quinta-feira, 31 de julho de 2008

A.M./ P.M. [310708]





Ainda trago nas costas as cicatrizes/ das asas que me foram postas.// Não há invenção mais cruel que os altares. – Ada Lima, em seu blog ant’ontem, às 2h45. P.M.


Sebastião Vicente, desde Brasília, andou comparando Ada com Marize – Castro, claro. Acha que as estréias literárias das duas poetas – à distância de duas décadas – têm a marca do berço esplêndido: ambos os livros nasceram clássicos.


Além: que Marize, ao tirar a poeira da poesia potyguar, de certo modo abriu alas para Ada, liberando-a da faxina pesada – e que, na ausência de pó nas estantes, a novata possivelmente ecoa e reprocessa a pioneira.


Não sei. Sei não.


Que “Marrons crepons marfins” é ícone e totem desde o nascimento, é fato – ainda mais passados vinte anos.


Que “Menina gauche” é obra – literalmente prima – pronta, definitiva, acabada e sem necessidade de correções ou maturações, é inquestionável.


Mas é incerto comparar uma e outra – até porque Ada Lima ainda não cumpriu o tempo regulamentar para uma entronização mais apurada, coisa que o correr do tempo já permitiu à Marize.


Existe ainda, na minha pouco humilde opinião (me antecipo às hienas e aos barões assinalados), uma diferença básica entre as duas: enquanto a poesia de Marize parte das entranhas para brilhar e explodir fora do corpo do poema num diálogo intenso com seus próprios ícones e totens (toda uma mitologia, clássica e literária), Ada Lima encerra-se em si mesma e conversa – e discute, e questiona – sua própria intimidade.


A poesia de Castro diz muito de suas leituras. A de Lima não revela nada, além dela mesma – e, mesmo assim... Enquanto a primeira usa do mito e do enigma pra se desnudar, sem pudor, a segunda aparentemente se expõe numa poesia que mais esconde, sem esclarecer totalmente (ou clarear) o enigma e mistério. O universo de Marize é exterior, amplo, e costura séculos segundo o bordado dos seus interesses e paixões: da Grécia antiga ao número 22 do Hyde Park Gate, endereço de Virginia Woolf, quase tudo em Marize é geografia e paisagem revisitadas. O mundo de Ada é interior, quase uterino. E mínimo – mas de um minimalismo espantoso, sendo capaz de desenhar, em poucos versos, um inteiro romance: Apenas deságüe em mim/ e faça surgir/ um coração/ em meu ventre.


Quando surgiu, em meados dos anos 80, também Marize foi comparada à outra poeta – Ana Cristina César. Moacir Amâncio acrescentaria ainda outros dois nomes femininos à lista: Orides Fontela e Adélia Prado.


O próprio Sebastião sabe que a década era particularmente sensível a outros espíritos que o novo século prefere ignorar – “quando todos éramos dark”, acentua o jornalista e também poeta. Mas o período subseqüente à anistia política era também pop, solar e libertário – e permaneceu assim até quando a AIDS deixou de ser uma sombra distante para se tornar uma ameaça real.

Daí vieram outras décadas, a de 90 e esta que está por encerrar-se – e Ada Lima, tão próxima e tão longe do hoje, tão próxima e tão distante de Marize, de Zila, de Diva... ou de Auta, Palmyra, Nísia...


Ainda bem que Ada já sabe que todo altar é invenção. E crueldade.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

De laranjas e morcegos [280708]


[Mel Ramos]


A culpa foi da Sukita.



E do gelo na Sukita.



Na pressa de não perder a última sessão legendada da noite, bebi rápido demais o refrigerante laranja. Umas seis pedras de gelo flutuavam no líquido cor-de-Fanta. Me lembrei das cenas finais de “Frankenstein” – o livro, não o filme. (Ah, o gelo se quebrando no pólo extremo da Terra, o monstro em fuga irada...)



Daí que fui assistir ao novo filme de Batman.



Daí que, bexiga cheia, fui assistir ao último filme de Batman.



