sábado, 25 de abril de 2009

Manhã [extrato, fragmento, esboço]


Como ninguém bate à porta, cerrada a porta fica. São cinco passos entre a sala e o quarto de dormir, são cinco passos entre o sofá e a cama de sonhar. Um corredor vazio e tomado por inútil, nu, sem excessos. Uma sala amontoada. Um quarto desfeito. Dois banheiros sujos. Três banheiros sujos. Uma torneira que previsivelmente pinga.

E na cozinha.

E como ninguém bate à porta, é de uma ponta à outra o caminho, edificado com o rastro, sinal de fumaça do cigarro previsível. Entre dedos e dentes, outra vereda, outra geometria, a maior distância entre um ponto e outro, entre um ponto e milhares de outros pontos. E como ninguém bate à porta tudo é previsível nesta manhã sem sonhos. Como previsível foi o erro no relatório do serviço de meteorologia, emitido num alarido vesperal: promessa de chuvas intensas. Promessa de céu tonitruante. Fim do mundo. Mundo sem amantes, fechados em seus lares, cada um, cada qual, aterrorizados com as águas do céu, as cinzas do mar, e os três líquidos corporais – a saber e na classificação científica, sangue, suor, lágrimas. Chumbo líquido o céu. Nuvens gordas, grávidas de trovões, prenhes de aguaceiros, altar, ofertório e oferenda aos bueiros abertos.

E nada disso aconteceu.

Brilha o sol. Brilha o sol intensamente. Brilha o sol intensamente com um clarão de machucar olhos. Brilha o sol intensamente com um clarão de machucar olhos e derrubar santos do selim acolchoado de um alazão.

O cavalo pasta na sala. Rumina. Enquanto rumina, pensa. Os cavalos não descem escadas. A porta cerrada. A louça por lavar. O corredor tomado por inútil acoberta estrelas. Se soltarem as moças, ferirão seus pezinhos nus. Se soltarem as moças, será um revoar de vestidos transparentes. O cavalo mastiga. Monturo de livros. Se houve um fim do mundo foi aqui que começou. É aqui a nascente.

E muito mais além seu estuário.

Como ninguém bate à porta, cerrada a porta fica, e os passos gastam-se no soalho de cerâmica barata, vai-e-vem constante. Nuvens de fumo. O primeiro dos líquidos corporais são as lágrimas. O primeiro a secar quando o céu despe-se de nuvens e expõe seu azul indecente.

Na sala, o cavalo ruminante. O santo ao chão. Barriga pra cima, elmo virado. Os braços abraçando o céu, por enquanto, de gesso.

Esse moço, esse moço senhor dos cinco passos, esse moço chama-se Theo. Oferenda, presente de Deus. Esse moço é um moço inquieto. Fuma desbragadamente. Esse moço fuma como se flertasse com a morte. Não. Esse moço fuma como se fodesse com a morte.

Esse moço que vê cavalos ruminando em sua sala. Entre os monturos de livros. Esse moço que pressiona a planta do pé contra o peito armado do cavaleiro. Esse moço que corre até a cozinha em busca de fósforos.

Esse moço, Theo, tem um emprego. Esse moço, Theo, tem uma namorada. Esse moço, Theo, tem um emprego, uma namorada, mas não tem um cão. Tem muitos paus pra dar no gato, então. Mas nenhum cão.

Invés, um cavalo na sala. Pastando entre os livros.

Theo ama Theresa. O nome da namorada. Uma namorada não é como um cão, a quem se deve, duas vezes ao dia, passear com a coleira, descê-lo pelo elevador, fazendo-se surdo aos lamentos da senhora do 102. Do elevador para a porta da rua são dezesseis passos, incluindo alguns degraus. Na rua são milhares de passos, cada qual com seu cheiro único, inconfundível. O cão os conhece a todos, não de cor, nem salteado. O cão é um animal doméstico com a visão em preto e branco. E um olfato colorido.

