A culpa foi da Sukita.
E do gelo na Sukita.
Na pressa de não perder a última sessão legendada da noite, bebi rápido demais o refrigerante laranja. Umas seis pedras de gelo flutuavam no líquido cor-de-Fanta. Me lembrei das cenas finais de “Frankenstein” – o livro, não o filme. (Ah, o gelo se quebrando no pólo extremo da Terra, o monstro em fuga irada...)
Daí que fui assistir ao novo filme de Batman.
Daí que, bexiga cheia, fui assistir ao último filme de Batman.
Na verdade, a bexiga não estava tão cheia, digamos que na reserva. Mas, por esses mistérios abissais do corpo humano, a cada minuto que passava, a cada nova seqüência de músculos e testosterona na goela rouca do morcegão fantasiado, o tanque enchia-se de um líquido cor-de-Fanta-e-Sukita.
Que não era nem Fanta nem Sukita.
Entrar no cinema com uma reserva de mijo na bexiga é sacanagem. Uma maldade. Puro preconceito. Que nem entrar no cinema com aquela reserva de desconfiança – mau-humor com os elogios rasgados à atuação de Heath Ledger. O sobrescrito é avesso a muito confete e serpentina. Ainda mais que o elogiado já bateu as botas (aquelas de caubói de “Brokeback Mountain”) e daí entrou diretinho pro reino dos céus aqui na terra. Feito o corvo Brandon Lee. The Crow parte II, The Joker parte I.
Todo contido no filme de Ang Lee, Ledger solta a franga como o novo Coringa no novo filme do Batman. Metade do mérito é do maquiador, que deve ter visto alguma foto de Dercy Gonçalves na internet. Bateu a peruca de Javier Bardem. Superou também no quesito maldade.
A outra metade do mérito é a sacada de mastigar a saliva, como se quisesse molhar a cicatriz do seu riso literalmente rasgado. Como se saboreasse por antecipação o gostinho da Maldade. Com “M” maiúsculo.
Verdade seja dita: é uma interpretação de responsa. Tão boa que, metido no corpo nauseabundo do vilão, Ledger tinha mais é que morrer depois: não apenas parecia – era já um defunto vivo. O corpanzil (1,85 metro, me informa o Google), a cacunda, as roupas sujas e esfarrapadas, os cabelos ensebados – tudo que o ator incorporou pro seu personagem insinua que a qualquer momento um pedaço de dedo, braço, ombro, carne, pode se separar do corpo e ir ao chão. Assim: o retorno dos mortos-vivos num leprosário. Asilo Arkham.
Mas, voltemos pra poltrona onde me instalei e onde me mexi e remexi prum lado e pro outro, tentando esquecer que tinha bexiga – e que a danada não estava enchendo cada vez mais. Não por nada, pela caridade! O filme era bom, mas o ar condicionado, a Sukita, os cubinhos de gelo... Um aperreio.
Entre uma cruzada de pernas e outra, comecei a gostar mais de Harry Dent do que do Jokerman. E falo do personagem, não do ator (que atuou no interessante “Na companhia dos homens”, de Neil LaBute). O promotor público de Gotham City. Nosso De Sanctis. Nosso Jambo.
(Feito Macalé & Capinam, também eu nasci em Gotham City. Aos 15 anos. Caça às bruxas nos telhados, morcego na porta principal.)
Gostei mais de outras coisas, também:
– Da voz rouca do Senhor Wayne, quando travestido. Meio esquisita, verdade, mas.
– Da cara de doninha assustada da namorada do Batman. Meio feia, verdade, mas.
– Do bigodinho discreto de Gary Oldman, incorporando à perfeição o Comissário Gordon dos quadrinhos originais.
– Do meio-sorriso de Michael Caine, no auge da sua carreira, mais de cem filmes nas costas, incluindo “O cônsul honorário”, baseado em Graham Greene.
Não, não gostei de Morgan Freeman: assim, assado – Morgan Freeman demais.
(Gostei também do bizarro triângulo amoroso – e não falo de Batman-Rachel-Dent, mas de Batman-Coringa-Duas Caras.)
A verdade é que a gente vai ficando velho e vai perdendo ternura & empolgação: entra numa sala sem saber quase nada do que a maioria da plebe mais imberbe sabe – os bastidores das filmagens, antes mesmo das filmagens; os primeiros cinco minutos, antes mesmo da estréia; o nome do diretor (que eu não sabia e continuo não associando a nada e a ninguém); o nome dos atores (conheço só os com mais de trinta e dois dentes); até o nome do filme – vergonha – tive que perguntar pro fã de carteirinha Alex de Souza. Chama-se “O cavaleiro das trevas”.
(Devo ter a revista em algum lugar, bem guardadinha – mas isto aqui é outra coisa, crianças: é cinemão arrasa-quarteirão e Avid Dollars. É pipoca de ouro, diamante, platina, como uma tela de Salvador Dalí falsificada por Salvador Dalí.)
E não vai ser essa coluna que vai dizer ou desdizer se o filme é bom ou não é bom.
Daí que me resta esvaziar a bexiga nem bem o mais recente filme do Batman termina.
E, enquanto dava as clássicas balançadinhas, nem me lembrava mais como terminou.
Um comentário:
és um herói; eu saí com meia hora, enjoado de tudo, e tbém do hype
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