Na verdade, a bexiga não estava tão cheia, digamos que na reserva. Mas, por esses mistérios abissais do corpo humano, a cada minuto que passava, a cada nova seqüência de músculos e testosterona na goela rouca do morcegão fantasiado, o tanque enchia-se de um líquido cor-de-Fanta-e-Sukita.



Que não era nem Fanta nem Sukita.



Entrar no cinema com uma reserva de mijo na bexiga é sacanagem. Uma maldade. Puro preconceito. Que nem entrar no cinema com aquela reserva de desconfiança – mau-humor com os elogios rasgados à atuação de Heath Ledger. O sobrescrito é avesso a muito confete e serpentina. Ainda mais que o elogiado já bateu as botas (aquelas de caubói de “Brokeback Mountain”) e daí entrou diretinho pro reino dos céus aqui na terra. Feito o corvo Brandon Lee. The Crow parte II, The Joker parte I.



Todo contido no filme de Ang Lee, Ledger solta a franga como o novo Coringa no novo filme do Batman. Metade do mérito é do maquiador, que deve ter visto alguma foto de Dercy Gonçalves na internet. Bateu a peruca de Javier Bardem. Superou também no quesito maldade.



A outra metade do mérito é a sacada de mastigar a saliva, como se quisesse molhar a cicatriz do seu riso literalmente rasgado. Como se saboreasse por antecipação o gostinho da Maldade. Com “M” maiúsculo.



Verdade seja dita: é uma interpretação de responsa. Tão boa que, metido no corpo nauseabundo do vilão, Ledger tinha mais é que morrer depois: não apenas parecia – era já um defunto vivo. O corpanzil (1,85 metro, me informa o Google), a cacunda, as roupas sujas e esfarrapadas, os cabelos ensebados – tudo que o ator incorporou pro seu personagem insinua que a qualquer momento um pedaço de dedo, braço, ombro, carne, pode se separar do corpo e ir ao chão. Assim: o retorno dos mortos-vivos num leprosário. Asilo Arkham.



Mas, voltemos pra poltrona onde me instalei e onde me mexi e remexi prum lado e pro outro, tentando esquecer que tinha bexiga – e que a danada não estava enchendo cada vez mais. Não por nada, pela caridade! O filme era bom, mas o ar condicionado, a Sukita, os cubinhos de gelo... Um aperreio.



Entre uma cruzada de pernas e outra, comecei a gostar mais de Harry Dent do que do Jokerman. E falo do personagem, não do ator (que atuou no interessante “Na companhia dos homens”, de Neil LaBute). O promotor público de Gotham City. Nosso De Sanctis. Nosso Jambo.



(Feito Macalé & Capinam, também eu nasci em Gotham City. Aos 15 anos. Caça às bruxas nos telhados, morcego na porta principal.)



Gostei mais de outras coisas, também:



– Da voz rouca do Senhor Wayne, quando travestido. Meio esquisita, verdade, mas.



– Da cara de doninha assustada da namorada do Batman. Meio feia, verdade, mas.



– Do bigodinho discreto de Gary Oldman, incorporando à perfeição o Comissário Gordon dos quadrinhos originais.



– Do meio-sorriso de Michael Caine, no auge da sua carreira, mais de cem filmes nas costas, incluindo “O cônsul honorário”, baseado em Graham Greene.



Não, não gostei de Morgan Freeman: assim, assado – Morgan Freeman demais.



(Gostei também do bizarro triângulo amoroso – e não falo de Batman-Rachel-Dent, mas de Batman-Coringa-Duas Caras.)



A verdade é que a gente vai ficando velho e vai perdendo ternura & empolgação: entra numa sala sem saber quase nada do que a maioria da plebe mais imberbe sabe – os bastidores das filmagens, antes mesmo das filmagens; os primeiros cinco minutos, antes mesmo da estréia; o nome do diretor (que eu não sabia e continuo não associando a nada e a ninguém); o nome dos atores (conheço só os com mais de trinta e dois dentes); até o nome do filme – vergonha – tive que perguntar pro fã de carteirinha Alex de Souza. Chama-se “O cavaleiro das trevas”.



