes desse alvoroço em cima de misturar rock com isso e aquilo, Raul jazz misturava rock com tudo... antes de descobrirem a pólvora da mistura, Raul já tinha explodido a mpb local desde os anos 70”. Carito (que também já fez história com os Fluidos e o Modus Vivendi) atende a necessidade do público de referências externas para supostas comparações e definições, traçando um paralelo entre Raul, Van Morrison, e Mick Jagger – “invoco as forças místicas do nordeste só para não dizer que não fiz o que todo mundo parece que tem que fazer nesses tempos pós-não sei o quê: respaldar Chico Antônio através de Mário de Andrade, etc.”

Uma ótima provocação: afinal, Chico Antônio é bom e interessante e “massa” e o escambau porque é tudo isso mesmo, ou, é tudo isso porque Mário de Andrade deitou os olhinhos por trás dos oclinhos e se encantou com o mulato?

Raul e sua Alcatéia Maldita são a melhor banda do planeta porque se parecem com outras melhores bandas do planeta, ou, são a melhor banda do planeta mesmo e Zé-finí?

Eu fico com a última opção.

E continuo na carona alheia do poeta elétrico: “Raul traz clássicos autorais, mas também novidades, bons artigos e melhores preços, tal qual a antológica ‘Casas Cardoso Tecidos’, embora ele não seja o centro da moda. Ainda bem!”

Falando de moda – agora não no sentido metafórico, como na conclusão de Carito – Raul tem uma moda própria que deixa no chinelo quaisquer fashion week dessas, daqui e alhures: usa sempre calças jeans que ressaltam o corpo magro e longilíneo (daí a comparação com Jagger), um cinto com a ponta ameaçadoramente solta, óculos escuros e chapéu (que pode ser de palha ou couro ou feltro, mas são sempre uma referência ao Nordeste). Dentes brancos, de índio. O homem da cobra, mala aberta no centro do chão da praça. “Se vestia fantasistamente”, assim descreve Mário de Andrade um curador de cobra que conheceu apenas na versão de Cascudo: “a roupa era de cor berrante e o chapéu coberto de pele de maracajá.”

Afonso Martins remixou visualmente uma foto que fiz de Raul – não publico aqui porque só faz sentido em cores fortes. Explica Martins, transcendendo a foto numa definição digna de verbete: “O fato é que a foto me trouxe à tona esse barril de referências, e vendo ali no teatrinho do Tirol esse black-man dos nossos tristes trópicos, lembrei das capas de Sam Cooke e James Brown (Live at the Apollo) e dos discos de jazz da blue note, dos luminosos do Cotton Club, e Sly Stone e Prince e Temptations e Kool and the Gang e Mick Jagger e os Panteras Negras e um papa legba haitiano, lobos e lobos...”

Mário de Andrade não sabe o que perdeu.


PROSA
“Ele procura de fato ficar tonto porque, quanto mais gira e mais tonto, mais o verso da embolada fica sobrerrealista, um sonho luminoso de frases...”
Mário de Andrade
O turista aprendiz
VERSO
“Ai, Chico Antônio
Quando canta
Istremeçe
Esse lugá!”
Chico Antônio

sexta-feira, 9 de maio de 2008

steppenwolf


steppenwolf dois


steppenwolf três









Raul e a Alcatéia Maldita, a melhor banda de rock do planeta,

8 de maio, TCP, Fundação Zé Augusto

UM DISCO: Band On The Run, Paul McCartney & Wings. 1973, EMI Records Ltd.





Primeiro, a capa, claro.

O bando, desarmado e acossado de McCartney contra um muro inglês sob os holofotes da polícia compõe, para dizer o mínimo, uma capa clássica.

Depois, o conteúdo. O que se ouve.

Nove músicas, cinco pro lado A, quatro pro lado B (e, ao ouvir novamente Band On The Run em CD, percebemos o quão pouco viramos o lado A).

Pra começo de conversa, a faixa-título, com suas variações de arranjo, que faz o ouvinte incauto de primeira audição pensar que são três músicas diferentes. Da melancolia beirando o psicodelismo e o estranhamento da abertura, passando pelo swing contagiante do intermezzo, até desembocar na balada fácil do trecho final, o verdadeiro corpo da musica, com o refrão em coro Band on the run, band on the run... Uma Balada sem John & Yoko, costurada por Paul, a senhora McCartney, Linda, e o guitarrista Denny Lane.

