quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Uma crônica de hoje, uma música de ontem




Amazing Natal



Me desculpem, mas este Natal nem Natal parece.

Eu sei, eu sei. As luzes coloridas continuam balançando nas árvores, noite ou madrugada adentro, o vento passeando ondas luminosas entre os galhos e as folhas.

Eu sei, eu sei. Nos corredores dos shoppings, as sacolas seguem, ondulando pra lá e pra cá, pra frente e pra trás das pernas dos passantes, pendulando desejos insaciáveis, e muitas vezes inconciliáveis, entre almas e corpos. Ou entre os corpos e os bolsos que os vestem.

Eu sei – eu ainda sei. Seus filhos já escreveram para o Papai Noel no Pólo Norte (e alguns já trocaram os hemisférios e garrancharam um “Pólo Sul” no dorso do envelope), pedindo a boneca, o trenzinho, o carrinho de rolimã.

Ah, eu já não sei. Não. Aqueles eram outros meninos, de outros tempos e lugares-comuns, quando havia ainda carrinho de rolimã, trenzinho e boneca.

É certo que as bonecas ainda resistem – mas como evoluíram, em todos os sentidos: as meninas de hoje, por exemplo, querem a boneca Ananda, aliás Amazing Ananda, ou seja, Ananda “Maravilhosa”, setecentos reais a unidade (R$ 699,99, pra ser exato), acompanhada dos seguintes acessórios: “um lindo vestido e sapatos, camisola, prato de espaguete, macarrão e cereal, todos com um lugarzinho para encaixar a colher, caixa de suco, biscoito, tortinha, pizza, escova de dentes, escova de cabelo e peniquinho.”

Bueno, depois de menu tão farto, não poderia faltar o peniquinho.

A descrição do brinquedo segue, detalhada, acompanhada de instruções e conselhos para o uso: “Nenhuma outra boneca é capaz de interagir tanto quanto Ananda. Ela reconhece a voz de sua ‘mãe’, envolvendo-a na brincadeira de forma inovadora e divertida! Ela ri, fala, chora, brinca e pede abracinhos. É uma brincadeira de mamãe e filhinha que você nunca viu! Ela reconhece a voz da ‘mamãe’!”

Uau! O “monstrinho” cibernético não parece sua própria filha? Ou nós mesmos? Afinal, rir, falar, chorar, brincar e clamar por abraços não é nossa lida diária?

Deixando a Amazing Ananda de lado – ou melhor: dormindo um soninho sossegado, um ronquinho quase inaudível acompanhando o inflar e desinflar do peito –, por que o sobrescrito continua achando que esse Natal nem Natal parece?

Não sei. Falta eletricidade no ar. Falta alegria, mesmo aquela travestida em consumismo desenfreado. Será a crise mundial espraiando seus tentáculos. Será aquele verso final, frase-síntese de Machado de Assis, tão antiga, sempre atual: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”

*

SONETO
Na íntegra, o soneto machadiano: Um homem, – era aquela noite amiga,/ Noite cristã, berço no Nazareno, –/ Ao relembrar os dias de pequeno,/ E a viva dança, e a lépida cantiga,// Quis transportar ao verso doce e ameno/ As sensações da sua idade antiga,/ Naquela mesma velha noite amiga,/ Noite cristã, berço do Nazareno.// Escolheu o soneto... A folha branca/ Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,/ A pena não acode ao gesto seu.// E, em vão lutando contra o metro adverso,/ Só lhe saiu este pequeno verso:/ "Mudaria o Natal ou mudei eu?"

MAIS DO MESMO
Ou seja, depois de tal soneto, qualquer crônica sobre o Natal torna-se inútil e redundante – e haja perturbar o velho bruxo na sua tumba, citando sua célebre questão.

NHEN
Mas outros poetas também merecer ser perturbados em épocas natalinas, todos batendo na mesma tecla com outros versos – Fernando Pessoa: Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade/ Nem veio, nem se foi: o Erro mudou./ Temos agora outra Eternidade,/ E era sempre melhor o que passou.

-NHEN-
O velho Drummond: Menino, peço-te a graça/ de não fazer mais poema/ de Natal./ Uns dois ou três, inda passa.../ Industrializar o tema,/ eis o mal.

-NHÉM
Nei Leandro (de Castro), por tabela e fugindo do nhenhenhém e cutucando a ferida: As meninas da Rua 25 de Dezembro,/ expostas ao odor e à fúria da maresia,/ expõem seus corpos em plantão permanente./ Não querem piedade. Querem foda./ Querem vinte, trinta dinheiros,/ em troca do corpo infantil que a maresia/ está corroendo até a morte prematura.

Lembrai-vos das meninas da 25 de Dezembro quando quebrarem as castanhas e erguerem as taças.

ZUNZUNZUM
Intervalo para notícias da Funcarte: além de Bob Pai e Bob Filho, aka Carlos e Alex de Souza, há um terceiro nome cotado para a Brouhaha: Hayssa Pacheco, do DN, o que seguiria a estratégia instaurada por Dácio Galvão de “um pé lá, outro cá”.

FINAL
Por derradeiro, mas nem por isso menos importante, me aproprio do “Poema para o Natal”, de Bosco Lopes, para seguir retribuindo, a todos, os votos que por aqui chegaram:
AMIGO, SOMENTE O FINAL DO POEMA/ COLORIDO ESTRELADO/ MANEIRA ÚNICA DE LHE DIZER/ FELIZ NATAL.





PROSA
“Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam.”
São João
O evangelho segundo João
VERSO
“Fui ser feliz.”
Lisbeth Lima
“The end”







Um comentário:

Anônimo disse...

Uma dica para quem tem crianças - passadas as festividades de fim de ano, a Amazing Ananda está em promoção no sacolão da Roberto Freire. Para eliminar as coitadinhas que não foram compradas no natal. As caixinhas todas empilhadas logo na entrada da loja.