(Devo ter a revista em algum lugar, bem guardadinha – mas isto aqui é outra coisa, crianças: é cinemão arrasa-quarteirão e Avid Dollars. É pipoca de ouro, diamante, platina, como uma tela de Salvador Dalí falsificada por Salvador Dalí.)



E não vai ser essa coluna que vai dizer ou desdizer se o filme é bom ou não é bom.



Daí que me resta esvaziar a bexiga nem bem o mais recente filme do Batman termina.



E, enquanto dava as clássicas balançadinhas, nem me lembrava mais como terminou.


sábado, 26 de julho de 2008

Por esse amor eu faria de um tudo, coisas
certas e erradas. Cometeria desatinos. Passaria a semana inteira comendo carne
vermelha. Jogaria latas de cerveja na rua pela janela do carro. Faria o caminho
de Santiago a pé, subiria de joelhos a ladeira da Sé de Olinda, iria ao Juazeiro
pagar as promessas que não fiz ao padre Cícero. Deixaria de beber, de fumar, de
falar do próximo quando distante. Compraria dois automóveis, todos dois pra ti,
mesmo sem tostão. Meu caro Antônio, duzentos anos voam, mas ainda assim é muito
tempo.


Essa moça não promete - cumpre.

E, se eu pudesse, voltaria ontem, entre os dinossauros do parque, pra trocar umas idéias, pra entornar umas quantas cicarelis, pra ajudar a cortar, picotar, rasgar, triturar o retrato na parede da bolsa.

Quem sabe teria sugerido a cura pelo fogo. Chamas em lugar de lágrimas.

Tears for fears.

Ashes to ashes.

Melhor, não. A paixão é um despenhadeiro. Infinito antes da queda.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

água e sal






















só pra lembrar que eu sei que eu deixei isso aqui às moscas. prometo ao menos dar notícias quando souber qual a nova frequência de atualizações. sorry.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

O poder dos sonhos [090708]












Na noite de um dia difícil eu fui dormir sem o peso que uma decisão difícil conseguiu tirar, aos trancos, das minhas costas, mas ainda com a dor que o esforço causou. Nos músculos, na alma.



Na manhã seguinte, num repente, eu me dei conta que havia sonhado com meu pai, com quem raramente sonho desde que ele morreu alguns meses atrás.



No sonho ele estava bem, e não havia sinal ou lembrança de que estivesse morto. Estava com todos nós, com sua mulher e filhos – mas já não vivia com nós. Continuava o mesmo velhinho simpático e tranqüilo dos últimos anos e tinha arrumado um trabalho à beira-mar. Estava feliz, embora com a o olhar melancólico das pessoas que pensam demais. De quem olha ao longe e vê o que normalmente não se consegue enxergar quando se olha muito de perto.




Nós estávamos todos contentes, porque ele estava entre nós. Acompanhei-o, ao seu novo trabalho: ele me contou do que fazia, de como passava os dias, tudo muito simples e tranqüilo, como um dia fresco de verão. Céu azul, nuvens brancas, sol cálido. Me contou das pessoas que o visitavam, alguns conhecidos, outros estrangeiros. Me surpreendeu que agora falasse outras línguas, ele, que improvisava todas as línguas do mundo, com ironia e prazer numa babel própria e ruidosa.



No sonho, fiquei observando ele encerrar mais um dia de trabalho, arrumar suas coisas e partir, numa estrada de barro e poeira encarnada. Estava muito mais forte e seguro.




Ao despertar, não me recordei de imediato do sonho. Foi preciso alguns minutos para que ele ocupasse novamente um lugar na minha imaginação – e revi, e senti, o que tinha sonhado.



E percebi que toda a dor e sofrimento que a sua ausência diária me provoca não é nada diante da certeza de que ele estará sempre comigo. Sendo quem sempre foi: o melhor amigo, o melhor companheiro, meu pai.



terça-feira, 8 de julho de 2008

Sobre o perdão

Pra quem passou batido ou não leu, vai uma “Irlandesa” das páginas iniciais da CartaCapital de 27 último. Assinada por Billy Culleton, que noves fora o nome, nasceu na Argentina, é naturalizado brasileiro, jornalista e professor universitário em Santa Catarina.