Jet vem logo depois. Passados trinta anos, poderia ter sido gravada ontem. Tem um pé na black music, outro na disco music, e as mãos no rock’n’roll. And Jetzzz... Bluebird é McCartney puro, com saudades não declaradas e não assumidas de Lennon. Mrs Vandebilt é uma senhora Robinson cínica, a resposta não menos cínica para a pergunta do ex-parceiro em How Do You Sleep. Let Me Roll It mantém uma pegada blues, pós-Let It Be, pós-Let It Bleed – se meu coração é uma roda, deixa girar até você.

Pausa pra virar o disco: diante da aura consagrada e sagrada e sacramentada de Lennon, McCartney sempre foi o chato de galocha. O caretão. Ávido por dólares. Com sua mulher loirinha, made in usa – em contraposição à artista made in japan do seu ex-cara-metade. O pecado de Paul foi nunca ter se considerado nem se vendido como gênio. Enquanto John se exilava, primeiro num bed in sem fim pelo mundo, depois na cozinha e no berço do edifício Dakota, em New York City, bad trip, Paul gravava um disco após o outro com os Wings (o casal McCartney mais Lane e um punhado de músicos estrategicamente convidados). Acusavam Paul de ser (aparentemente) fiel à Linda. Acusavam Linda de ser rica, loira e não tocar nada. Acusavam (para sermos corretos, Lennon acusou, na faixa citada, de Imagine) de só ter feito Yesterday – como se fosse pouco.

Besteira. Se vale alguma coisa, Paul foi preso ao menos duas vezes por posse e consumo de drogas, em 73 e 80; no final descobriu-se que Lennon era muito mais fiel à Yoko, que não era loira, nem pobre, mas que também não tocava nada – e que, justamente por isso, fosse pouco provável (no sentido que não se pode provar) ser mais ou menos inteligente que Linda.

O lado B começa com uma certeza: não se fazem mais músicas como Mamunia, e como fazem falta. No Words é Beatles, ou o que estariam fazendo se tivessem continuado. Picasso’s Last Words (Drink To Me) cita as últimas palavras do pintor espanhol antes de morrer: Bebam comigo, bebam à minha saúde, vocês sabem que eu não posso mais beber. Nineteen Hundred And Eighty Five ataca um piano fusion, flertando com a discotéque, elocubrações prog e delírios rock. É profético: Oh no one ever left alive in 1985... Ano em que não lançaria nenhum disco. Ainda bem que o velho Maca mandaria ver, dois anos antes, o ótimo Tug Of War, pau-a-pau com este Band On The Run.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Ela é carioca [050508]




Hoje bateu uma vontade de me jogar na arena.

E esperar a chegada soturna das hienas.

Então, vamo’nessa: Roberta Sá é carioca. Da gema do ovo.

Até que me provem o contrário.

Pois, até que me provem o contrário, a tentativa de conterraneizá-la é só um e não passa de mais um ataque histérico dos nativos do Ryo Grande, traumatizados ainda com o fato colonial (remonta aos idos de quatro séculos atrás) de que nem tão grande assim era o nosso ryo (embora tenhamos a maior das aldeias, derna de sempre, ou, a “Metrópole Indígena”, nas palavras articuladas de Polycarpo Feitosa, ou Antônio José de Melo e Souza, nosso último governante letrado).

E haja necessidade de auto-afirmação (ponto de exclamação ou reticências, à escolha do freguês).

E haja exibir nas fuças dos outros a certidão de nascimento de quem nos ufanamos.

Desejo bem ambíguo, aliás, para quem – e tomo emprestado de novo as letras cursivas do Dr. Antônio – “com uma excessiva desconfiança de si próprio, que parece ser também um dos elementos do seu caráter, o potiguar é propenso a considerar irresistivelmente o estrangeiro, o desconhecido, como superior, como capaz, e respeita-o pelo menos enquanto não convencer-se de que o tal estrangeiro é igual ou inferior a si mesmo”.

Talvez seja isso que tanto nos envaidece e nos anima como pintinhos na beira da cerca: Robertinha Sá une o útil ao agradável, Tomé com Bebé, é “de fora”, mas também “é daqui”. Um must, enfim, para a patuléia que se acha o ó do borogodó, o centro do mundo, as pregas que não cabem no meio, oco do mundo.

Uma maravilha, claro, os discos da moça, as músicas da moça, o suingue da moça. Menos por sua certidão de batismo e mais por ela mesma – embora muitos “críticos” às margens do Putigy adorem exercitar e ecoar o que “os outros”, no gramado alheio, dizem dela: porque “os daqui” tudo que fazem é citar que a menina foi citada pelos “outros”, sem nenhum juízo crítico e opinião pessoal.