O não cão de Theo é assim. Quase uma namorada. Se enrodilha aos seus pés quando chove e o serviço de meteorologia se enganou novamente prometendo pancadas de sol. O focinho é frio. O focinho de todos os cães do mundo é frio, mas o não cão de Theo é uma geleira glacial. Quando Theresa, a namorada, debruça-se sobre o cãozinho, enxerga estalactites e estalagmites de gelo no nariz do cão.

Theresa é alérgica a cães, mas suporta o cavaleiro santo em decúbito dorsal no chão da sala. E, vez por outra, nos feriados ela mesma encilha o cavalo e dá saltos nos obstáculos do salão.

E se põe a ler Cervantes no original.

O não cão de Theo tem pavor à namorada de Theo. Se esconde cada vez que ela entra no apartamento, um passo através da soleira e já dentro da sala, onde o cavaleiro santo jaz adormecido, o cavalo a pastar. Conhece Cervantes pela lombada, verde-musgo, que ele enxerga como um cinza 33. Os cães têm uma classificação numérica de matizes entre o branco e o preto profundo. Alguns adjetivam as cores: verde-babá, azul-quimera, branco-limão, fúcsia-histérica, vermelho-radical, preto-luto. O cão do 302 do prédio em frente exibe uma classificação semelhante. O não cão de Theo acha o cão do 302 um tipo pedante. Sentiu, assim que lhe cheirou o rabo.

Isso é comum entre os cães, o que faz Theresa considerar abominável manter cães no convívio do lar, não importa quantos passos sejam necessários entre a porta de ingresso e a janela menor da suíte de casal, começo e fim da morada humana.

Como ninguém bate à porta, cerrada a porta fica. São cinco passos entre a sala e o quarto de dormir, são cinco passos entre o sofá e a cama de sonhar. E nessa manhã radiante, Theresa não veio. E por que não veio, Theo está inquieto, fuma, e, enquanto fuma, constrói catedrais no corredor de cinco passos, alheio ao cão e ao santo cavaleiro debatendo-se no assoalho do salão. Já deu de comer ao cavalo, já buscou os fósforos na cozinha, já observou atentamente como a gota d’água da torneira da pia foi crescendo e desmoronou como uma nuvem que implodisse em louvor aos bueiros do mundo. Já acendeu a TV com os fósforos banhados e teve que empurrar as ancas gordas do eqüino para assistir as mentiras da moça do tempo.

Para ver os olhos verdes da moça do tempo. Verde-enguia, diria o cão do 302. Amanhã, sol e nuvens sem guia, prometeu ela, rodopiando sobre saltos altos. E a orquestra tangeu alaúdes e címbalos. E, não disse nada, Theo.

E, nada disse, não, Theo.

Ah, esse moço, esse moço, digo eu, ah, se soubesse o que eu sei. Que Theresa tem um amante, por exemplo. Que poderia ser sobrinho da velha do 101, mas seria uma alternativa muito fácil e mentirosa. Que a moça do tempo é a inquilina do 302 e patroa do cão empoado, mas também seria uma alternativa fácil e muito mais mentirosa. Embora seja verdade que, neste momento, o cavalo pousa suas quatro patas sobre quatro volumes e autores: Lolita, de Nabokov; Otelo, o mouro de Veneza, de Shakespeare; Amor insensato, de Tanizaki; Dom Casmurro, de De Assis.

Mas tudo que Theo vê é a paisagem tomar a janela e invadir o apartamento, sem dar um passo sequer, apenas explodindo em seu interior como uma gota que não suporta mais o peso da gravidade e cai.

Sem cor, sem sabor, sem cheiro.

...

5 comentários:

Anônimo disse...

lindo texto,midc.lindo.sou eu...aquela que gosta de chuva rs

Maria disse...

uma viagem!gosto e texto assim, que nos leva a imaginar cenários. valeu!

Cumpade disse...

Bonito texto, Mário

Anônimo disse...

saudade muito mais que saudade
paroles muito mais que paroles
terra muito mais que terra a nos distanciar....

Anônimo disse...

celulas que provocan cancer ,celulas que aparecen en cualquier parte cada cierto tiempo,celulas que enferman y matan lo que vive ,por eso es mejor prevenir ,que curar

reputacion y boca = celulas