Em nome da paz

Cidade de Derry, Irlanda do Norte, maio de 1972. Richard Moore, de 10 anos, volta da escola ao lado de três colegas. Os meninos que passam correndo diante de um posto das forças britânicas fazem gestos desafiadores para os soldados. A corrida de Richard é interrompida quando alguém, a partir do posto, atira balas de borracha no rosto do jovem, que cai no chão.

Dias depois, no hospital, o diagnóstico: os tiros deixaram Richard cego. O fato revolta a comunidade, mas a família tenta manter a calma. Os pais o consolam. Falta-lhe, porém, coragem para contar a eles exatamente o que se passara. Richard imagina que tudo voltará à normalidade após lhe tirarem os curativos dos olhos.

O menino fica duas semanas internado. Pouco antes de sua saída, o irmão mais velho o leva para uma caminhada pelos jardins do hospital e, constrangido, informa-lhe sobre o futuro na escuridão. Nos dias subseqüentes, Richard volta à escola e tenta retomar a vida. Passam-se 36 anos. “Nunca ouvi meus pais falarem mal dos soldados responsáveis pelo fato”, conta Richard Moore, sentado na poltrona da sede da ONG Children in Crossfire (Crianças sob Fogo Cruzado), fundada por ele, em 1996, para oferecer apoio a menores vítimas de guerras em todo o mundo.

Hoje, Moore leva uma vida normal, dentro de suas limitações. Formou-se em Administração, casou-se e teve dois filhos. Na década de 1980, recebeu uma indenização do governo britânico. Com a metade do dinheiro comprou uma casa. Com a outra, um pub.

Após fundar a ONG, dedicou-se integralmente ao projeto de apoio às crianças mutiladas. Viajou pelo mundo arrecadando e distribuindo recursos. Mas uma idéia fixa o acompanhava havia mais de 30 anos: quem fora o soldado que atirara nele? Como seria ficar frente a frente com o algoz?

Não lhe restavam mágoas, mas ele sentia a necessidade de passar a limpo o fato que mudou sua vida. Após meses de procura, o soldado – identificado apenas como Charles – foi localizado na Escócia. Moore escreveu-lhe uma carta sobre sua vida ao longo das últimas três décadas. “Perguntei-lhe, sem ressentimentos, se ele se lembrava por que atirara em mim.”

Semanas depois, recebeu a resposta. Em tom frio, Charles justificava o ato em razão de estar cumprindo sua função como soldado da Grã-Bretanha. Não se sentia culpado. Reconhecia, porém, que, se soubesse das conseqüências, não teria atirado. Moore sentiu-se aliviado por ter recebido uma resposta de Charles. Na carta seguinte, pediu um encontro pessoal, que foi aceito. Semanas depois, dirigiu-se à Escócia.

A conversa durou quatro horas e meia. Sentados um diante do outro, relembraram os fatos e falaram de suas vidas. Charles demonstrou franqueza e abertura, mas voltou a justificar o ato e não falou em arrependimento. Moore ouviu seu discurso e buscou o momento adequado para expor o que estava atravessado em sua garganta havia anos: “Eu perdôo você”, disse-lhe. Ambos choraram.

“Perdoar é uma experiência fantástica. Foi a melhor coisa que fiz em minha vida”, garante o irlandês, acrescentando por que o gesto tirara um enorme peso de suas costas. “Imagine isto: a pessoa responsável por tanto sofrimento, que tanto prejudicara a mim e a minha família, estava sentada à minha frente, sentindo o meu perdão.”

Na verdade, explica, não apenas ele perdoava seu agressor. Seus pais também o faziam por meio dele: “Meus pais sofreram mais do que eu, tendo de conviver com um filho cego”.

A partir da visita à Escócia, houve uma grande empatia entre o algoz e a vítima e os encontros começaram a ser mais freqüentes, em Derry ou na Escócia. Atualmente, são como velhos amigos. Encontram-se ao menos duas vezes ao ano. Contam histórias, tomam cerveja e riem juntos. O programa preferido é passear. Quem vê ambos andando juntos, o cego segurando o braço do homem mais velho, recebendo orientação para caminhar pelas ruas e ouvindo atentamente a descrição daquilo que está ao seu redor, jamais conseguiria imaginar a maneira pela qual a parceria se formou. “Perdoar é um presente que a gente dá a si mesmo, independentemente de o outro aceitar”, insiste Moore.

