Ainda trago nas costas as cicatrizes/ das asas que me foram postas.// Não há invenção mais cruel que os altares. – Ada Lima, em seu blog ant’ontem, às 2h45. P.M.
Sebastião Vicente, desde Brasília, andou comparando Ada com Marize – Castro, claro. Acha que as estréias literárias das duas poetas – à distância de duas décadas – têm a marca do berço esplêndido: ambos os livros nasceram clássicos.
Além: que Marize, ao tirar a poeira da poesia potyguar, de certo modo abriu alas para Ada, liberando-a da faxina pesada – e que, na ausência de pó nas estantes, a novata possivelmente ecoa e reprocessa a pioneira.
Não sei. Sei não.
Que “Marrons crepons marfins” é ícone e totem desde o nascimento, é fato – ainda mais passados vinte anos.
Que “Menina gauche” é obra – literalmente prima – pronta, definitiva, acabada e sem necessidade de correções ou maturações, é inquestionável.
Mas é incerto comparar uma e outra – até porque Ada Lima ainda não cumpriu o tempo regulamentar para uma entronização mais apurada, coisa que o correr do tempo já permitiu à Marize.
Existe ainda, na minha pouco humilde opinião (me antecipo às hienas e aos barões assinalados), uma diferença básica entre as duas: enquanto a poesia de Marize parte das entranhas para brilhar e explodir fora do corpo do poema num diálogo intenso com seus próprios ícones e totens (toda uma mitologia, clássica e literária), Ada Lima encerra-se em si mesma e conversa – e discute, e questiona – sua própria intimidade.
A poesia de Castro diz muito de suas leituras. A de Lima não revela nada, além dela mesma – e, mesmo assim... Enquanto a primeira usa do mito e do enigma pra se desnudar, sem pudor, a segunda aparentemente se expõe numa poesia que mais esconde, sem esclarecer totalmente (ou clarear) o enigma e mistério. O universo de Marize é exterior, amplo, e costura séculos segundo o bordado dos seus interesses e paixões: da Grécia antiga ao número 22 do Hyde Park Gate, endereço de Virginia Woolf, quase tudo em Marize é geografia e paisagem revisitadas. O mundo de Ada é interior, quase uterino. E mínimo – mas de um minimalismo espantoso, sendo capaz de desenhar, em poucos versos, um inteiro romance: Apenas deságüe em mim/ e faça surgir/ um coração/ em meu ventre.
Quando surgiu, em meados dos anos 80, também Marize foi comparada à outra poeta – Ana Cristina César. Moacir Amâncio acrescentaria ainda outros dois nomes femininos à lista: Orides Fontela e Adélia Prado.
O próprio Sebastião sabe que a década era particularmente sensível a outros espíritos que o novo século prefere ignorar – “quando todos éramos dark”, acentua o jornalista e também poeta. Mas o período subseqüente à anistia política era também pop, solar e libertário – e permaneceu assim até quando a AIDS deixou de ser uma sombra distante para se tornar uma ameaça real.
Daí vieram outras décadas, a de 90 e esta que está por encerrar-se – e Ada Lima, tão próxima e tão longe do hoje, tão próxima e tão distante de Marize, de Zila, de Diva... ou de Auta, Palmyra, Nísia...
Ainda bem que Ada já sabe que todo altar é invenção. E crueldade.