E tomem repetir o que ouso questionar: Roberta Sá é de Natal – mas, Roberta Sá é mesmo de Natal?

Não acredito, crianças. A Roberta Sá de quem vocês tanto falam e hosanam nas alturas nasceu artisticamente na Guanabara, e cumpriu, meio ao acaso, sem intenção premeditada, mas por antecipação, o dito de Antonio Carlos Jobim para a macro-geografia nacional: a melhor saída para o músico brasileiro é o aeroporto.

Galeão, no Rio; Augusto Severo, na Província dos Reis.

Pois, esta semana Roberta Sá vem à Natal – dá uma de Bob Dylan e vem à Natal por 50 contos o ingresso individual. Quem tiver a carteirinha de estudante ou provar que é velhinho, paga a metade. Tal como Mr. Zimmerman em Sampa, o preço alto não deve assustar o público, entusiasmado em e por ser conterrâneo da moça: a Agenda Propaganda programou dois horários, às sete e às nove da noite da próxima quarta, 7 de maio. No Teatro Alberto Maranhão.
Quem não “qui$eR” ir ao show de Robertinha, pode ir ao Praia Shopping e assistir, de grátis, Dodora Cardoso e o show “Cofrinho de Amor” – oh-oh... sendo assim, datemi un martello por favor, como diria Rita Pavone: é melhor quebrar os cofrinhos pra inteirar os cincoenta mil réis!

segunda-feira, 5 de maio de 2008

UM DISCO: Fanny Adams, The Sweet. 1974, Bronze Records Ltd.



Primeiro, a capa, claro.
Deliciosa e docemente kitsh. Com os quatro cavaleiros do apocalipse, prontos pra levar um bakulejo no salão de baile da paróquia, vestidos de matar em prata, laranja, azul e preto. Faltam só as plumas e os paetês (o laquê vem grátis). Fundo verdesmeralda, reflexo metálico da pose. É tudo pose.

Depois, o conteúdo. O que se ouve.

Nove músicas, cinco pro lado A, quatro pro lado B, e uma porrada sonora em ambos, cada side mais hard e heavy que o outro. Nem tudo é pose.

Música após música, faixa dopo faixa, baixo-guitarra-bateria post efeitos vocais-tubular bells-moog, Fanny Adams é um disco pra se ouvir na estrada, a quantos quilômetros por hora seu carango possa andar.

Set Me Free abre o lado A, acelerada. De zero a cem em poucos segundos de bateria pesada (Mick Tucker) e guitarras básicas (Andy Scott). Brian Connoly segura os vocais, bem mais sério do que a indumentária do Sweet pré-conceitua. No mais é o baixo mais alto de Steve Priest e phaser pra todo lado – phaser é um pedal muito usado nos anos 70 e 80, aqui abusado muito além da tradicional guitarrelétrica.

Hertbreak Today conclui – ainda na segunda faixa – que Fanny Adams é disco indispensável. Em meados da década de então era trilha de uma rádio brazuca. O som de FA é pré-rock-de-FM. O Sweet era o lado B de figuras como Marc Bolan, Bowie na sua fase glitter, e os dois Brian – Ferry e Eno – nos primórdios do Roxy Music. Ou seja, glam, glitter, glamourous.

É verdade que daí pro Village People foi só uma questão de mais fantasia (dressed) e menos fantasia (dreamed).

Mas Fanny Adams é tão empolgante que tudo mais pode ir pro inferno e ainda ser perdoado. No You Don’t dialoga e chama pra briga. Rebel Rouser é pura adolescência sem causa. Peppermint Twist revisita o somzinho ingênuo de dez anos atrás, meados dos sixties, quando a moçada dançava, mascava chicletes e as saias ainda não tinham subido pelos joelhos.

Clap your hands, The Ballroom Blitz é música de salão depois de uns cocktails a mais. Pra dançar, suar e agitar as cadeiras e o lado B, que segue o ritmo com Sweet Fanny Adams e Restless. AC/DC fecha o círculo, coerentemente adolescente, sem vergonha de ser adolescente e tocar numa banda de rock.

Um disco pra ouvir na estrada politicamente incorreta do sexo (ao menos, se não concluído, tentado), drogas (alcahol, em doses que conjuguem o verbo encharcar) e rock’n’roll. Only, only, only and only.

sexta-feira, 2 de maio de 2008