A relação entre o soldado e o “garoto cego” se transformou em um símbolo do processo de reconciliação que vive a Irlanda do Norte. Contra todas as previsões, um ano depois do início da administração conjunta entre católicos e protestantes, é possível sentir que a paz será duradoura.

Em maio de 2007, o país, de 1,7 milhão de habitantes, testemunhou a instalação de um governo que conseguiu o aparentemente impossível: a união de dois grupos inimigos havia séculos e que se enfrentavam violentamente há 40 anos, o Exército Republicano Irlandês (IRA) e o Partido Unionista. Os primeiros lutavam pela união com a República da Irlanda, enquanto os outros queriam a manutenção do domínio britânico na região. Era a guerra secular entre católicos e protestantes, descendentes de irlandeses e de ingleses, respectivamente.

Um acordo de paz estabeleceu que protestantes e católicos deveriam governar juntos. O grupo vitorioso em uma votação democrática indicaria o primeiro-ministro, e o segundo colocado, o vice. Em março do ano passado, a população elegeu seus representantes para o Parlamento. Nas urnas, os protestantes tiveram 55% dos votos e os católicos, 45%. Assim, o pastor protestante Ian Paisley, de 82 anos, assumiu como primeiro-ministro, e o católico Martin McGuinness transformou-se em seu vice. Era o fim de quatro séculos de domínio exclusivo da Grã-Bretanha.

De forma inédita, dois inimigos ferrenhos começavam a governar o país. Paisley, um dos mais radicais defensores do extermínio da população católica irlandesa, administrava o governo juntamente com McGuinness, um dos fundadores do IRA, responsável pela morte de milhares de protestantes britânicos. Algo sem igual na história contemporânea. Era como se, na década passada, os territórios palestinos fossem governados por Ariel Sharon e Yasser Arafat juntos.

Ao contrário de Richard e Charles, Paisley e McGuinness não se sentam à mesma mesa e se limitam a trocar algumas palavras em eventos formais. Seus assessores fazem as negociações necessárias. É difícil esconder a repulsa mútua. [Billy Culleton]

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Baricco na Capela Sistina, escutando Tom Waits



Meu leitor e amigo, Capri, que não é o ilhéu nem o da calça, pediu em comentário de post abaixo a publicação da tradução que fiz de crônica de Alessandro Baricco em sua coluna no italiano La Stampa, meados da década que passou. Não estava nos planos, mas como Capri não pede, eu obedeço com fervor. Com vocês Alessandro Baricco:


"A Capela Sistina, antes de vê-la, você sente. Tipo confeito de hortelã: sente no nariz, e nas orelhas. Você chega através de um corredor que gira e sobe e desce, um corredor estreito e baixo, com as paredes cor de hospital. Todos em fila, arrastando os pés. Quase não existem janelas, o ar é pouco. Inexorável odor de humanidade, herança generosa de centenas de axilas e meias internacionais em peregrinação pia ou em vagabundagem culta. A Capela Sistina, antes de vê-la, você sente: odor de academia de ginástica, de sala de aula do ensino médio no sexto horário, de ônibus no verão. Não que alguém espere coros de querubins na entrada, mas precisam te meter numa espécie de sapateira em forma de corredor?

Quando o nariz se acostuma, explodem as orelhas. Você entra, por uma portinha de nada, e antes de ver qualquer coisa, ouve o rumor uniforme e contínuo de centenas de pessoas imprensadas e acotoveladas que berram baixinho. A acústica da Capela Sistina reconstitui um bíblico e febril estrondo. Estranha impressão. Não tenho grandes experiências no setor, mas você lembra logo de lugares como campos de concentração, ou estádios chilenos, esse tipo de coisa, onde uma fatia da humanidade prepara a ante-sala para qualquer odioso horror. Quando de repente se acendem lúgubres alto-falantes e uma voz grita “Atenção!”, aquilo que você espera é que depois diga “As mulheres à esquerda, os homens à direita”, uma coisa assim. Por sorte, mais moderadamente, pede para fazer silêncio e não tirar fotografias. O barulho diminui, provisoriamente, alguns decibéis. Dando cotoveladas, conquisto um metro quadrado ligeiramente livre. Já que diante daquela confusão é necessário fazer qualquer coisa, ponho os fones de ouvido e ligo o walkman. Baglioni. Não. Annie Lenox. Não. Paolo Conte. Não. Procuro Bruckner, o doce organista que escrevia música para Deus: esqueci de trazer. Resta apenas Tom Waits. Aumento o volume. Levanto os olhos.

Enxaguaram-na, a Capela Sistina. Devolveram-nos o tecnicolor. Tiraram algumas cuecas pudicas e cobriram algumas rachaduras. Parece nova em folha. Eu lembrava o Juízo Final sufocado por uma fuligem negra como o pulmão de um fumante. Dava pra ver pouca coisa, no meio daquele pretume, e talvez o fascínio estivesse exatamente nisso: agora é pleno de meio-tons que são uma maravilha, parece um pouco Laura Ashley, mas ao menos dá pra enxergar, e descobrir um monte de coisas – é como ir ao cinema e por os óculos. O pedaço que eu mais gostava era aquele mais ou menos na metade, onde os corpos salvos e renascidos sobem aos céus e aqueles condenados são empurrados pra baixo, e todos flutuam magicamente no ar exatamente como os astronautas da Nasa, quando nos faziam vê-los na tevê, naquelas naves sem força de gravidade. Tinha sempre um que fazia o palhaço e deixava cair o sanduíche, e o sanduíche flutuava até que alguém o pegava, e todos riam, e devia ser um modo de esquecer que eram como grãos de areia jogados, girando no infinito, solitários como vira-latas. Deve ser culpa de Tom Waits: você deveria pensar em outras coisas, ali, cara a cara com Michelangelo, e com o Juízo Final.

Abaixei Tom Waits, e pensei em outras coisas. Pensei o quão insuportavelmente magnífica é aquela Capela – pensando bem, e sem precisar desviar muito os olhos das cores pastéis. Um monumento obsessivo a um totêmico e ruinoso pesadelo: o pecado. Dali, ninguém sai inocente. Centenas de metros quadrados de imagens te massacram como irresistíveis comerciais empurrando, em promoção, a mais ridícula das mercadorias: o complexo de culpa. Desviando do Juízo Final você termina topando com Adão e Eva, a maçã, a serpente, o castigo. Procure abrigo mais pra lá e você cai no Dilúvio Universal, outro castigo, espetacular, uma limpeza étnica em grande estilo. Até mesmo aquele gesto maravilhoso, Deus e o homem, os dois dedos que apenas se tocam, ícone incomparável, impresso lá em cima, no teto, e para sempre nos olhos de quem o viu, até mesmo ele tem algo de inquietante, parece já um castigo, também, um castigo preventivo – existe algo naquele Deus que nos impede de vê-lo simplesmente bom e pai: tem alguma coisa de animal preparando o bote, traz em si uma inquietude que o perturba. Não é um Deus feliz, aquele.

É um processo terrível, pensando bem: você está ali com a cara pra cima, deixando-se enfeitiçar por toda aquela beleza, além do mais lavada com Omo, e, no entanto, sem se dar conta, um cantinho da sua alma está sendo marcado por uma camada invisível de senso de culpa, que se junta àquelas outras que te espalmaram durante os anos do que se convencionou chamar educação. Tudo para construir, milímetro por milímetro, a catástrofe de uma consciência perenemente em débito, e cronicamente culpada.

Talvez foi apenas porque não tinha sol, e através dos janelões entrava o cinza de um dia de merda. Talvez foi culpa de Tom Waits. De qualquer modo, fugi da Sistina com duas idéias bem simples na cabeça. Primeira: a próxima vez que eu for, vou às oito da manhã, porque aquela multidão é um horror. Segunda: a próxima vez que eu nascer, nasço ateu, e num país onde aqueles que crêem em Deus, crêem num Deus feliz. [Alessandro Baricco]


PROSA
“Qualquer sistema legal moderno teria processado Abraão por maus-tratos contra crianças.”
Richard Dawkins
Deus, um delírio
VERSO
“Eu fiz do Céu azul minha esperança
E dos astros dourados meu tesouro...”
Auta de Souza
“Celeste”

sexta-feira, 4 de julho de 2008

O primeiro cão [010708]



[Lord Byron, Mary Chaworth e Boatswain, pintados por Ford Madox Brown]




Perto daqui Estão depositados os despojos daquele Que possuía
Beleza sem Vaidade, Força sem Insolência, Coragem sem Ferocidade, E todas as
virtudes do Homem sem seus Vícios. Este elogio, que seria uma Adulação sem
sentido Se escrito fosse sobre Cinzas humanas, É somente um justo tributo à
Memória de BOATSWAIN, um CÃO Que nasceu em Newfoundland em maio de 1803, E
morreu em Newstead, em 18 de novembro de 1808.


Lord Byron


Me deram o primeiro cão quando eu já não precisava dele: a solidão daquele período vagamente obscuro entre a infância e a adolescência cedia espaço às primeiras certezas e afirmações – embora vagas – daquele outro período igualmente ambíguo entre a adolescência e a maturidade.

Daí que batizei-o (batizamos, eu e meu irmão) de Ozzy. Ozzy Osbourne, se é que vocês me entendem. Não? Ozzy (Osbourne) era o vocalista do Black Sabbath. “Paranoid”, “Vol. 4”, “Sabbath Bloody Sabbath”, sacam? Ainda não? Não importa, reza a lenda que Osbourne, na altura do palco feericamente iluminado, abocanhou um morcego com os dentes, em pleno vôo.

Ozzy (o cão) era um dobermann. Preto, raias marrons escuras em pontos estratégicos do seu corpo bem desenhado. Não era, absolutamente, um cão feroz. Brabo. Ou raivoso. Era o cão de um menino que deixava de ser menino – daí que os papéis se inverteram e era ele, o cão, o solitário a precisar de um amigo.

Mas como todo bom companheiro, nunca reclamou. Nunca encheu o saco, nunca latiu chamando atenção, nunca fez aquele cara de cãozinho triste e abandonado, nunca babou clamando carinho.

Foi o cão certo na hora errada. Para ele, para mim.

Quando precisou ser doado – mudança, casa, quintal, apartamento etc – eu lavei as mãos, vergonhosamente, nem ao menos fui despedir-me dele. Disseram que foi para uma fazenda, sítio, granja. Nunca me perguntei, nem a ninguém, se era bem alimentado, bem tratado, bem amado. Um dia, soube que tinha morrido. Dessa vez, nem a mim mesmo perguntei o que eu sentia.

Hoje, nessa manhã tão luminosa e pouco adapta a nostalgias, desejo que tenha ele, ali, em meio às árvores do campo, reencontrado o menino que não fui.


terça-feira, 1 de julho de 2008

No cabaré: A puta e o anarquista


[De Blade Runner]

– O senhor é escritor?

– Eu? Não. Por que pergunta? A senhora gosta de escritores?

– Não, não gosto.

– Por quê? Não são más pessoas.

– São. São más pessoas.

[Roberto Arlt, Luba, in Ricardo Piglia, Nome falso, tradução de Heloisa Jahn, São Paulo: Iluminuras, 1988]

No cabaré: A puta e o anarquista – Momentos depois


[De Blade Runner]

– É melhor que não procuremos razões. O senhor parece, de fato, um escritor. Isso não é incômodo? Os escritores são como o senhor. Primeiro manifestam compaixão, depois se irritam quando a pessoa não se ajoelha diante deles como se fossem Deus. São exigentes.

– Mas como é possível que conheça os escritores? A senhora não lê nada.

– Tem um que costuma vir aqui.

[Roberto Arlt, Luba, in Ricardo Piglia, Nome falso, tradução de Heloisa Jahn, São Paulo: Iluminuras, 1988]